Você ama, Você aprende, SR. LOVERMAN!
Por Renildo Rene
Barry Walker está prestes a encarar um grande dilema:
precisa ter coragem e pedir divórcio do seu atual casamento, para conseguir
viver deliberadamente com o seu real amor. Eis aí o protagonista de Sr.
Loverman, sexto romance da britânica Bernardine Evaristo e segundo a ser recém-publicado
no Brasil. E ainda que a alcunha do título já demonstre a destreza com que esse
homem tem para gozar do sentimento amoroso, o “sr.” também é a própria
exteriorização do que encontramos aqui: um senhor de mais de um século de vida
ainda aprendendo as consequências de (não) viver suas paixões.
Ao seu lado está Carmel, esposa que conheceu na juventude
quando moravam em Antígua, no Caribe, com quem teve duas filhas e um neto,
herdeiros de um casamento convencional esperado para aquela sociedade. Contudo,
ao seu lado também está, ou melhor, sempre esteve, Morris, que sobreviveu da
juventude até o ano de 2010 como fiel amante e confidente, na capital inglesa,
onde todos moram atualmente.
Se é esperado que Barry haja duplamente para conciliar a
residência familiar consolidada na terra britânica, um nível de garantia que
poucos de sua terra natal conseguiriam obter, e a paixão que continua fora
desse núcleo conjugal, por ser o oposto do tipo de relacionamento hétero que se
espera para um homem do século XX e até mesmo desse século, não fica difícil
entender a problemática linha tênue que nosso personagem enfrenta na narrativa.
Melhor dizendo, já encontramos o personagem cansado e
subjugado por ter que omitir um velho caso para resguardar a vida conjugal com
sua esposa, e ao mesmo tempo, ter que suportar esse casamento para continuar
acomodado com seu verdadeiro cúmplice amoroso. Com tantos anos “nas costas”, a
saída mais relevante tem se mostrado ser o divórcio, procedimento mais
concebível nos dias de hoje e pressionado por seu parceiro para aliviar essa
tensão sentida. Aceitar seguir em frente com essa decisão é a aflição percorrida
em todo o romance para abraçar as vivências desse homem que está em busca de um
próprio sentido de libertação no amor.
Mas, se como personagem Barry é interessante pelas várias
facetas que vai exibindo pouco a pouco, como narrador ele potencializa ainda
mais a sua “cruzada moralista”, ratificando o interesse para nós, enquanto
leitores, de abraçarmos sua causa. Nesse sentido, encontramos uma grande
vantagem: tudo que temos acesso vem de seus pensamentos e suas conclusões no
cotidiano em que está prestes a se separar.
Para isso, o artifício da narração em primeira pessoa é um
acerto inevitável e funcional na sua cuidadosa retratação. Dos 18 capítulos do
livro, 12 são ocupados pela narração de Barry, recobrindo um intervalo de um
mês e de um salto temporal de um ano, a partir do momento em que é recoberto
pelo dilema principal do divórcio. E em uma estratégia discreta porém fugaz, a
autora da obra intercala os outros 6 capítulos com o foco narrativo partindo
para a própria Carmel, ocupando agora as seis décadas (1960-2010) do casamento
em direção às ruínas.
O relacionamento de Barry e Carmel representa a condução da
moral conjugal que, insustentável pela falta de incompatibilidade emocional e
sexual de ambas as partes, ainda permanece fiel a uma estrutura cujo objetivo é
sempre deixar os envolvidos reféns de seus próprios desejos, para manter um
relacionamento que poderia fluir, e que com certeza não funciona mais.
Ele é demasiado esperto, tem uma formação intelectual
autodidata e demonstra ser bem adverso aos costumes tradicionais e sociais de
sua antiga terra natal, a ilha caribenha. Desse ponto de vista, Barry é um
marido bem libertário e que aproveita sua condição masculina para se entregar
ao mundo fora de sua casa, sem nem sempre precisar de explicações da família (o
que daí justifica a omissão plausível das dormidas com Morris).
Ela, no entanto, é a mulher-símbolo que está continuamente
em tentativa de acreditar na fidelidade do marido, na união entre todos os
parentes e na negação de qualquer ponto que prove que o casamento já não
funciona mais. Isso explica, em partes, sua abnegação religiosa constantemente
ironizada pelo protagonista, sendo resultado de uma vida relegada à “dona de
casa”. De diferentes formas, o casal continuou se afastando de qualquer
aproximação amorosa ao longo dos anos de convívio, e a dicotomia marido-esposa
apenas aprofundou uma relação deteriorada pela falta de entendimento mútuo de
duas realidades que não se encontram mais.
Carmel tem apenas o espaço do lar para construção dos seus
sentimentos e nele desenvolve angústias e outros sentimentos não dominados pela
felicidade imperfeita. Do interior, ela esbarra apenas com suas filhas, suas
amigas (a “Sociedade das Senhoras de Antígua”, que oferecem um dos retratos
mais cômicos no início da obra), bem como a ausência de algo que ela foi
perdendo com o tempo. Já Barry é o contraponto afável desse contexto: está no
exterior da casa, perpassa por diversos cenários, avança no relacionamento
extraconjugal e, mesmo não tendo a liberdade ainda desejável, seus conflitos
parecem ser mais bem dominados na narrativa. Por isso que aparentamos julgar um
caso de uma tradicionalista com um extrovertido.
A ponta do iceberg, o relacionamento amoroso com Morris,
complexifica ainda mais o enredo de Sr. Loverman, pois ao apostar em um
romance homossexual Bernardine Evaristo alcança questões de intimidade, geração
e sexualidade no segundo polo da vida do seu protagonista. É delicado observar
como o próprio narrador, com sede de garantir a nossa simpatia, naturaliza as
constantes discussões e brigas tal qual o desejo e realização sexual para expor
a paixão vigorosa entre dois homens septuagenários. Dessa paixão, que sobrevive
ao tempo e ao medo da discriminação, lemos um amor multifacetado — diferente do
casamento, no qual as diferenças jamais se encontraram.
Bernardine Evaristo. Foto: Tom Jamieson |
Mas à Carmel resta apenas cumprir os espaços entre esses momentos e mediar sobre décadas de um casamento que aprisionou seus sentimentos e lhe alienou de seus reais desejos, em um espaço bem menor na narrativa assim como na casa em que viviam. Sua autonomia é buscada, naquelas páginas, quando lhe sobra lacuna para contrapor a visão central de seu marido, que mesmo sofrendo pela tormenta do divórcio, ainda ocupa bem o espaço masculino.
Sr. Loverman
Bernardine Evaristo
Camila von Holdefer (Trad.)
Companhia das Letras, 2023
328 p.
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O título dessa resenha é uma referência a “You Learn” (1995), música da cantora estadunidense Alanis Morissette. A canção, por sua vez, possui sample de “Mr. Loverman” (1992), do jamaicano Shabba Ranks, e que está entre as várias referências sonoras que embalam o relacionamento de Barry e Morris. Nesse link, você encontra a playlist com todas as músicas e artistas que aparecem na obra:
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