Terminar a leitura da
Antologia Pessoal (Record,
2023. 448 p.) de Dalton Trevisan inevitavelmente nos leva a pensar sobre como o
curso da vida dos escritores segue a obra.
Como se sabe, mesmo que já se tenha lido uma história, uma
nova compreensão sempre poderá existir quando a relemos. A coletânea em questão
é “pessoal” como só poderia ser, pois os contos foram escolhidos pelo próprio
autor e devemos agradecer por isso aos ventos da longevidade. Assim, esse novo
passo se mostra entusiasmante por motivações específicas: a escolha e
consequente importância para o próprio autor e a cronologia que nos proporciona
uma visão de sua evolução criativa. Para além, portanto, da função introdutória
das antologias, mesmo os leitores experientes em Dalton e suas conquistas terão
aqui uma boa oportunidade de seguir os movimentos que foram marcando sua
carreira. O que não é pouco, para quem detesta seguidores.
No prefácio/ ensaio de Augusto Massi, que leva o sugestivo
nome de “Antologia como método”, temos a significação da função das antologias
em detalhes. Ele nos esclarece que “Entre 1979 e 2013, o escritor organizou
sete antologias de sua própria obra. Essa experiência permitiu ao contista
realizar, em diferentes etapas da vida, releituras de sua produção literária.
Como toda antologia implica em balanços, recortes temáticos, escolhas e
recusas, as antologias correspondem a uma série de autorretratos: Dalton
Trevisan por Dalton Trevisan”. E nos fornece a ideia fundamental de que para
montar uma é preciso “pinçar o que é realmente original, único, particular”; “o
organizador precisa dominar a totalidade da matéria estudada, possuir vasta
experiência de leituras, mostrar convívio e intimidade com a obra. Espião da
memória. Nesse ponto, estamos em boas mãos. Dalton conhece Dalton como ninguém”.
Mais do que uma releitura (ou releituras), portanto, o fato
dela encerrar 94 contos escolhidos já é suficiente para entendermos que temos
em mãos um sumário a encabeçar um espólio. Com base nesta peculiaridade
reveladora, tratada com grandeza por Massi, lanço algumas considerações sobre a
experiência e as consequências da leitura antológica.
Por primeiro, deduzo como reforçado o pensamento de que ler
e gostar da literatura de Dalton Trevisan é como chegar à conclusão de que a
realidade nada tem a ver com o certo e o errado. Se algo está acontecendo, é
porque pode acontecer, por mais errado ou injusto possa ser segundo nossos
conceitos de bem e mal. Não adianta mostrar desagrado com suas trivialidades.
Dalton é contista sem nenhuma compaixão e resolveu matar lentamente
seus personagens. Mas antes os acometeu de Alzheimer. Os que mantêm a
consciência plena do fim que chega tornam-se delatores do tempo: “Pronto me
calo, a minha mão ponho na boca. Todas as noites do velho são dores, eis que
vem o fim.” Assim acompanhamos o cotidiano de velórios e as coisas que se
costumam fazer e dizer neles. Até mesmo um defunto moço levanta e sorri com
malícia para o menino que repara na unha suja do morto.
É um escritor à frente de suas memórias. Narra neste
instante as histórias daquele tempo, colocando seus personagens envelhecidos a
falar e lembrar, e talvez inventar algo a mais para dar vida à existência
enfadonha das velhices.
Aprendemos com ele que as memórias são o passado possível e
um conto pode ser apenas o punho de um corpo ensanguentado no chão, abrindo e
fechando. Mas também nos serve a clara escuridão das esquinas mentais de todos
nós ou, como queira, de alguém quase como nós. Alguém que já se ouviu falar.
Das desgraças que prognosticamos em salas de espera. A esperança nestas
histórias costuma ser companheira decepcionante e portadora de desencanto.
Sob as mesmas perspectivas, trata ele dos impulsos que nos
vêm ao ler as notícias policiais. Mas não há literatura policial nelas. Não se
procure também por literatura marginal, como a crítica um dia quis que ele
fosse. Como ele mesmo diria, “Cara, me erra”. Usar gírias com elegância é sinal
de sua constante atenção à vida que segue do lado de fora.
Assim, no país das pedras fundamentais, somente Dalton
lembra de escrever um conto sobre um catador de papel. É um autor para
acompanhar o café da tarde de domingo na casa das mães e avós. É para ser
reconhecido nos olhares furtivos da cunhada que resguarda o marido trancado no
quarto.
Enquanto isso, a opinião forasteira adora destacar o
vampirismo, seja lá o que signifique. E, ao mesmo tempo, o ar de literatura da
província. Os próprios provincianos alardeiam essa ideia para se despregarem de
um destino que os escolheu. Nada mais inexato em relação a um autor universal.
Balzac escreveu crônicas da província como jamais se havia escrito. O que
gostamos em Dalton é o discurso de louco de esquina. É a palavra não dita ou
mais adiante sussurrada. Um silêncio conjugal que espanta os ouvidos, logo
dissipado pelo gosto do feijão bem temperado e com caldo grosso. O cotidiano
que se impõe a cada dia a tudo e a todos.
Ao final, portanto, ficamos a refletir sobre toda essa gente
e seu criador. Como sobreviveram e seguiram lado a lado por tanto tempo. Autor
e obra. O mal de tantos personagens, consolo seja para cada um de seus leitores,
e assim “sumirão todos na noite sem fundo do esquecimento”.
448 p.
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