|
Antoine Watteau. Le Pèlerinage à l'île de Cythère. |
“No princípio era o verbo”. Em
torno do verbo, que é o início da consciência, sempre existiu o ambiente.
Palavra e ambiente, entre a imaginação e a realidade, dialogam incessantemente,
uma alimentando a outra. O princípio é origem no tempo e origem da natureza, da
materialidade, do cosmos, da terra, da água. Tempo, espaço e sentido andam de
mãos dadas.
As ilhas têm sido um território
fértil para a inspiração. Representam mesmo um ambiente de segunda ordem: o
sujeito rodeado de terra e ao redor de ambos o mar, só do mar. O centro se
lança à periferia, oferecendo o distanciamento que permite a abstração. As ilhas
são cenários que provocam reflexão sobre o sentido da vida, inspiram ilusões,
desafiam aventureiros, iluminam propósitos e, por fim, alimentam a literatura.
Além do divino, o verbo em seu contexto é a essência da chave literária e da
filosofia.
Existem dois exemplos
paradigmáticos de como a palavra escrita floresceu em torno das ilhas. A
Odisseia
de Homero, de quase três milênios atrás e a famosa
Utopia, a ilha de
Thomas Morus, de 1516.
Nos primórdios da literatura, com
a
Odisseia, Homero recorre às ilhas do mar Mediterrâneo como o teatro
onde são representadas as motivações básicas e os conflitos existenciais do ser
humano. A jornada épica de Odisseu de regresso para casa após a Guerra de
Tróia. O sofrido périplo é um castigo dos deuses aos gregos pelo seu fraudado triunfo.
A lição: o naufrágio da maioria dos navios. A volta para casa passa por
inúmeros obstáculos, a vida por um fio.
No conjunto de ilhas há de tudo:
vinho, plantas psicotrópicas, um gigante devorador de homens, uma feiticeira
com o poder de transformá-los em porcos, uma oferta de juventude eterna, deuses
que castigam com violentas ventanias e deuses que vomitam mares, falta de
comida, prisão e amores. Na ilha das sereias, as ninfas que nela habitam —
metade pássaro e metade mulher — tentam os marinheiros com cantos celestiais.
Nessa ilha, sucumbir, perder a
razão e a direção, significa a morte. Porém, Circe — tocada por um enlace
amoroso com Odisseu — avisa o herói: quem ouvir a voz dos cantos da sereia é
afetado pela loucura e morre por afogamento. Astucioso, o navegante se amarra
ao mastro da embarcação e sua tripulação cobre os ouvidos com cera. E ele é o
primeiro homem a desfrutar daqueles cantos sem perder a vida. A vontade
prevalece sobre os impulsos. Odisseu consegue regressar à sua ilha, para a sua
leal Penélope. Tudo faz sentido: vontade e destino se encontram.
Por sua vez, a
Utopia é uma
obra otimista. Thomas Morus é um homem brilhante. E o seu livro foi importante
desde a publicação. Foi o autor que cunhou a palavra a partir do grego:
ou-tópus-ía,
não-lugar ou a geografia inexistente. O título que ficou conhecido é uma redução
do original
Um pequeno livro verdadeiramente dourado, não menos benéfico que
entretedor, do estado de uma república da nova ilha Utopia.
Astutamente, o livro oferece
resistência à arrogância de uma modernidade que já ameaçava com a ganância
material e o individualismo. Morus imagina outra geografia onde a salvação da
nascente ética protestante através do trabalho — incluindo a exploração — é
deixada de lado. A harmonia e o bem-viver são a norma.
O autor mistura ficção com
personagens reais e acontecimentos históricos. Utopia era originalmente foi uma
península. O rei Utopo com seus habitantes cavam a fronteira. Fazem dela uma
ilha. É claro que existe um significado: a utopia se constrói. Eles conseguem o
controle do território: só os marinheiros locais sabem como chegar.
Os habitantes — antes vistos como
atrasados
— com essa portentosa obra conquistaram a admira
ção de outras regi
ões. T
êm uma forma humana e civilizada de viver, em forma comunitária. Só
trabalham o suficiente para viverem bem. Ninguém possui mais do que precisa.
Todos se vestem quase iguais, sem ostentação. A vida é dada “sem fazer uso do
dinheiro, que destrói toda nobreza, magnificência e majestade”.
A ilha é uma democracia muito
participativa. Seus habitantes são formados de acordo com seu desejo e vocação.
Dedicam generoso tempo ao descanso e ao ócio criativo. A única competição
aceitável é ver quem tem o jardim mais bonito. A liberdade de culto é total. Odeiam
a hipocrisia. A vida é felicidade.
Essas duas obras mostram como a
literatura se alimenta da realidade das ilhas e como esta é enriquecida pela
fantasia: o ciclo infinito entre a realidade tenaz e a imaginação libertária
que a literatura nos oferece. Em particular, a utopia e a odisseia tornam-se
metáforas poderosas que se projetam e se multiplicam noutros tempos e
contextos, até aos dias de hoje.
Nos territórios insulares — como a
terra à deriva no universo — fica claro que somos no nosso estar, o nosso aqui
e agora, particular e único, arquitetos do nosso destino. Seguindo Carl Jung,
as ilhas, como arquétipo universal, são um símbolo de emancipação, de enfrentar
o desconhecido, de superar perigos e tentações. As histórias que se projetam de
e para as ilhas — sejam utopias, odisseias que dão sentido ou corajosas aventuras
— permitem-nos rebelar-nos contra a injustiça e a ignomínia, imaginar e
construir futuros com esperança e reinventar-nos com liberdade.
Para o leitor motivado a pegar o
recorte das ilhas, há vários outros livros que valem a pena, apenas como o
início de uma rica veia criativa.
Las sergas de Esplandián, de Garci
Rodríguez de Montalvo, é um romance do século XV, em que aparece pela primeira
vez o nome da Califórnia, uma ilha mítica.
Mar inquieto, de Yukio
Mishima, é uma obra-prima, uma pérola poética, romântica e filosófica que se
passa na pequena ilha do Japão Utajima.
Em
La isla de la pasión,
Laura Restrepo nos mostra como o México perdeu para a França a ilha de
Clipperton. Juntamente com o ensaio
Clipperton, isla mexicana, de Miguel
González Avelar, os dois livros lançam a esperança de recuperar esse valioso
território, especialmente pela vasta zona econômica exclusiva que lhe
corresponde pelo direito internacional, e que deveria pertencer ao México.
Num outro plano está o poema “O albatroz”,
de Baudelaire, carregado de símbolos: a solidão do homem, como este pássaro que
navega sozinho pelos mares durante toda a vida e só desembarca em ilhas
oceânicas, quando responde ao chamado da transcendência.¹
Notas da tradução
1 É vasta, em língua portuguesa, a
relação entre literatura e ilhas. No Brasil, vão desde o poema de Frei Manuel
de Santa Maria, “Descrição da Ilha de Itaparica”, ao romance
A ilha, de
Flávio Carneiro, passando por
A ilha maldita, de Bernardo Guimarães e
O
feitiço da Ilha do Pavão, de João Ubaldo Ribeiro.
Comentários