Por Pedro Fernandes
|
Cacaso. Foto: Alcyr Cavalcanti |
É conhecida a descrição de Cacaso
oferecida por Roberto Schwarz que o designa como alguém de estampa
rigorosamente 68: “cabeludo, óculos de John Lennon, sandálias, paletó vestido
em cima da camisa de meia, sacola de couro. Na pessoa dele entretanto esses
apetrechos da rebeldia vinham impregnados de outra conotação mais remota. Sendo
um cavalheiro de masculinidade ostensiva, Cacaso usava a sandália com meia
soquete branca, exatamente como era obrigatório no jardim de infância. A sua
bolsa a tiracolo fazia pensar numa lancheira, o cabelo comprido lembrava a
idade dos cachinhos, os óculos de vovó pareciam de brinquedo, e o paletó, que
emprestava um decoro meio duvidoso ao conjunto, também.”
Esse retrato verbal é
razoavelmente fácil de comprovar na era da imagem. Com ele, Roberto Schwarz
quis destrinçar não apenas a figura de Cacaso mas certas linhas da sua poesia,
algo entre a rebeldia comum aos jovens daquela geração reconhecida como da poesia
marginal e certa infantilidade nunca perdida da criança educada nos caprichos
da avó, o menino tímido e travesso dos tempos de jardim de infância. A obra do
poeta mineiro se ajustaria, dessa maneira, entre o vórtice das poéticas de
contestação a um status quo, mas, no seu caso em sobreposição, procedimento refinado
à medida que o poeta procura descobrir os fundamentos da revolução poética
introduzida por outros jovens seus contemporâneos.
A Poesia Marginal ficou
reconhecida no primeiro instante como produto de uma geração da curtição, do
desbunde, que fabricou seus poemas utilizando-se da experiência biográfica, do circulante
na mídia vigente. É um movimento em que seus ideais são paradoxais desde a
origem, afinal, a atitude contestatória se integrava às primeiras feições da
cultura de massa reinante enquanto
establishment do capitalismo. Trata-se
de uma poesia feita à negação dos modelos acadêmicos que a geração posterior ao
modernismo recomeçava a praticar e que priorizou os meios alternativos ao livro,
fosse pela contingência do seu tempo, fosse uma maneira de um maior alcance da
mensagem poética.
Todas essas noções, por sua vez,
de cunho classificatório, foram vencidas, desde quando o braço acadêmico começa
a integrar os autores (quando não eram eles próprios que passavam a ocupar os
bancos da universidade) no âmbito de uma linha da poesia brasileira. Silviano
Santiago pondera em “Os abutres” que o poema marginal constituía parte de uma
estética da curtição e esta se organizava com os elementos de uma nova
atmosfera cultural e artística, tal como atestaram ainda o próprio Cacaso ou
Ana Cristina Cesar, segundo o levantamento de Frederico Coelho no importante
ensaio para o catálogo da exposição
Poesia Marginal. Palavra e livro. Na
sua leitura, foram as
qualidades negativas ressaltadas na ocasião que se
reafirmaram positivamente mais adiante como parte da qualidade do novo curso das
nossas poéticas posteriores aquelas da Geração de 1945.
Mas, voltemos ao perfil de Cacaso.
Antes da imagem de Roberto Schwarz, alguém poderá encontrar no retrato do poeta
de Uberaba os traços da estereotipia do mineiro do interior forjada pela publicidade
e nas artes. E as matrizes disso podem ser vislumbradas de alguma maneira na
própria poética desse autor, que reencontra com essas qualidades, incluindo os
recursos midiáticos, não com o intuito de realimentá-las, mas desconstrui-las
de maneira irônica; Milena Magalhães entende que “a poesia de Cacaso é derivada
da aproximação a certo mundo e distanciamento de outro. Esses movimentos são
ressaltados muitas vezes pelo recurso da ironia, entendendo esta como o
movimento que a linguagem faz para negar alguma coisa quando nos d
á a impress
ão de estar afirmando-a.” Tal exercício
se pratica com uma variedade de outros motivos consolidados na poesia.
A presença de Cacaso na Poesia
Marginal formou uma das suas três frentes originais do movimento: a dos autores
da coleção Frenesi, que começa a circular pela editora Mapa em 1974.
1
Ele publicara em 1967
A palavra cerzida, “um livro muito tímido e dentro
dos padrões literários do momento”, como assinala Heloisa Buarque de Hollanda.
Grupo
escolar, o livro em questão, comporta o instante de passagem que se
assegura em 1975 com
Beijo na boca e
Segunda classe, quando ele
“começa a abandonar, com mais decisão, o tom elevado e começa um duro trabalho
de desrepressão da linguagem que vai se consolidar definitivamente em
Na
corda bamba (1978) e pouco mais tarde em
Mar de mineiro (1982).”
O título
Na corda bamba,
aliás, traz certo sentido
definidor da poesia de Cacaso. Não é
necessariamente o ponto de equilíbrio entre condições distintas — o adulto e a
criança, o mineiro do interior e o citadino —, mas entre expressões poéticas a
princípio desajustáveis. Não podemos esquecer que com o ofício de poeta, na sua
passagem para os modelos em voga, Cacaso desempenha ainda as atividades do
universo acadêmico, como professor de áreas notadamente rígidas, como a Teoria
da Literatura. Parece, portanto, que sua tentativa é sempre a de encontrar o
ponto de intersecção capaz de
ligar o seu tempo ao de uma tradição poética
na literatura brasileira, tal como demonstra, na maturidade seu interesse pelo
pensamento crítico e teórico.
Da expressão do título de 1978, de
corte popular, não podemos desprezar seu sentido original: a corda bamba é
aquela que se estende no ar e sobre a qual os equilibristas circenses se
deslocam e fazem suas manobras, de acordo com o
Dicionário Houaiss. Essa
imagem, metaforicamente, designa uma situação instável, difícil de controlar. Ora,
os múltiplos paradoxos — os demonstrados e outros que a leitura atenta da
poesia de Cacaso possa revelar — constituem uma qualidade da sua poética, feita
da “difícil manutenção de um equilíbrio instável, quase imobilizante”, para
recuperar a constatação de Heloisa Buarque de Hollanda. Nesse jogo de binômios,
o mais amplo na sua poética talvez seja poesia e vida; o esforço de equilibrar
as duas coisas, sem fazer do objeto poema um puro receptáculo da vida.
|
Cacaso. Foto: Alcyr Cavalcanti |
Vale, uma vez mais, citar Roberto
Schwarz: “Cacaso sonhava muito, porém se concebia como pessoa objetiva e
determinada, a quem o descaso pelos meandros convencionais permitiria um ataque
mais funcional aos alvos que lhe importavam. A sua fé na eficácia de medidas
racionalizadoras da conduta, como por exemplo, a reorganização dos estudos, dos
horários de trabalho, dos sistemas de fichamento, das forças de colaboração e
convívio, chegava a ser desconcertante. Encarava o mundo e a si mesmo com
distância humorística, e achava que os dois mereciam reforma, à qual se
dispunha sem ligar para interesses criados — o que também dava aos seus
projetos algo de conspiração de garotos que sabem o que querem. Queria
construir a sua obra de poeta, queria trazer à luz do dia os podres da conivência
literária, que o exasperavam, queria acertar no amor, queria dar o seu
depoimento sobre o Brasil, queria vencer, e sem dúvida nenhuma queria ganhar
dinheiro com o seu trabalho.”
E é em parte devido ao interesse
pelo dinheiro mas também quando a poesia não dava pé que ingressa na atividade
de letrista, algo que exerceu a vida inteira, complementarmente. O mais rico
momento de produção (na poesia e na música) é o que se inicia nos anos 1970:
“Dentro de mim mora um anjo”, “Amor, amor”, “Face a face”, “Cavalo-marinho”,
“Toada”, “Gingado dobrado, “Uma vez um caso”, “Descompassado”, “Coração
noturno”, “Canudos”, “Sanha na mandiga”, “Branca Dias”, “Lero-lero”, “Flauta de
lata”, “Meio-termo”, “Feito mistério”, “Santa Marina”, “Festa no céu”, “Dias
dos pais” e “Sem fim” são algumas das letras nesta década realizadas sozinho ou
em parceria com outros compositores; uma produção que, olhando para sua poesia
(e também a prosa), ultrapassa sua própria obra como escritor e parece marcar
seu repouso com os impasses no âmbito da expressão literária. É que na música,
desabrocha, ainda que torto, o lirismo, que possivelmente o agradava e — homem
engajado no seu tempo —, não mais o encontrava como sentido ou matéria para poema.
No levantamento mais recente para
a publicação da poesia completa, conta-se que entre pouco tempo antes do
primeiro livro — o marco é a letra “Carro de boi” feita em 1965 para uma canção
de Maurício Tapajós — Cacaso escreveu cerca de 280 letras ao lado de nomes dos
mais diversos do circuito musical, como Edu Lobo, Sueli Costa, João Donato,
Toquinho, Tom Jobim e muitos outros; criações que ganharam a voz de intérpretes
como Elis Regina, Nana Caymmi, Emilio Santiago, João Bosco, Milton Nascimento,
Djavan e Simone.
De tempos em tempos a obra de
Cacaso ganha novas expansões, seguindo um rito de outros poetas de seu tempo.
Depois da sua morte precoce — contava apenas 44 anos e estava em plena
atividade —, três edições até agora contribuíram para a sobrevida do escritor. Em
2002, saiu pela exímia coleção Ás de Colete, coordenada pelo também poeta
Carlito Azevedo, Lero-Lero (1967-1985); a publicação reuniu seus seis
livros e incluiu uma seleção de poemas inéditos ou coletados de aparições
esparsas e ainda anteriores ao seu livro de estreia. Cacaso se inicia na poesia
ainda na adolescência e entre A palavra cerzida, um livro que ele mesmo
dizia ter sido seu fracasso porque não foi lido e nem circulou quando veio
a público, e a sua inserção no grupo de Frenesi, manteve intensa sua atividade
poética.
Um novo fôlego se apresenta em 2020.
Na correnteza de uma reconstituição da obra dos principais nomes da poesia marginal,
publica-se Poesia completa. Neste volume, Heloisa Jahn recolhe uma variedade
de inéditos a partir de uma pesquisa com os 23 cadernos do poeta que abrangem
dos anos de 1977 a 1987. No mesmo volume, seguindo certa revalorização da letra
de música depois do Prêmio Nobel de Literatura para Bob Dylan, sai uma seleta
organizada por Rosa Emília Dias com sessenta das composições de Cacaso.
Por essa ocasião, reeditou-se em livro digital oito contos, reabrindo-se o interesse pelas incursões de Cacaso na prosa de ficção. Elas acontecem no final dos anos 1980, quando publica na revista Novos Estudos Cebrap, os textos “Inclusive... aliás...” e “Buziquim”. Preparada por Mariano Marovalto, a publicação eletrônica Doutor caneta reuniu estes e outros seis contos.
Antes das duas antologias com a poesia e da reunião de contos de Cacaso, o primeiro passo de expansão da sua presença em livro acontece
com Não quero prosa (1997). Organizado por Vilma Arêas, o livro é uma amostra
da intenção nutrida pelo escritor em sistematizar e construir uma compreensão
acerca da poesia de sua geração no âmbito da literatura brasileira. Aqui, regressa
o Antônio Carlos de Brito — ele só passa a assinar os livros com o nome
referido até agora neste texto e que o fez reconhecido a partir de Na corda
bamba. Dois trabalhos se destacam nesse conjunto da sua prosa: o estudo inacabado
sobre Francisco Alvim “Poeta dos outros” e a tese segundo a qual a geração
marginal trabalhava coletivamente na feitura de um só poema, “em que a poesia
tornou-se um banquete de todo” — para recuperar suas próprias palavras.
Uma visita ao ainda mais extenso e
complexo universo da poesia na literatura brasileira é o suficiente para
atestar que as poéticas derivadas da geração de Cacaso, incluída, claro está,
sua própria obra, se estabeleceu como uma linha de força; seus herdeiros se
mostram de norte a sul do Brasil. O acaso, a impermanência ou o inerente da
Poesia Marginal que tanto pareceu preocupar o poeta quando se coloca como decifrador
do seu tempo ainda permanece e agora como modelo para as poéticas em curso.
Chegará a clássico?
Notas
1 É como Frederico Coelho, no já
referido ensaio, designa. A primeira frente era formada por Cacaso, o próprio
Roberto Schwarz — que publicou na coleção Frenesi, Corações veteranos —,
Francisco Alvim, Geraldo Carneiro e José Carlos Pádua. À segunda frente
pertencia a dupla “que representava o grupo histórico da cultura marginal
carioca”, Torquato Neto e Waly Salomão. E, à terceira frente, inclui-se os
autores apresentados por Heloisa Buarque de Hollanda, da chamada “geração
mimeógrafo”: Chacal, Charles e Bernardo Vilhena. Em torno dos nomes aqui
referidos, circularam vários outros autores e uma mostra deles se encontra na
antologia 26 poetas hoje, lançada em 1976 pela editora espanhola Labor.
Referências
Coelho, Frederico. “Quantas
margens cabem em um poema? Poesia Marginal ontem, hoje e além”. In: Ferraz,
Eucanaã (org.). Poesia Marginal: palavra e livro. São Paulo: Instituto
Moreira Salles, 2013.
Hollanda, Heloisa Buarque de. “Falando
sério sobre Na corda bamba & outros livrinhos”. In: Brito, Antônio
Carlos de. Poesia completa. São Paulo: Companhia das Letras, 2020.
Magalhães, Milena. Cacaso não é
bem o caso do acaso. Alea: Estudos Neolatinos, Rio de Janeiro, vol. 1,
n. 8, jan. 2006.
Schwarz, Roberto. “Pensando em Cacaso”.
In: Sequências brasileiras. São Paulo: Companhia das Letras, 2019.
Comentários