Sidarta, Hesse, não-objetos

Por Eduardo Galeno
 
On the hill we viewed the silence of the valley
(Yes, 1972)
 
Roger Dean. Close to the edge, 1972

 
A grande imagem em Sidarta (1922) é sem forma. O romance de Hesse é uma demonstração de não-objetos.
 
Mas vejamos: de Hesse, veio a nuance peculiar de estar num lugar repleto de buracos escavados por outros. Por Joyce, por Proust, por Kafka, pelos mais diferentes discursos (mas falantes do mesmo) imbricados na esteira do pensamento literário. Ali, onde nutria certa ordem num plano de desordem enunciativa, também elevou seus passos nas brenhas do século. Como observação, talvez possamos caracterizar o autor de Demian (1919) e O lobo da estepe (1927) não em contramão ao aspecto prometeico, já bastante falado nas propriedades da escritura pós-iluminista, mas em decisão contínua-descontínua.
 
É, aliás, em relação à descontinuidade continuada que incito a pensar: de que modo um homem nascido em terras alemãs, morto na Suíça, pacifista, revelador de causos da máquina do mundo, vencedor da glória artificial do Nobel de Literatura, é situado? A resposta seria mais ou menos assim: como um autor violentamente intrigado nas peripécias apaixonantes de seus contemporâneos. Justamente aqui reside a paixão pelas imagens do infinito, que nunca são totalmente outorgadas a ele. O infinito é a (não) imagem na qual a constituição do determinado inaugura qualquer ponto de destituição.
 
Sidarta, entre os romances de Hesse, tem um local privilegiado. A mãe de Hermann, Marie, nasceu em Thalassery, cidade da Índia. Todo o índice temático gira em torno dessa busca desenfreada por uma resposta que condiz à exigência de matriz materna. Só que, ao contrário do que se imagina, essa matriz não está representada na própria mãe. O imaginário que Hesse dá, ao transfigurar o objeto, está na Unidade, na maternidade como ambiente pré-ôntico. Foi a ela que a trama da vida do protagonista fez seu destino. Na representação do universo numa casca de ovo (Demian), na díade razão x irrazão (O lobo da estepe), Sidarta enfatiza para o Um.
 
Essa apelação retrata um objetivo que nasceu na disposição no romance. O lance em que Sidarta se joga no mundo, se movimenta e se coloca naquele esplendor que só Hesse, como escritor, poderia conceber: o jogo absoluto entre o dado e o recebido. É tanto o mundo que dá e recebe a/ em Sidarta tanto quanto o contrário. Disso nasce um modo pelo qual o múltiplo se eterniza, quer dizer, da Grande coisa que não chega a ser conceito nem figura, mas infinitos modos de individuação. Ele diz: “a unidade do mundo, o nexo existente entre todos os acontecimentos, o fato de todas as coisas, tanto as grandes como as pequenas, estarem incluídas no mesmo decorrer, na mesma lei das causas, do devir e do morrer — tudo isso, ó Augusto, ressalta luminosamente na tua excelsa doutrina.”
 
Nesse momento, prevê a estrutura binomial que o aflige (ele, Sidarta, nas mãos de Hesse). A contradição é apenas aparente. Nela, é sugerida a transparência do conteúdo emergente que amplia um evento, isto é, a cada instante o Eterno já está (“o mundo das configurações altera-se a cada instante”). A condição que restitui a multiplicidade pelo Um acaba dilacerando o dualismo trágico (por exemplo: as dualidades entre necessidade do destino e a contingência da liberdade em Sófocles), contrariando esse ethos de maneira geral (a contradição absoluta entre volúpia e mortificação é posta em xeque).
 
A influência do pensamento oriental no romance não incide apenas no eixo do conteúdo (a Índia, o bramanismo, as relações sociais demarcadas). Ele próprio se constitui como devir (suspensão). Sidarta começa de um jeito, vai para o outro, indo, escorrendo, manejando seu caminho como um samana, um homem sem raízes, um peregrino. Mas eis, mais uma vez, o que vem a favor desses elementos: a constituição da Unidade, do Grande, do Sublime. É o Absoluto.
 
Estabilidade perpétua e alta concentração de fluxo: a aposta de Sidarta.
 
Justo aí, o fato do não-racional estar dentro da feitura narrativa pode contrapor a ideia de que não há um matema. Existe claramente uma criação geométrica. A participação de Sidarta e seu filho, dos samanas, do buda Gotama, de Kamala, do balseiro, do comerciante e de todos os constituintes do enredo (simples) de Hesse — a pedra,  o pássaro, o rio — se apoia no que chamamos de experiência de dissolução do sujeito, “aquilo que já não fosse o eu, o grande mistério”.
 
Por que o romance aporta para essa condição? Parece — é bom não perdemos de vista a extrema utilidade que esse pensar tem para o autor — que há a necessidade substancial de deslocar a sombra do Ser. A sombra da essência não para o Nada — o Nirvana —, mas precisamente no lugar em que a oposição é obliterada. Porque o Sansara (sofrimento) é a diferença da redenção.
 
A lógica que opera no meio do romance, ressoando o tropo estratégico dos seus contemporâneos acima citados, é uma lógica fora da circulação linear: eu continuo o que deixei. Tanto que, em questão de estilo, Hesse não caminha demais, mas está aquém da vanguarda. Esse PertoLonge só poderia desaguar no não-objeto, na multiplicação dos entes (imagens = formas) no informe (Infinito, Eternidade, o Om). “A morte, para mim, é igual à vida; o pecado, igual à santidade; a inteligência, igual à tolice”.
 
E mais: “Tudo era uma e a mesma coisa, tudo se entretecia, enredava-se, emaranhava-se mil vezes. E todo aquele conjunto, a soma das vozes, a totalidade das metas, das ânsias, dos sofrimentos, das delícias, todo o Bem e todo o Mal, esse conjunto era o mundo. Esse conjunto era o rio dos destinos, era a música da vida.”
 
Tese: na teoria de Kandinsky sobre a pintura, encontramos a legitimação da percepção sobre o interior (vida) que desce em Sidarta. Para ele, não importava mais representar o mundo dos objetos, e sim sua alma, o invisível. A fenomenologia de Kandinsky casa, assim, com a esteira de Hesse, quando ia escrever seus romances: ao transportar o mundo para dentro das emoções, procurava, antes de tudo, se curar do mundo. Ele, com um pé na ideia de participação no céu e na terra, sabia que, como Lao Zi enuncia, “o maior dos sons ecoa em silêncio”; ele que, como Sidarta, pensou em amar o Grande Mundo.

Pelo que foi dito, a história propõe a suavidade: o tom mais forte, cabal e rompante que se pode ter. Misto de ternura paciente e de sabedoria pelo que há de mais simples, percebo que o som que ecoa no traço do não-objeto é o som de um mantra. Ou, para citar imagens suaves, me lembra aquele homem (que poderia muito bem ser um não-homem) de The fisherman (1919), poema feito por Yeats.¹ A astúcia do poeta irlandês evoca ser a do ancião.

Notas 
1 The wise and simple man (Esse homem simples e puro).

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