Você ama, Você aprende, SR. LOVERMAN!

Por Renildo Rene
 
Bernardine Evaristo. Foto: Tom Jamieson


Barry Walker está prestes a encarar um grande dilema: precisa ter coragem e pedir divórcio do seu atual casamento, para conseguir viver deliberadamente com o seu real amor. Eis aí o protagonista de Sr. Loverman, sexto romance da britânica Bernardine Evaristo e segundo a ser recém-publicado no Brasil. E ainda que a alcunha do título já demonstre a destreza com que esse homem tem para gozar do sentimento amoroso, o “sr.” também é a própria exteriorização do que encontramos aqui: um senhor de mais de um século de vida ainda aprendendo as consequências de (não) viver suas paixões.
 
Ao seu lado está Carmel, esposa que conheceu na juventude quando moravam em Antígua, no Caribe, com quem teve duas filhas e um neto, herdeiros de um casamento convencional esperado para aquela sociedade. Contudo, ao seu lado também está, ou melhor, sempre esteve, Morris, que sobreviveu da juventude até o ano de 2010 como fiel amante e confidente, na capital inglesa, onde todos moram atualmente.
 
Se é esperado que Barry haja duplamente para conciliar a residência familiar consolidada na terra britânica, um nível de garantia que poucos de sua terra natal conseguiriam obter, e a paixão que continua fora desse núcleo conjugal, por ser o oposto do tipo de relacionamento hétero que se espera para um homem do século XX e até mesmo desse século, não fica difícil entender a problemática linha tênue que nosso personagem enfrenta na narrativa.
 
Melhor dizendo, já encontramos o personagem cansado e subjugado por ter que omitir um velho caso para resguardar a vida conjugal com sua esposa, e ao mesmo tempo, ter que suportar esse casamento para continuar acomodado com seu verdadeiro cúmplice amoroso. Com tantos anos “nas costas”, a saída mais relevante tem se mostrado ser o divórcio, procedimento mais concebível nos dias de hoje e pressionado por seu parceiro para aliviar essa tensão sentida. Aceitar seguir em frente com essa decisão é a aflição percorrida em todo o romance para abraçar as vivências desse homem que está em busca de um próprio sentido de libertação no amor.
 
Mas, se como personagem Barry é interessante pelas várias facetas que vai exibindo pouco a pouco, como narrador ele potencializa ainda mais a sua “cruzada moralista”, ratificando o interesse para nós, enquanto leitores, de abraçarmos sua causa. Nesse sentido, encontramos uma grande vantagem: tudo que temos acesso vem de seus pensamentos e suas conclusões no cotidiano em que está prestes a se separar.
 
Para isso, o artifício da narração em primeira pessoa é um acerto inevitável e funcional na sua cuidadosa retratação. Dos 18 capítulos do livro, 12 são ocupados pela narração de Barry, recobrindo um intervalo de um mês e de um salto temporal de um ano, a partir do momento em que é recoberto pelo dilema principal do divórcio. E em uma estratégia discreta porém fugaz, a autora da obra intercala os outros 6 capítulos com o foco narrativo partindo para a própria Carmel, ocupando agora as seis décadas (1960-2010) do casamento em direção às ruínas.
 
O relacionamento de Barry e Carmel representa a condução da moral conjugal que, insustentável pela falta de incompatibilidade emocional e sexual de ambas as partes, ainda permanece fiel a uma estrutura cujo objetivo é sempre deixar os envolvidos reféns de seus próprios desejos, para manter um relacionamento que poderia fluir, e que com certeza não funciona mais.
 
Ele é demasiado esperto, tem uma formação intelectual autodidata e demonstra ser bem adverso aos costumes tradicionais e sociais de sua antiga terra natal, a ilha caribenha. Desse ponto de vista, Barry é um marido bem libertário e que aproveita sua condição masculina para se entregar ao mundo fora de sua casa, sem nem sempre precisar de explicações da família (o que daí justifica a omissão plausível das dormidas com Morris).
 
Ela, no entanto, é a mulher-símbolo que está continuamente em tentativa de acreditar na fidelidade do marido, na união entre todos os parentes e na negação de qualquer ponto que prove que o casamento já não funciona mais. Isso explica, em partes, sua abnegação religiosa constantemente ironizada pelo protagonista, sendo resultado de uma vida relegada à “dona de casa”. De diferentes formas, o casal continuou se afastando de qualquer aproximação amorosa ao longo dos anos de convívio, e a dicotomia marido-esposa apenas aprofundou uma relação deteriorada pela falta de entendimento mútuo de duas realidades que não se encontram mais.
 
Carmel tem apenas o espaço do lar para construção dos seus sentimentos e nele desenvolve angústias e outros sentimentos não dominados pela felicidade imperfeita. Do interior, ela esbarra apenas com suas filhas, suas amigas (a “Sociedade das Senhoras de Antígua”, que oferecem um dos retratos mais cômicos no início da obra), bem como a ausência de algo que ela foi perdendo com o tempo. Já Barry é o contraponto afável desse contexto: está no exterior da casa, perpassa por diversos cenários, avança no relacionamento extraconjugal e, mesmo não tendo a liberdade ainda desejável, seus conflitos parecem ser mais bem dominados na narrativa. Por isso que aparentamos julgar um caso de uma tradicionalista com um extrovertido.
 
A ponta do iceberg, o relacionamento amoroso com Morris, complexifica ainda mais o enredo de Sr. Loverman, pois ao apostar em um romance homossexual Bernardine Evaristo alcança questões de intimidade, geração e sexualidade no segundo polo da vida do seu protagonista. É delicado observar como o próprio narrador, com sede de garantir a nossa simpatia, naturaliza as constantes discussões e brigas tal qual o desejo e realização sexual para expor a paixão vigorosa entre dois homens septuagenários. Dessa paixão, que sobrevive ao tempo e ao medo da discriminação, lemos um amor multifacetado — diferente do casamento, no qual as diferenças jamais se encontraram.



Procurando aprofundar ainda mais as complexidades que existem nesse retrato familiar, a obra amplia tais dilemas ao figurar nas próprias filhas do casal, Donna e Maxine, os juízos que circundam as escolhas daquele pai. As duas personagens tornam em momentos significativos nessa curta trajetória, instaurando as relações individuais que cada uma tem com o pai, seja para esclarecer assuntos jamais falados, seja para externar ainda mais os sentimentos de desavenças existentes. Nesse meio, Barry tenta contornar duas mulheres que, frutos de sua criação, são pontos basilares na trama.
 
A partir disso, Evaristo utiliza as duas filhas para evitar que se ande em círculos na leitura, e complexifica toda a situação quando traz capítulos destinados a cruzar filha versus pai para atualizar a vida do homem na surdina do amor. Maxine, a mais nova e que tem uma relação mais próxima, motiva o processo de aceitação do casal quando Carmel decide fazer uma viagem para o velório do pai, em Antígua. Nas várias conversas com os dois amantes, a aspirante a estilista estabiliza uma naturalidade da relação homossexual possível no século XXI. Ao levar Barry e Morris para conhecer seus próprios amigos e lugares simpatizantes, Maxine conduz Barry a uma própria meditação e contraste de pensamentos sobre o que era ser gay na sua juventude e como ele pode ser um “gay velho” atualmente.
 
Todavia, está em Donna o perfil mais complexo e divergente. A filha mais velha é constantemente descrita na imagem de uma mulher feminista que ora rebate o moralismo da mãe, ora toma partido para atacar o pai. Na visão paterna, isso é difícil de ser compreendido porque o maior obstáculo para Barry é justamente encarar as consequências que a infelicidade do seu casamento trouxe para a personalidade da mãe de Davi. Aliás, se Maxine é símbolo do processo de aceitação, Donna simboliza a descoberta de uma saída possível para a situação. Isso porque a grande revelação do romance ocorre em um momento conturbado e delicado, na ocasião em que Barry estava responsável por cuidar do seu neto, na ausência da mãe e da avó.
 
Quando apresentei a estruturação dos capítulos como uma estratégia discreta da autora, foi para repensar os caminhos que Sr. Loverman posiciona diante dessa dinâmica conjugal/ familiar. O desequilíbrio que nos deparamos no final, de mais focos narrativos de um em sobreposição à outro, são reflexos indiretos da disparidade causada na relação marido versus mulher. Barry narra os dias que seguem a uma decisão que pode lhe dar libertação de um casamento falhado, com uso da ironia, da autorreflexão e da harmonização entre razão e emoção.
 
Mas à Carmel resta apenas cumprir os espaços entre esses momentos e mediar sobre décadas de um casamento que aprisionou seus sentimentos e lhe alienou de seus reais desejos, em um espaço bem menor na narrativa assim como na casa em que viviam. Sua autonomia é buscada, naquelas páginas, quando lhe sobra lacuna para contrapor a visão central de seu marido, que mesmo sofrendo pela tormenta do divórcio, ainda ocupa bem o espaço masculino.
 
A decisão da separação para assumir um outro amor no romance percorre um impasse familiar, e como o protagonista reage e se afasta disso. Dentro dos detalhes nunca só antagônicos e das sutilezas nem sempre confortáveis, mora em Barry um barreirismo de sexualidade e cor e, ao mesmo tempo, uma figuração do privilégio masculino dentro do matrimônio. O romance fideliza essas nuances com humor, sem reduzir a complexidade do dilema das coisas.
 
Aliás, esse dilema é transformado, nas páginas que encerram o livro, em culpa. Mesmo que o casal tenha encontrado um final propício, Barry encontra, junto de nós, o sentimento de remorso em relação à mulher que foi ocultada de seus sentimentos. O final do labirinto romanesco é saber que junto de Morris ele se depara com a liberdade, mas que ser livre, agora, significa estar disposto a olhar o outro lado que foi desprezado por tanto tempo — e nunca foi ouvido.
 
Originalmente publicado em 2014, Sr. Loverman chega ao Brasil 10 anos depois, com tradução de Camila von Holdefer e com um convite para conhecer outro espaço ficcional de Bernardine Evaristo. Espaço este composto pelas zonas de conflito, de interesse e de risco de um antiguano que precisou viver para aprender como domar a influência da cultura caribenha e europeia no seu papel paterno. Por fim, somos conduzidos a uma outra zona desse romance, a dos pecadilhos amorosos, no qual se encontram as possibilidades que existem ao leitor de compreender, perdoar, aceitar e/ ou recusar quem narra a paixão à sua frente.
 
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Sr. Loverman
Bernardine Evaristo
Camila von Holdefer (Trad.)
Companhia das Letras, 2023
328 p.
Você pode comprar o livro aqui
 

Nota
O título dessa resenha é uma referência a “You Learn” (1995), música da cantora estadunidense Alanis Morissette. A canção, por sua vez, possui sample de “Mr. Loverman” (1992), do jamaicano Shabba Ranks, e que está entre as várias referências sonoras que embalam o relacionamento de Barry e Morris. Nesse link, você encontra a playlist com todas as músicas e artistas que aparecem na obra: 
 

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