Se Hollywood fosse um homem, seria
um malandro, alguém com tato para se mostrar um sedutor, mas que no fundo é um
idiota. Imaginemos esse farsante sem o terno que o veste, feito com o melhor
tecido; nu, ele cutuca o umbigo e encontra mais do que fiapos. Alguns têm
escavado nessa região que pode acumular sujeira, suor, células mortas e
bactérias. Ao cutucar a cicatriz, essa área sensível e desconfortável, reflete
o insalubre. Essa comichão, que quando satisfaz dá prazer e às vezes é danosa, produziu
marcas na pele de Hollywood.
A vista de sua fachada rasurada é
fascinante e abismal, como em Sunset Blvd. (Billy Wilder, 1950), onde
uma atriz de outrora, uma das grandes, é condenada a ser a relíquia de seu
próprio mundo, um adereço com cheiro de velho, um terno surrado esperando no
cabide até você acionar o gatilho do revólver que o devolve ao primeiro plano.
Também pode ser uma ferida disfarçada, como ocorre em The Bad and the
Beautiful (1952), que glorifica a história de um produtor sem escrúpulos,
um predador de sua época que, apenas sugerido por Vincente Minnelli, é um
gangster protegido pela gangue de malfeitores que povoam a meca do cinema.
Por dentro, a indústria de
Hollywood é labiríntica e obscura — caminho por onde se perde a aspirante a
atriz de Mulholland Drive (2001) — e, além disso, supersticiosa — sua
lenda negra é a neblina, como em Inland Empire (2006), ambos filmes de
David Lynch. Para Cronenberg, que em Maps to the stars (2015)
ridiculariza o excesso de falsidade e irrealidade das estrelas, Hollywood tem
cicatrizes — explícitas no rosto e nos braços de uma jovem que trabalha como
assistente de uma atriz repugnante que vive aterrorizada pela sombra de sua
mãe, uma lenda do cinema — cuja origem é tabu, inconfessável e espectral.
Hollywood tem motivos para temer a
nudez. Estes filmes, temerários na sua abordagem, são essenciais como
exercícios de autorreflexão e como interrogações arriscadas. O que o cinema
pode dizer de si mesmo? A fissura mais recente é May December (2023),
filme de Todd Haynes sobre uma atriz que visita uma mulher para estudá-la, pois
em seu próximo filme, baseado em acontecimentos reais, ela vai ficcionalizar
sua vida.
O cinema em frente ao espelho
Antes de Segredos de um
escândalo, Haynes imaginou o impacto de uma estrela do cinema mudo, Lilian
Mayhew, sobre uma garota surda que enchia cadernos com recortes de sua atriz
favorita. Em Wonderstruck (2017) a arrogante diva tem a pele de Julianne
Moore, atriz emblemática de Haynes. Para esse filme, ironicamente esquecido
como qualquer estrela cadente, ele recriou a sequência imortal de The Wind
(Victor Sjöström, 1928) como um filme de Mayhew, ou seja, embrulhou um filme
dentro de outro, unido pela lógica da imagem que se dobra em si mesma, que se
refugia na sua intimidade; um conjunto de estratos ou camadas dentro da mesma
coisa. Moore é a atriz Lilian Mayhew, ídolo da menina, e a mulher que luta
contra o vento insolente. A relação entre a admiradora e a atriz de Wonderstruck,
apenas um segmento do filme, desloca-se em Segredos de um escândalo para
o jogo mimético entre sujeito e objeto para a elaboração de um projeto
cinematográfico em que suas partes não encontram uma identificação plena, mas
distorcida.
Elizabeth Berry (Natalie Portman)
viaja para Savannah, Geórgia, para pesquisar seu próximo papel no cinema. Lá
mora Gracie Atherton-Yoo (Julianne Moore), uma mulher que faz bolos e vive em
aparente harmonia com a família. Aos 36 anos, ela foi presa por ter tido uma
relação sexual com Joe Yoo (Charles Melton), então com 13 anos. Após ser
condenada, ela constituiu família com ele. Gracie é o alvo das observações de
Elizabeth, que promete levar para a tela sua polêmica história de amor sem
distorcê-la.
O destaque de Segredos de um
escândalo é a sua atonalidade. Baseado no roteiro de Samy Burch e Alex
Mechanik, inspirado no escândalo Mary Kay Letourneau ocorrido na década de 1990
nos Estados Unidos, Haynes cuidou para que a forma do filme expressasse a
natureza distorcida do cinema como história, que nunca é fiel às suas fontes, e
que, claro, Hollywood insiste em esconder.
Cada personagem se move em um
registro diferente. A história mais simples, e mais emocionante, é a do
melodrama de Joe, ligado a Gracie por meio de chantagens que apontam para a
violência doméstica sutil e controlada. Elizabeth, por outro lado, é
pragmática, sem escrúpulos e ousada; ela sabe o que precisa extrair da vida dos
Yoo para fazer seu trabalho. O personagem de Moore é mais obscuro e complexo.
Às vezes irônica e outras vezes infantil — a jogo de voz e dicção da atriz, que
é um jogo de genialidade que engana e faz pensar que Gracie está compondo uma
pantomima ou farsa de si mesma —, ela é uma mulher mais difícil de entender do
que copiar.
Elizabeth não quer apenas
reproduzir seus maneirismos, também quer saber qual fascínio Joe despertou
nela. Segredos de um escândalo é um chiste para interprétes como
Elizabeth — e deliciosa para aquelas malsãs e
reflexivas — que se envolvem pessoalmente na investigação e na experiência da vida de um personagem e violam limites
morais e éticos ao abusar e tirar vantagem de objetos
de sua pesquisa quando se trata de pessoas reais que também distorcem.
A câmera do filme como espelho
O espelho, a superfície sobre a
qual as imagens são refletidas, é essencial no exercício autorreflexivo de
Haynes. Uma imagem é a aparência visível de uma pessoa ou coisa e a reprodução
da figura de um objeto em um espelho, tela, superfície. O espelho é o terreno
do imaginário, que constitui primeiramente um sujeito; é o lugar sem espaço e
sem densidade por excelência porque é a imagem (reflexo) de uma imagem
(aparência).
A câmera de cinema ocupa o lugar
do espelho, o lugar sem espaço e sem densidade, na cena principal de Segredos
de um escândalo, a cena em que Elizabeth pede a Gracie que lhe mostre como se
maquia. Ambas olham para a câmera/ espelho, reconhecendo-se na superfície e
ocupando o terreno do imaginário. Até a música curiosa e discordante de Michel
Legrand — emprestada do filme The go-between (1971), de Joseph Losey —
realça a distinção entre realidade e imagem/ representação a que o cinema
sempre resiste.
Para Hollywood, a tela do cinema é
um espelho, os filmes funcionam como mecanismos de identificação; assim, as
convenções da linguagem, que não são regras, enganam os espectadores. A ironia
da cena é que o reconhecimento das duas mulheres no espelho produz uma perversa
troca em que Gracie toma o lugar do sujeito, maquia o rosto de Elizabeth,
intervém nela e lhe faz perguntas, questiona-a.
Outra nota dissonante desse jogo
de trocas — em que se percebe o rastro de Persona (1966), de Bergman — é
o fetichismo de Gracie por sua própria imagem, sua beleza, que rarifica
sensualmente sua troca com Elizabeth, como se fosse um jogo de sedução e, acima
de tudo, um jogo de poder.
Água turva não faz espelho?
Na apresentação de Segredos de
um escândalo no Festival de Cannes, Todd Haynes referiu-se ao intraduzível
jogo de palavras do título original do seu filme, que nomeia um casal com
grande diferença de idade, aludindo aos Macron, o casal presidencial de França.
O comentário foi um golpe do diretor, que não trai seu caráter crítico, ao
politicamente correto.
Como já dito, o personagem
Julianne Moore é inspirado em Mary Kay Letourneau, professora acusada de
estupro em segundo grau de Vili Fualaau, seu aluno de 12 anos, com quem teve
duas filhas e posteriormente se casou. Brigitte Macron, antes Auzière, também
foi professora de Emmanuel Macron. Em 1992 quando se conheceram nas aulas, ela
tinha 39 anos e ele 15. Brigitte disse diversas vezes que a relação com Macron
só começou quando ele tinha 18 anos.
Na França existem pelo menos três
filmes que contam a história de mulheres adultas que se relacionam com menores.
O mais polêmico e bem-sucedido, baseado na história real de Gabrielle Russier,
é Mourir d'aimer (1971) de André Cayatte. O filme se passa em maio de
1968, em que uma professora interpretada por Annie Girardot se relaciona com um
de seus alunos de 16 anos, motivo de sua prisão. O outro é Kung-fu master
(1988), de Agnès Varda, que conta a história de amor entre uma mulher adulta,
interpretada por Jane Birkin, e um menino de 14 anos interpretado por Mathieu
Demy, filho da diretora.
Mais recente é L'Été dernier
(2023) em que Catherine Breillat acompanha uma advogada especializada em
violência sexual contra menores que estabelece uma relação com um rapaz de 17
anos, filho do seu ex-companheiro. Outro exemplo, embora no Reino Unido, é Notes
on a Scandal (2016) de Richard Eyre. Na adaptação cinematográfica do
romance de Zoë Heller, Cate Blanchett é a professora condenada pela justiça por
ter um relacionamento com um estudante de 15 anos.
Embora May December — para
esquecer de uma vez por todas o seu desmesurado título excessivo em português —
não conta a parte mais horrível do escândalo, o estupro, apenas se refere ao
acontecimento. Haynes comentou que imediatamente pensou em Moore para
interpretar Gracie, já que “ela está sempre disposta a levar o público para regiões
obscuras”. É impossível negar a ferocidade da atriz, talvez a única atriz estadunidense
de seu status que aceita continuamente papéis problemáticos.
Embora o filme não faça elogios a
Hollywood e dê apenas um arranhão ao revelar como distorce as histórias que
adapta, é provável que May December tenha sido ignorado no Oscar, pelo
qual só obteve a indicação na categoria Melho Roteiro, por mostrar de maneira ambígua
uma agressora sexual inspirada em uma pessoa real e cuja condenação judicial
não faz parte da trama, ou seja, não é um filme pedagógico.
May December é sobretudo
uma obra que duvida da eficácia da mimesis como procedimento de representação
que aspira tornar-se algo equivalente ao original, quando é apenas uma variante
ou deformação deste. O final do filme é uma representação tosca da história
proibida de Gracie que lembra um dos melhores filmes de Brian de Palma, Body
Double (1984), outra obra de olhar para o umbigo que Hollywood e que prefere
mostrar com imagens, em vez de falar, o que tem a dizer de si mesma.
* Este
texto é a tradução livre para “May December, o cómo Hollywood se hurga
el ombligo”, publicado aqui, em Letras Libres.
Comentários