Quando Baudelaire pregou, no século XIX, pela manutenção da
ambiguidade que impera no seu enquadramento poético; quando, por outro lado, no
século seguinte, Pasolini encarna em
Salò o le 120 giornate di Sodoma (1975)
a substância característica e insistente nos afetos pós-industriais; ambos não
fazem mais do que uma única e mesma coisa: o relato da dupla (in)consciência
existente entre o frenesi da festa e o cálculo da morte.
***
É o ano de 1857.
As flores do mal é publicada pela
primeira vez. Aos 36 anos, Baudelaire dá o primeiro grande passo para a
constituição das poéticas modernas (ou modernistas). Destituído daquele
complexo romântico da Alemanha – que, por lógica e definição, era uma espécie
de querela ao constructo da nova Europa –, os tópicos baudelairianos insistiram
em ver e em denotar, obsessivamente, a essência do Mal. Assim, essa poesia
maldita inclinada a refazer o percurso histórico das práticas de representação
do tempo, mas refazer criticamente, importou Baudelaire à contraposição do
elemento mais primordial que a alienava: o Bem. O Bem é a maioria, o velho, o
feio, o careta, o linear, a raça de Abel.
Nas tentativas de preservar o inútil em vez da acumulação,
aproximando Satã dos prazeres do dispêndio (o assassino Caim), a marca da
comunicação poética passa da economia restrita à economia geral. Ele –
Baudelaire – ataca, assim, o sentido produzido pelo trabalho da linguagem, o
discurso. O que importa, nesse recinto, não é mais a diluição completa do
conceito – do conhecimento –, e sim o algo a mais, esse feedback positivo das
palavras, o sim ao devir-vagabundo. O improdutivo total, não mais acumular. Por
esse motivo a festa, por esse motivo a
hipermetáfora: a Beleza do
Símbolo.
Daí esses atos impensados – porque radicais – contra todo
dispositivo transcendental e moralizante. Em outros termos, o estoque do
Absoluto
já estava sendo queimado muito antes das filosofias da contingência e das
localidades emergirem nas discussões a partir de Martin Heidegger. Esse talvez
seja o legado das letras de Baudelaire: o de conseguir atravessar, por
intermédio das figuras do fugidio, os modos em que o
Tudo vira pó, em
que o
fechamento se dispõe e se interpreta como
deslocamento. A
deslocação prefigura o presente: sendo o Outro o
eterno e o
imutável,
“por modernidade eu entendo o transitório” (
O pintor da vida moderna, de
1863).
O que significa? Que existe uma parte dentro do escopo do
presente. Uma parte que concentra todo o esforço do indivíduo na luta temporal
– e também espacial, dada a relevância que Paris tem para ele –, a fim de que
surja em si mesmo uma imagem nova (mas já antiga): a imagem da
festa. A
festa desobstrui a passagem do que é Mal, uma passagem
para o Mal. Por
exemplo: Baudelaire é radical não porque, como os românticos eram, seja
vulgarmente antiburguês, mas porque se identifica numa recusa profunda e
enraizada no princípio de
afirmação. A densidade do
ethos do
flâneur e do dândi não é justo essa: a de se comportar
diretamente para
o Mal?
Quer dizer, em Baudelaire, a reificação
pessoal é
assumida diante da despossessão
social (que é sempre
imposta).
Essas mazelas se fundem em qualquer ato enunciativo dos seus poemas, dos versos
aos de prosa. Para isso, o duplo da condição de alegria (festa) se coloca na
tristeza, bem podendo formar um outro significante:
morte. A força que o
faz escrever incita a discrepância nas partes, mas ao mesmo tempo as
identifica. Os temas tão próprios a ele mesclam o dispêndio do gozo vitalista à
angústia. Vejam o ciclo
La mort (de
Les fleurs du mal), vejam que
quem diz “viva a revolução!” também diz “viva a morte!”. E tirem suas
conclusões.
Plonger au fond du gouffre, Enfer ou Ciel, qu'importe?
[Mergulhar no abismo, Inferno ou Céu, que importa?]
***
Pensemos, agora, na história dos vagalumes de Pasolini. Ali,
o cerne do movimento da poesia de Baudelaire se evidencia claro como água.
Pois, além de demonstrar o ponto nevrálgico da relação dentro/ fora, o claro/ escuro
do Mal, as injunções são perpassadas por um estágio de
Vazio, ou seja, a
imagem do “alguma coisa” (indeterminação nomeada no seu artigo publicado no
Corriere
della Sera, a 1 de fevereiro de 1975) determina o misto que insere a morte
dos vagalumes, seu desaparecimento, como a ponte ao descobrimento de algo.
Pergunta: do quê? Da homologação cultural, do genocídio,
passado aos italianos, segundo Pasolini, no espaço da revolução antropológica
que o fascismo demonstrou no momento em que sucedeu, durante o fim da II
Guerra, o surgimento dos novos núcleos de poder na Itália (a transferência do
fascismo fascista para o fascismo “antifascista” da democracia cristã). Ora, é
justamente o que
Salò, seu filme apocalíptico (e o último da carreira),
tenta pegar.
Salò, interpretando o romance (experiência-limite) de
Marquês de Sade, interpreta também a ficção da república-fantoche.
Contudo, a sua interpretação não vem ao caso de ser
puramente descrição do “real”, existência de um “real”. As fantasias do
erotismo sadiano, pelo contrário, revelam que o mundo é feito de corpos, mas
corpos fantasmáticos. A fantasmagoria de um filme como
Salò incide na
diferença: não há um sadismo puro, porém uma linha curva no qual o sadismo
opera como masoquismo. A violência cometida ao Outro tem sua razão de ser: isso
é efetivo, essa coisa se efetiva. Para usarmos outras palavras,
o crime é
cometido, mas consensualmente. La meglio gioventù che va sotto terra.
Desse modo,
não há nada mais anárquico que o Poder.
Certamente, o testamento de Pasolini contra as hierarquias da Terra teve a
coragem de expor que o
ánomos, ao contrário do que se acredita, acopla
as Leis (que tanto senhores quanto servos seguem num
pacto). Essa
tendência que Sacher-Masoch expôs tão bem em
A Vênus das peles (1870)
ressoa a tensão constante que o consumo teve para Pasolini no fim dos anos 1960
e começo dos anos 1970: basta vermos, como exemplo, a sua injúria aos cabeludos
de 68 (a banda
The velvet underground, com o toque de Andy Warhol, em
1967, materializa a mudança cultural e a novíssima recepção do
prazer em
consumir e morrer em
Venus in furs). Necessariamente, a partir
disso, Pasolini grafava
Poder (em
p maiúsculo, inominável, sem
figura, sem forma, mas que
age).
Todo pessimismo esconde sob seu véu uma fuga. Afinal,
Pasolini sabia bem que os vagalumes só saem acendendo a noite por aí
precisamente em razão de ser noite. A sua obra tardia, girando no entorno desse
excesso (prestem atenção no quanto o significante “excesso” casa com o “excremento”,
o “exterior”, o “extático” etc.), gruda na essência das trevas, revelando o
sentimento de revolta diante da troca da felicidade (real) pelo
Desenvolvimento
(progresso técnico). Por mais que tenha deixado de lado o messianismo nos
últimos anos de vida, a sua língua – criada, é claro, por si – não deixava de
sonhar, de ainda unir o compasso do sonho à vida…
***
Quero pontuar, por fim, algumas demarcações:
1) obviamente, o instituto da
Poesia, tanto em
Baudelaire quanto em Pasolini, está marcado pelas mudanças culturais
assinaladas pelo
Real. Por isso, a ficção (como
narrativa) tem um
efeito crucial em estabelecer contatos verdadeiros e duradouros. São mais de
100 anos separando um e outro; portanto, se existe uma clivagem entre os dois,
é a partir da própria desenvoltura da arte (aqui, tanto faz se é por poema ou
por filme, se a matéria vem do negativo e vai ao positivo e vice-versa);
2) a
jouissance sinestésica de Baudelaire e a
autoconservação contra o discurso da
joie de vivre de Pasolini só
poderiam advir, então, desse caso: morrer pela festa ou festejar pela morte. As
frases hereges que estão entre o anjo e a besta no texto do poeta francês
acusam diretamente o fim de
Salò o le 120 giornate di Sodoma, quando os
dois rapazes dançam numa sala cheia de pinturas futuristas: a dança da
comunidade e a voz do excesso são, hoje, a mesma coisa. É mais ou menos assim
que o relacionamento entre essas duas figuras “opostas” pode se dar;
3) os valores pelos quais a sina
alegria/ tristeza
está retida não recompensam Baudelaire e Pasolini em unidades. Pelo contrário.
Eles apenas se afastam mais ainda, cindindo. Há um quê inútil no prazer em
Baudelaire, assim como na renúncia em Pasolini. E isso é simples: pensamos na
proposta de Blanchot quando se fala do
fracasso no primeiro e, no
segundo, do
desespero que o assolava (Didi-Huberman);
4) a literatura do excesso não é moderna (que falar de
Satíricon,
de
Pantagruel e Gargântua, dos
Contos de Cantuária?). O
que é moderno é nossa experiência: a experiência do terror em Sade, a
experiência marginal em Baudelaire, a experiência corsária em Pasolini. O
aqui
e agora que corrói a vida fundada na escritura, o desejo e suas faltas, a
maneira pela qual eles todos manejam uma
narratividade, um modo de dizer
– isso tudo alimenta nossa demanda de leitura, nossas
leituras (por
ironia, às vezes um tanto consumistas).
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