Menos que um, de Patrícia Melo

Por Gabriella Kelmer

Patrícia Melo. Foto: Marcelo Tabach


 
Os desafios de conceber um texto literário que dê vazão a questões sociais complexas, como a problemática da falta de moradia, da miséria, do racismo e da transfobia, apenas para elencar algumas temáticas tocadas pelo mais recente romance de Patrícia Melo, são bem conhecidos. De um lado, há o problema da possível objetificação de determinadas linguagens, o que se traduz pela intransponível distância entre narrador culto e personagens desvalidas, bem como pela fetichização do dialeto, da gíria e das regionalidades em um alvoroço pouco convincente de estereótipos; de outro, há a literatura panfletária, os clichês e as construções repisadas, que, se pouco acrescentam ao alcance social dos temas de que tratam, menos convincentes se mostram como matéria literária. Lançado em 2022 pela Leya, Menos que um, em suas mais de trezentas páginas, é bem-sucedido em não apenas evitar essas incorrências, mas também em elaborar um quadro profuso, convincente e visceral da vida nas ruas de São Paulo, em toda a sua cacofonia e diversidade, neste século e nesta década em que vivemos.
 
Ao enfileirar sucessivamente as personagens e seus enredos particulares, cujas vidas cindidas pela desigualdade e pela injustiça se enovelam em um ou outro ponto, o romance evoca tanto a devastação individual e coletiva de Os miseráveis, de Victor Hugo, aliás mencionado em epígrafe no começo da obra, como, em nossas terras, o burocrático e indolente sistema social que marginaliza os meninos de Capitães da Areia, de Jorge Amado. Mais recentemente, cabe pensar a obra ao lado das narrativas de Eles eram muitos cavalos e Inferno provisório, de Luiz Ruffato, pelo espaço elaborado literariamente — a mesma metrópole paulistana — e pela miríade de histórias que se assomam para constituir um vívido panorama das exclusões vivenciadas no espaço urbano. O que diferencia Menos que um destas duas últimas obras é a dedicação à trajetória romanesca de um rol de personagens singularizado em capítulos próprios, tendo elas tempo e condições de introduzirem uma humanidade que é ao mesmo tempo genuína, contraditória e implacavelmente negada no plano narrativo.
 
“Com ele, acontecia outra coisa: mesmo depois de se alimentar, aquela sensação ainda continuava ali. Um buraco no peito. Uma ferida aberta. Outras vezes se sentia doente, como se seu corpo fosse uma panela de pressão, com as tripas e o cérebro cozinhando lá dentro. Agora, cruzava a praça apressado, tanta gente entrava no seu caminho, putas, pedintes, traficantes, um povaréu esparramado pelo chão, vendendo e comprando, implorando, criando caso, e ele seguia apressado entre eles, desviando, esbarrando, com urgência, como se tivesse algo importante para fazer, embora, na verdade, só estivesse matando tempo” (Melo, 2022, p. 48-49).
 
É o centro de São Paulo, no entorno da praça da Matriz, a zona comum que aproxima os seres ficcionais fundamentais ao romance, destacando-se eles do plano de fundo de miséria, desamparo e sujeira que cerca os habitantes em situação de rua da capital paulistana. O venezuelano Seno Chacoy, motorista de carro-pipa, atinge os pertences dos moradores da praça com certo grau de indiferença, sendo flagrado no ato por um fotógrafo que muda o rumo de sua vida. O catador Chilves sonha com luxuosos condomínios e com o extermínio violento da Guarda Municipal, enquanto sua namorada, Jéssica, de quinze anos ainda não completados, visualiza mais modestamente uma casa onde possa viver com a mãe desaparecida. O coveiro Douglas lida com o impacto traumático de valas coletivas e de sepultamentos incontáveis, situação em que descobre, na figura de uma mulher moribunda que passa a viver no cemitério, a história de um menino executado pela polícia. Iraquitan, o Escritor, seleciona palavras para o seu caderno, medindo-lhes a sonoridade e o impacto, o significado e a relação com o mundo, sendo por essa lente que filtra o preconceito, a diferenciação e a condescendência dedicada àqueles que, como ele, têm a vida e a existência resumidas à pobreza e à falta de moradia. A travesti Glenda, que vive no casarão em frente à praça, zanza bamboleante pelos espaços, sendo confrontada a cada novo turno pela violência empregada contra os corpos lidos como desviantes.
 
Cada uma das personagens, ao longo das três partes em que se divide o romance, vivencia a vulnerabilidade e a omissão estatal. Nesse ínterim, o texto produz, a partir de uma linguagem descritiva e direta, que acentua ligeiramente uma ou outra particularidade linguística nas mudanças de perspectiva, um universo em que coexistem amplamente o subemprego, a ação truculenta da polícia, o uso de entorpecentes como escape à realidade sórdida, a prostituição, o aprisionamento arbitrário de pretos e pobres, a existência de grupos de extermínio, a problemática das Comunidades Terapêuticas, a violência transfóbica, a crueldade e a vicissitude do crime, o preconceito, o ódio, a exclusão social, a humilhação e a resistência, que toma forma especialmente na ocupação de um prédio do centro da cidade. Todas essas discussões não apenas se constituem organicamente, convergindo para uma conjuntura de tensionamentos constantes, pois vinculados à ameaça incessante das ruas, como também apontam para a elaboração daquilo que Mikhail Bakhtin chamou heterodiscurso, no qual contraditórias e dinâmicas perspectivas sociais são refratadas no interior da construção literária. É preciso recorrer à contemporaneidade e suas questões irresolutas para compreender a obra em sua inteireza.  



 
Nesse sentido, se é bem verdade que a literatura não precisa ter a pretensão de comunicar algo evidente acerca da sociedade que a gerou, é igualmente claro que ela não deve ter vergonha de fazê-lo. Em Menos que um, essa experiência é desenvolvida sem constrangimentos e sem fórmulas prontas, em uma tendência realista que não deixa de dar vazão aos devaneios e à subjetividade. As personagens, em seus dilemas individuais e em seus sistemas de crenças, não se reduzem a um ou outro marcador identitário, embora a abjeção que geram na sociedade seja um aspecto comum. Elas não raro se contradizem: o letramento racial de um homem convive com sua flagrante insensibilidade perante a maternidade de sua companheira; o amor generoso de uma criança por seu cachorro não inviabiliza a exploração do outro e a velada transfobia; a compaixão e a generosidade não se tornam exclusivas naquela que sente, ao ser ostracizada, a adequação da vida nas ruas — pena terrível — àqueles que a discriminam. À margem da sociedade, os seres ficcionais, submetidos a doenças, à convivência com o escatológico e à constante interpelação, carregam em si suas respectivas bagagens ideológicas, que ora se adaptam, ora resistem a novos estímulos, enquanto aprendem a se proteger da implacável violência das ruas. Desse modo, na mais precária das condições, representam, em alguma medida, o corpo social que a todo custo tenta expeli-los, sendo paradoxalmente essa aproximação o que evidencia a humanidade dos desvalidos em comparação com a indiferença, o ódio e a invisibilização praticados pela sociedade dita civilizada.
 
No texto, os discursos vivem — ainda que temporariamente, antes de seu silenciamento — sem que haja uma lição moralizante à espreita. As opiniões, mesmo se expressas pelo narrador, são intrínsecas às visões de mundo das personagens a quem se vincula o foco narrativo. É nesse sentido que é possível compreender como ora a polícia é descrita como instituição “truculenta, que humilha, tortura e mata”, ora Farol Baixo, um dos traficantes da praça, entra em negócio com os policiais, vendendo “a droga que os macacos roubavam nos depósitos da delegacia”. O mesmo procedimento é empregado quanto ao uso de substâncias químicas e à prostituição, temáticas sobre as quais pesa mais a experiência individual dos sujeitos do que os julgamentos sociais, em geral constituídos pela obra a partir de certo distanciamento, por sua propagação entre aqueles que não podem entender a dinâmica e o sofrimento das ruas.
 
Um exemplo interessante de como o texto se desvia argutamente das moralizações fáceis é o enredo de Seno Chacoy, venezuelano que, tendo deixado para trás o seu país em busca de uma vida melhor no Brasil, atinge os escassos pertences dos desabrigados com uma mangueira a mando do patrão. Ao ser flagrado no ato por um fotógrafo, ele, que já vivia precariamente, com o mínimo para manter sua dignidade, é demitido. Outras tragédias da vida fazem com que perca a casa onde mora e, mais tarde, seja expulso, ao demandar um tratamento humanizado, do albergue municipal onde temporariamente se hospeda. Acaba nas ruas. Em nenhum momento, no entanto, o romance elabora essa queda da personagem como um castigo por suas ações anteriores; sua história é, antes, um retrato de como a subalternização no mercado de trabalho está separada da vida de desamparo e de absoluta suspensão de direitos por apenas um detalhe.
 
“Daí para acreditar que você é de fato tão podre quanto tudo ao seu redor, que sua história não vale porra nenhuma, que seus vínculos não existem, que sua humanidade é de um tipo inferior, que seu corpo é motivo de vergonha, e virar aquela criatura mansa, domesticada, como cachorros de rua, que não latem mais, nem arreganham os dentes, é só um passo. Menos, até. Menos que um” (Melo, 2022, p. 333).
 
Em termos linguísticos, conforme já pontuado, a obra opta por uma narração sóbria, que, com sentenças enxutas no plano das ações, estende-se ao enumerar os elementos do microuniverso caótico da praça da Matriz e ao dar vazão aos momentos idílicos da narrativa, quando o passado, as reflexões e os sonhos das personagens espraiam-se em longos períodos de desejo, rememoração e raiva. A escolha dá velocidade ao romance e permite, de forma simultânea, a compreensão demorada de seus locais e atores mais frequentes. Todavia, em passagens de um capítulo a outro, essa mesma agilidade ocasiona certo atropelo nos acontecimentos, como se a narrativa se apressasse a contar as outras histórias concomitantes. Fica a impressão de alguns trechos mal aproveitados em termos do impacto dos eventos na subjetividade das personagens.
 
Ainda quanto à constituição formal do texto, deve-se destacar a resolução dada pela autora ao impasse dos diferentes registros. Para encurtar as distâncias entre narrador e sujeitos ficcionais, ela opta por uma linguagem sem incorreções gramaticais, mas que abarca tanto termos informais como gírias. Assim, ao narrar o cotidiano de Glenda, é o narrador quem diz que “Lá fora, duas putas brigavam” (Melo, 2022, p. 139), preferindo o termo das ruas à nomeação regimentar dada à profissão, e também é ele quem coloca, em discurso indireto livre, a expressão “Avoa, bicha!” (Melo, 2022, p. 140) como marca do vocabulário da travesti. Por essas escolhas, que evitam de ponta a ponta as contrações, embora abarquem toda a sorte de vocábulos, é possível fazer a transição do discurso direto à narração com naturalidade, havendo tanto a adequação da voz narrativa à disposição dos seres ficcionais como a manutenção da autenticidade destes. Embora seja bem-sucedido o procedimento, é inevitável uma distância entre a composição linguística do romance e a realidade, ajuste que entendemos como fundamental à ficção.
 
O próprio texto, em dois momentos diferentes, reconhece a edição das palavras das personagens pelo narrador. Em um deles, atribui à Jéssica o seguinte pensamento: “É no momento em que chafurdam no sexo que os homens têm revelada sua verdadeira natureza animal, Jéssica pensava. Não com essas palavras. Era mais uma sensação [...]” (Melo, 2022, p. 140). No outro, afirma, do ponto de vista do escritor, que “O Brasil tem muitas formas de matar seus cidadãos, registra o Escritor mais tarde, não exatamente com essas palavras” (Melo, 2022, p. 151). Nos dois casos, admite-se que a narração reformula as palavras dos seres ficcionais. Isso se pode atribuir, no caso de Jéssica, por sua idade e pela ausência de uma educação formal, à impossibilidade de produzir a reflexão nos termos colocados pelo narrador. No caso do Escritor, por outro lado, embora também viva nas ruas, seu amor pelas palavras e sua visão singular do mundo sugerem, ao contrário, que ele alcança um formato linguístico para as ideias veiculadas mais complexo do que aquele apresentado pelo romance. Que o narrador tenha se colocado neste ponto entre as personagens, enformando as palavras que faltam a uma, simplificando as palavras que sobram ao outro, demonstra o caráter desestigmatizante da obra, que não subestima nem desvirtua seus seres ficcionais.
 
Não por acaso, é especialmente nos capítulos de Iraquitan, o Escritor, que as reflexões linguísticas tomam forma. Apaixonado por palavras, toma-as pela sonoridade e beleza, classificando-as em grupos em seu caderno, intitulado “Caderno Anárquico, com a inclusão de Homens Despedaçados (Perfis), Colóquios, Monólogos e Pensamentos Avulsos”. Nele, além dos grupos de palavras bonitas, mornas, sombrias, desidratadas, também registra a vida daqueles que habitam a praça da Matriz, além de outras reflexões sobre a existência precária no centro de São Paulo. O trabalho ardoroso e constante resulta, por tortas vias, em sua descoberta por um editor, sendo assim publicado o seu primeiro livro. Por essa relação editor-escritor, o romance destaca o caráter predatório do mercado literário, que, fascinado por uma subalternização que se recusa a desconstruir em qualquer nível, vende autenticidade e marginalização sem reconhecer nelas nenhum valor genuíno para além do monetário. Ao Escritor continua sendo atribuída uma alteridade desumanizadora em todos os espaços que frequenta; vendem-se os livros, entretanto.
 
“No Caderno Anárquico, Dido ocupa duas páginas inteiras, frente e verso. Pelo registro sabemos que o menino é bom. Sobretudo com os animais. Quando morava em Pernambuco, antes de o pai ser assassinado, criou sem ajuda de gaiola gavião que não voa e lagartixa transparente. O gavião foi atropelado por uma Kombi, mas só morreu uma asa, o resto continuou vivo. Dido o alimentava com girinos. A lagartixa, que se chamava Elétrica, era seu xodó. Morreu comida pelo gato do vizinho. O gato morreu atropelado. O problema de ter bichos é que eles morrem. Agora Dido só tem Afonsinho. Tem também uma faca, que ele chama de “minha esposa”. Tem brinco na orelha. Bermudas coloridas. E vende drogas. Seu capitão: Farol Baixo, que trabalha com os homens” (Melo, 2022, p. 137, grifos da autora).
 
Os dramas pessoais se assomam gradativamente, como faces diferentes de um mesmo panorama desolador. São muitos os enfrentamentos vividos pelos sujeitos, que, expostos a toda a sorte de infortúnios, encontram destinos bem diferentes: a morte, o assassinato, a reunião familiar, a permanência nas ruas. A resolução de cada parte da narrativa é apenas parcial, deixando em aberto algumas das existências flagradas ao longo do romance. Em algum momento, a interposição de violentas desilusões aos escassos momentos de felicidade ou alívio torna-se algo previsível, o que, embora justificado pela virulência do universo criado, antecipa os rumos do romance. O uso da tradição dramática clássica do reconhecimento de parentesco, no encerramento da obra, remonta às telenovelas e aos programas de televisão brasileiros, bem como a uma população feita nômade por circunstâncias sociais adversas.
 
Tudo isso somado, caracteriza-se, ao final da leitura, uma exposição aguda da miséria, por um procedimento que singulariza e desenvolve suas vítimas. O texto, que a todo tempo recorre à humanização dos seres que narra, demonstra, de um lado, o isolamento daqueles que vagam pelas ruas e, de outro, a condição de absoluta impermeabilidade da sociedade que os envolve. No romance, há muitas maneiras e razões pelas quais um sujeito se torna um desabrigado, em um contexto de desajustes sociais advindos de um sistema de renda brutal e de uma sociedade de hierarquias contrastantes. No processo, aos olhos que recriminam, despe-se a dignidade, a individualidade e os sonhos. São exatamente estes os direitos que a literatura em discussão reconstitui às personagens que cria.


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Menos que um
Patrícia Melo
LeYa, 2022
368 p.

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