Por Henrique Ruy S. Santos
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Milton Hatoum. Foto: Olga Vlahou |
Milton Hatoum nasceu em 1952, na
cidade de Manaus, Amazonas. É autor, até o momento, de seis romances, um livro
de contos, várias traduções e produções de cunho acadêmico, oriundas de sua
atuação como professor de literatura em universidades brasileiras e
estrangeiras. Chama a atenção, em sua produção escrita, a afeição por questões
relacionadas à sua ascendência libanesa. De fato, como o próprio escritor
declara em entrevista, ele sempre esteve imerso em uma atmosfera culturalmente
versátil, em que o português e o árabe disputavam o posto de língua materna:
“Antes de mais nada, a noção de
pátria está relacionada com a língua e também com a infância. O que mais marca
na vida de um escritor, talvez seja a paisagem da infância e a língua que ele
fala. Eu me lembro - a propósito do dilema: falar árabe ou falar português — de
que minha mãe dizia que eu deveria falar português, porque a língua é a pátria.”
Uma perspectiva transcultural esteve
sempre presente na vida do autor, fazendo-se sentir em sua produção intelectual
e no processo compositivo de alguns de seus romances. É o caso de
Relato de
um certo Oriente, primeira obra publicada por Hatoum, na qual a presença de
personagens imigrantes e a elaboração espacial de uma Manaus para onde converge
uma multiplicidade cultural evidente revelam o caráter essencialmente variado
da experiência subjetiva.
No âmbito do aproveitamento estético
e ficcional do ambiente da sua terra natal, a construção do que se entende por
Amazônia em termos de identidade natural e paisagística é uma preocupação
revelada explicitamente pelo autor quando diz que: “A brasilidade está presente
na língua, mas não sei até que ponto está presente numa paisagem brasileira:
porque não sei se se pode definir exatamente ‘paisagem brasileira’ para quem é
da Amazônia. A Amazônia não tem fronteiras; sim há uma delimitação de ‘fronteiras’,
mas para nós não passam de fronteiras imaginárias.”
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A preocupação com o assentamento de
uma ideia de nacionalidade ou de regionalidade que pudesse emergir da
transfiguração, para o plano estético e literário, do arranjo natural das
paisagens brasileiras foi sempre um espectro a rondar o processo de formação da
identidade literária do país. Se muitas vezes a mera catalogação literária da
fauna e da flora satisfez os anseios pioneiros do Romantismo (um dos “momentos
decisivos”, nos dizeres de Antonio Candido, para a formação de nossa
literatura), não o fez, entretanto, sem certa resistência de espíritos letrados
da época, como se atesta pela famosa crítica machadiana em “Instinto de nacionalidade”.
Para Machado de Assis, “um poeta não é nacional só porque insere nos seus
versos muitos nomes de flores ou aves do país, o que pode dar uma nacionalidade
de vocabulário e nada mais” (1967, p. 104).
De maneira análoga, a criatividade
literária de Milton Hatoum está muito mais voltada para o aprofundamento
psicológico das personagens, em detrimento da representação de imagens
estereotipadas, seja da Amazônia, seja dos indivíduos que a habitam. Hatoum,
como que ciente das dificuldades de se delimitar e de se precisar um conceito
de Amazônia — como já sinalizara, entre outros, o geógrafo Eidorfe Moreira
(1958) —, opta pelo entrecruzamento cultural com inegáveis toques
autobiográficos para revelar uma região ainda inexplorada em nossa literatura.
Não se queira entender pelo que
agora se disse que a Amazônia não havia sido figurada literariamente antes de
Milton Hatoum. O que se quer dizer é que a criação ficcional operada pelo autor
amazonense inova, dentro desse cenário, pelo aproveitamento de novos aspectos
sociais e humanos em uma obra que, segundo Alfredo Bosi, um dos mais eminentes
críticos literários do Brasil, “lembra a tradição do nosso melhor romance
introspectivo” (2006, p. 437).
Nesse âmbito em que pululam
personagens marcantes, a figura de Emilie, no romance
Relato de um certo
Oriente, destaca-se como uma mulher cuja complexidade como entidade
ficcional revela toda a tensão cultural tão característica da produção de
Hatoum. A análise do papel que a personagem ocupa na narrativa auxilia a
compreender tanto a representação feminina no romance quanto a construção de
uma determinada Amazônia pela via da elaboração estética. Sua trajetória na
obra, dada a conhecer por meio de relatos por vezes fragmentários de outros
personagens, aponta para um contexto em que as mediações de uma determinada
ordem de gênero patriarcal se fazem sentir à medida que interpelam a própria
personagem em seus relacionamentos com os outros e com “O Outro”.
Em
Relato de um certo Oriente,
tem-se a narração do retorno de uma mulher à cidade de Manaus, lugar onde viveu
sua infância, após vinte anos de ausência. Por meio do relato dessa mulher a um
irmão que vive em Barcelona, acompanhamos os acontecimentos marcantes vividos
por uma família libanesa da qual a narradora fazia parte como filha adotiva.
Nesse grande relato, outras vozes se fazem presentes, atuando como relatos
encaixados que colaboram para fornecer diferentes perspectivas à matéria
narrada. Desse modo, atrelados ao relato da narradora principal, temos as vozes
de Hakim (tio adotivo da narradora), Dorner (fotógrafo alemão amigo da família),
do patriarca da família e de Hindié Conceição (amiga da família).
A morte da matriarca, Emilie, é o
acontecimento catalisador de todos os relatos, o que faz com que a personagem
adquira importância fundamental durante toda a narrativa (de certa forma, é ela
quem “dá à luz” a narrativa). Apesar de não ser uma das vozes que compõem o
todo da narração, a presença da matriarca faz-se sentir em todas as memórias
relatadas, como se compreender suas atitudes e seus sentimentos fosse tarefa
fundamental para que as outras personagens pudessem dar sentido às suas
experiências como parte de uma família. A certa altura da obra, a narradora
torna esse sentimento explícito ao dizer que “ninguém podia viver longe de
Emilie, nem refutar suas manias” (Hatoum, 2008, p. 21).
Emilie é mãe de quatro filhos:
Hakim, Samara Délia e mais dois homens, descritos pela narradora como
“inomináveis, filhos ferozes de Emilie, que tinham o demônio tatuado no corpo e
fogo na língua” (Hatoum, 2008, p. 10). Além desses, Emilie adota mais duas
crianças, sendo uma delas a narradora principal e a outra, seu irmão,
personagens que também permanecem inominados no romance.
Durante a leitura da obra, a
maternidade se revela um forte atributo de Emilie, que se entrega ao papel de
mãe e assume essa identidade com prazer. Seu modo extravagante de vestir o
filho e alçá-lo a um pedestal para que fosse adorado pelas outras mulheres,
conforme dito pela narradora a seu irmão, é uma forma de obter reconhecimento
para si como mãe:
“Era uma incongruência que te cobria
da cabeça aos pés: botas, bordados, meias compridas, extravagâncias de Emilie,
que te acomodava numa cadeira alta, tuas pernas no ar, e sentias uma espécie de
vertigem porque olhavas para o chão como se fosse um abismo e lá no alto
permanecias imóvel: estatueta ou brinquedo para os adultos que te contemplavam
[...]. Emilie se regozijava durante essa sessão de idolatria, fazia gosto
observar sua postura de mãe do mundo, estendida sobre ti tal uma redoma
radiante a inflar perpetuamente, e confesso que era quase uma humilhação para
as outras crianças presenciar essas cenas de devoção, de êxtase” (Hatoum, 2008,
p. 23-24).
Sua atitude como “mãe do mundo” não
se estendia apenas ao círculo familiar. Emilie também zelava pelos pobres de
Manaus, que faziam filas enormes à porta de sua casa para receber seus
cuidados. A matriarca lhes oferecia comida e cuidava de suas doenças e, em
troca, os curumins e mendigos “ofereciam presentes que eles preferiam chamar de
‘lembrancinhas para a mãe de todos’” (Hatoum, 2008, p. 113). Hakim, filho
preferido de Emilie, duvidava, todavia, de que os motivos de tais atos de
benevolência fossem fruto de uma verdadeira generosidade:
“Eu procurava ver nesse gesto uma
atitude generosa e espontânea da parte de Emilie; talvez existisse alguma
espontaneidade, mas quanto à generosidade... devo dizer que as lavadeiras e
empregadas da casa não recebiam um tostão para trabalhar, procedimento corriqueiro
aqui no Norte. Mas a generosidade revela-se ou se esconde no trato com o Outro,
na aceitação ou recusa do Outro” (Hatoum, 2008, p. 96).
No trato com o “Outro”, conforme
atesta Hakim, Emilie não demonstrava a mesma complacência. Mas quem seria, no
romance, esse “Outro” mencionado pela personagem?
Em
Relato de um certo Oriente, a
personagem de Emilie, não obstante o tratamento caridoso para com os pobres da
cidade e os cuidados que despende aos filhos homens, trata as outras mulheres
de forma nociva. Com relação à empregada Anastácia, por exemplo, “Emilie sempre
resmungava porque Anastácia comia ‘como uma anta’ e abusava da paciência dela
nos fins de semana em que a lavadeira chegava acompanhada por um séquito de
afilhados e sobrinhos” (Hatoum, 2008, p. 96). Além de Anastácia, muitas outras
empregadas recebem maus-tratos na casa da família, principalmente devido aos
abusos físicos e psicológicos cometidos pelos irmãos “inomináveis”.
Em um episódio do romance, frente à
ira do marido ao tomar conhecimento de mais uma atitude ultrajante dos filhos,
Emilie prontamente os defende, exime-os de toda culpa e acusa as mulheres pelas
próprias desonras sofridas:
“O bate-boca com Emilie foi
tempestuoso e breve: que não era a primeira mulher que aparecia na Parisiense
com um filho no colo, dizendo-lhe ‘esta criança é seu neto, filho do seu filho’;
que não atravessara oceanos para nutrir os frutos de prazeres fortuitos de
seres parasitas; que naquela casa os homens confundiam sexo com instinto e, o
que era gravíssimo, haviam esquecido o nome de Deus.
— Deus? — contra-atacou Emilie. — Tu
achas que as caboclas olham para o céu e pensam em Deus? São umas sirigaitas,
umas espevitadas que se esfregam no mato com qualquer um e correm aqui para
mendigar leite e uns trocados” (Hatoum, 2008, p. 98).
Percebe-se, nas atitudes de Emilie,
uma adesão à ordem patriarcal, entendida aqui, entre outras características,
como uma ideologia “que atribui qualidades positivas aos homens e negativas,
embora nem sempre, às mulheres” (Safiotti, 2004, p. 34). É possível analisar a
forma como a personagem de Emilie é representada na obra levando-se em
consideração essa ideia de patriarcado, em que sua figura atua como uma espécie
de reprodutora, no âmbito familiar, da ideologia que privilegia o homem e
relega a mulher às posições subalternas.
Emilie, portanto, atua de forma
central nos papéis de reprodução social necessários à manutenção de uma
determinada ordem de gênero, destacando-se como a figura responsável por
assegurar, no âmbito do núcleo familiar e doméstico em que se detém a
narrativa, a manutenção de certos papéis femininos (normalmente atrelados à
submissão) e masculinos (o comportamento predatório e violento dos filhos).
Entretanto, além da observação do
papel que a personagem ocupa dentro de uma ordem patriarcal, é possível
perceber a função exercida pelo discurso religioso cristão (mais
especificamente, católico) na apreensão da realidade social por parte de Emilie.
Entre as poucas informações
presentes no romance acerca do passado da personagem, é dito que, durante a
juventude, após seus pais partirem do Líbano “em busca de uma terra que seria o
Amazonas” (p. 35), Emilie se enclausurara no convento de Ebrin, ocasionando
conflitos religiosos com o irmão Emir (conflitos esses que viriam a se repetir
entre Emilie e seu marido). Mais tarde, Emilie continuaria praticando o
catolicismo, sempre apegada a suas imagens de santos e às ave-marias, apesar do
cenário de tensão gerado pelo fato de o marido ser muçulmano e não concordar
com os costumes cristãos.
A subjetividade de Emilie e seu
processo de construção de identidade se dão, portanto, sob a influência
premente dos dogmas cristãos, sendo o catolicismo um fator cultural que
influencia fortemente as atitudes da personagem. No entanto, no livro de
Hatoum, como em toda boa literatura, não se trata de observar os fenômenos em
sua concretude real (ou mesmo aparente), mas sim de experienciá-los sob o
prisma da linguagem a fim de que alguma verdade seja alcançada. No caso de
Emilie, cabe averiguar as manifestações da religiosidade por parte da
personagem, muito mais do que analisar preceitos de um catolicismo real.
Nesse sentido, a posição que assume
para si como “mãe do mundo” assegura a Emilie uma aproximação à figura
arquetípica e ideal de Maria, essencial à mitologia cristã. Entretanto, um
efeito notável desse processo é que, de forma simultânea a essa aproximação
ideal, a conduta de Emilie permite-lhe o distanciamento em relação a quem um
dos narradores denomina apenas de “Outro”. Como já vimos, esse “Outro”
designava principalmente as mulheres da região que trabalhavam na casa de
Emilie e que frequentemente eram vitimizadas por seus filhos. Trata-se,
portanto, de um distanciamento que busca, por meio de um comportamento
pretensamente virtuoso, delimitar campos sociais distintos: de um lado, a
figura de Maria “mãe do mundo”; de outro, as Evas “espevitadas que se esfregam
no mato com qualquer um” (Hatoum, 2008, p. 98).
Em um trecho da narrativa, a
personagem deixa ainda mais clara essa antítese:
“Uma frase de Emilie, que bem ou mal
traduzi e nunca mais esqueci, dizia mais ou menos assim: ‘Um porto é um lugar
perigoso para os jovens porque quase sempre são vítimas de um vírus fatal, o do
amor’. Na mesma carta abundavam expressões como ‘mulher da vida’, ‘torpe
desejo’ e ‘tentações do capeta’” (Hatoum, 2008, p. 95).
A oposição tão incisivamente
demarcada entre as duas figuras da mitologia cristã, no contexto do romance,
insinua um desejo de distinção por parte de Emilie, em um processo que, muito
mais do que ressaltar o posicionamento das mulheres da narrativa em diferentes
classes sociais ou em diferentes zonas culturais, reatualiza, de maneira
altamente complexa, a dicotomia pecadores/não pecadores e, por extensão,
civilizados/não civilizados e natureza/cultura.
Emilie constitui-se como uma
personagem que incorpora os valores religiosos (e católicos) da maternidade,
atuando como o grande núcleo familiar para onde se direcionam todos os outros
conflitos. Ao incorporar tais valores à sua própria maneira, Emilie acaba por
se tornar propagadora de uma ideologia que inferioriza a própria condição
feminina, privilegiando, no trato social, os homens.
Do que podemos apreender da visão de
mundo da personagem, verifica-se uma incisiva tentativa de distanciamento entre
si e as outras mulheres da região, operada pela via de um discurso que segrega
mulheres “puras” e “ímpias”, Marias e Evas.
A análise da personagem permite
verificar, portanto, a maneira pela qual a representação feminina no romance
põe em jogo uma complexa tensão entre campos culturais e sociais distintos e ao
mesmo tempo semelhantes. Distintos pelo inevitável choque cultural que surge
das diferentes origens dos personagens e de suas diferentes práticas culturais
(libaneses, brasileiros, cristãos, mulçumanos), mas semelhantes quando
praticamente todos os personagens parecem falar (relatar) de (sobre) um certo
Oriente, seja o Líbano, seja a Amazônia, seja a condição feminina.
Notas
1 Entrevista concedida à professora
Aida Ramezá Hanania, em novembro de 1993, disponível
aqui.
Referências
ASSIS, Machado de.
Crônicas,
crítica, poesia e teatro. São Paulo: Cultrix, 1967.
BOSI, Alfredo.
História
concisa da literatura brasileira. 44. ed. São Paulo: Cultrix, 2007.
HATOUM, Milton.
Relato de um certo
Oriente. 3. ed. São Paulo: Companhia das Letras, 2008.
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