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Graeme Wilcox. Reflector (detalhe). |
Importante nos atermos que a potência da fala só se tornará
válida se produzir sentido, e este deve pertencer aos seres, atendendo tanto
aos anseios particulares como os coletivos. Assim, no tocante a essa ideia,
encontramos a ética como princípio e item primeiro da narrativa e dos seus
compartilhamentos mediante as visões de Ricœur e Dostoiévski, como podemos
ilustrar neste mais um fragmento de
Memórias do subsolo ao referenciar
que, “Repito, repito com insistência: todos os homens diretos e de ação são
ativos justamente por serem parvos e limitados. Como explicá-lo? Do seguinte
modo: em virtude de sua limitada inteligência, tomam as causas mais próximas e
secundárias pelas causas primeiras e, deste modo, se convencem mais depressa e
facilmente que os demais de haver encontrado o fundamento indiscutível para a
sua ação e, então, se acalmam; isto é de fato o mais importante”. Observamos
nas vertentes expressas que a autoconsciência se encontra também vinculada ao
se reconhecer como limitado, no sentido de ter a consciência do muito a viver,
conhecer, aprender, e com isso ações apresentadas e amparadas por princípios
éticos tornam o homem menos vulnerável e com possibilidade expansiva da sua
compreensão de si e do mundo circundante.
Essa incapacidade perceptiva acontece muitas vezes quando
somos conduzidos por “bezerros de ouro”, como nos propõe o herói de
Memórias
do subsolo: “O ruim (ainda sou eu que o digo) é que as pessoas então talvez
se sintam felizes com alfinetes de ouro. Pois o homem é estúpido, de uma
estupidez fenomenal. Ou, melhor, embora ele não seja de todo néscio, não há
nada no mundo que seja tão ingrato”, isso ocorre por não desenvolvermos a nossa
intelectualidade formativa que nos possibilite o discernimento pela ética dos
valores e sentidos da vida, sem cairmos em pragmatismos doutrinários ou
relativismos estéreis que acabam sendo muito do que temos assimilado na
contemporaneidade.
Ao invés de reconhecermos a capacidade transformadora e
formadora das narrativas, acabamos tomando-a como algo à parte, alheio a nós e,
quando muito, servindo apenas aos desejos de entretenimentos, de passatempos.
Associamos a exclusividade do processo narrativo apenas aos momentos ficcionais
ou de produção histórica. Nos poucos momentos em que nos furtamos da
superficialidade de entendimento da quase exclusividade da presença da
narrativa em nossas vidas, apenas nos vieses ficcionais e até mesmo históricos
ocorrem as nossas leituras e interpretações, sendo direcionadas apenas para
aspectos externos e exações, tornando a produção narrativa como atividade
reparadora de dilemas sociais, de produtos reivindicativos históricos e
legítimos, todavia, isso acaba por comprometer a qualidade da narrativa e o
desenvolvimento ético possivelmente presente, manifestados na expressividade
através da linguagem.
Paul Ricœur em diálogo com Santo Agostinho nos trará
pertinente percepção acerca de importante questionamento: “como mensurarmos o
tempo sem recorrermos a instrumentos mecânicos que nos dão uma ideia
cronológica superficial sobre ele?” No mesmo tom da indagação, como estabelecer
valor ao tempo? Ricœur nos diz no primeiro volume de
Tempo e narrativa
que “o tempo se torna tempo humano na medida em que está articulado de maneira
narrativa; em contraposição, a narrativa é significativa na medida em que
desenha as características da experiência temporal”, portanto, apenas através
das narrativas é que percebemos e qualificamos o tempo, seja por meio de
experiências individuais, coletivas, todas estarão nele imersas sob a égide de
alguma narrativa em que atuamos como protagonistas, coadjuvantes ou meros
espectadores/ leitores/ receptores destas significações e ressignificações em
tempos que serão alterados pelas conduções destas narrativas.
Interessante observarmos, segundo Ricœur, o comportamento do
tempo diante da narrativa. No momento de formulação para o desenvolvimento de
algum enredo, o tempo se porta de maneira figurada, mas a partir do momento da
realização da construção narrativa, este já se encontrará de modo configurado
no amálgama do mundo sendo criado e, posteriormente, estaremos frente a uma
refiguração do tempo mediante os efeitos de catarse da narrativa. Esse processo
expande as nossas percepções sobre os tempos e qualificam as narrativas pelo
compartilhamento de experiências.
Assim, nessa miscelânea de narrativas em que somos
absorvidos, vivenciados, memorizados sob a interatividade mimética, temos a
presença significativa da identidade narrativa, como nos esclarece Paul Ricœur:
“
identidade narrativa de um indivíduo ou de um povo, decorrente da
retificação sem fim de uma narrativa anterior por uma narrativa posterior, e da
cadeia de refigurações que disso resulta. Em suma, a identidade narrativa é a
resolução poética do círculo hermenêutico”, neste meio de interpretativo e de
abordagens hermenêuticas, a constituição de uma poética não pode ser vista
apenas como mera exposição de formas ou teorizações estruturais, mas algo
dinâmico, vivo, perceptivo, e se encontra inerente aos indivíduos e nos meios que
nos circulam.
Destarte, quando nos deparamos com uma possível construção
de uma poética não só em Paul Ricœur, como também em Dostoiévski, seguindo os
passos de Bakhtin, o intuito formulativo nos apresenta uma funcionalidade, como
estamos buscando evidenciar ao longo da nossa exposição: a funcionalidade da
narrativa como instrumento formativo ético. Vejamos esses aspectos pelos
próprios autores em discussão. Diz-nos Ricœur: “Nossa poética da narrativa necessita
tanto de cumplicidade como do contraste entre a consciência interna do tempo e
a sucessão objetiva para tornar mais urgente a investigação das mediações
narrativas entre a concordância discordante do tempo fenomenológico e a simples
sucessão do tempo físico”. Dostoiévski, em
Crime e castigo, ressalta:
“Mas a questão é a doença que gera o crime ou o próprio crime, por sua natureza
específica, de certa forma é sempre acompanhado de algo como uma doença? — ele
ainda não se sentia em condições de resolver”. Mediante essas passagens, nos
deparamos na junção do tempo, narrativa e reflexão; o caminho que se espera
chegar é o da constituição que, para o indivíduo, seja exercida por meio da
espontânea alteridade através da compreensão externa de si e do mundo diante
dos vastos sentimentos humanos, repletos de contradições e diferenças, que nos
ajudam a dinamizar nossas conduções subjetivas e significação, indo mais além
do nomear ou mesmo informar-se.
Ricœur reconhece na linguagem literária essa potencialidade
formativa, como ele nos elucida: “Ora, é principalmente na literatura de ficção
que são explorados os inúmeros modos pelos quais a
intentio e a
distentio
se combatem e se conciliam”. Essas contradições e complementações,
significações e ressignificações da abordagem da narrativa ficcional faz-nos
abandonar o nosso mundo e adentrar em outro, aprendendo na transposição deles
com passagens como esta do pensamento de Raskólnikov em
Crime e castigo:
“Então, é verdade que as pessoas que são levadas para execução se aferram em
pensamento a todos os objetos que encontram pelo caminho?”. Como ser
indiferente a essa reflexão, como não nos inquietar e sentir os efeitos desta
passagem?
A figura de quem assimila estas narrativas e se conscientiza
delas é imprescindível, como nos aponta Ricœur: “sem leitor que o acompanhe,
não há ato configurante em obra no texto; e sem leitor que se aproprie dele,
não há nenhum mundo desdobrado diante do texto”, portanto, não há sentido algum
em apenas se conhecer os esboços dos conteúdos, saber-se apenas da noção do
conteúdo, sem com isso mergulhar-se no universo destas narrativas em que
experiências só são efetivamente compartilhadas e os aspectos formativos
consolidados quando se vivencia a indispensável leitura.
Essa ação no mundo contemporâneo tem se tornado rara, pois,
apesar de mais livros e de mais pessoas escolarizadas/ alfabetizadas, a leitura
voltada para uma mudança de espírito por meio de uma formação ética apresentada
por grandes obras literárias como as de Dostoiévski acaba por constituir um
desafio longe de ser superado. Quando se reconhece o valor da atitude de seletividade
e de assimilação de aprendizagens que possam significar e acrescentar algo na
constituição do indivíduo, acaba ficando como mera expressão retórica sem
maiores efeitos ou empatias. A transformação pela leitura, em especial pela
literatura, continua ainda sendo uma idealização que tem se apresentado no
mundo de tantos recursos distrativos, mas indiferente às ações do cotidiano.
Esse pequeno trecho de um curto diálogo do príncipe Míchkin
em
O idiota perde toda a sua grandeza diante do nosso pragmatismo com a
linguagem, pois, ao expressar: “— Se se zangaram então não fiquem zangadas —
disse ele —, pois eu mesmo sei que vivi menos do que os outros e entendo a vida
menos do que os outros. Pode ser que às vezes eu fale de forma muito estranha”,
em nada nos difere ou toca-nos e acaba sendo algo desconsiderável e até mesmo
imperceptível para a maioria em relação à expressiva humildade, tolerância e
zelo pelo outro. O protagonista de Dostoiévski nos apresenta e nos incomoda por
ser tão bom e por não ser reativo às agressões que muitos lhe emprestam sem
motivo compatível na relação entre causa e efeito. Ele nos apequena não por ser
tão mais, pelo contrário, por ser menos e, desta maneira, nos faz refletir o
quanto não somos bons por não sermos tão ético quanto ele.
Nas escrituras de Dostoiévski nas demais obras, trechos,
deparamo-nos com diversas exemplificações éticas em que podemos corroborar o
sentido hermenêutico da filosofia de Paul Ricœur de uma constituição ética
através da Literatura, na qual nos defrontamos com uma funcionalidade e
serventia com princípios formativos dos sujeitos éticos.
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