As consequências e o peso da virtude em Os Miseráveis
Por Guilherme França
Bartolomé Esteban Murillo. O retorno do filho pródigo. 1667. |
Escrever sobre os chamados
“clássicos da literatura mundial” é uma tarefa grata e ingrata ao mesmo tempo.
De um lado, o crítico pode consultar diversas fontes, debruçar-se sobre
artigos, dissertações ou teses que versem sobre o livro ou mesmo conversar com
os amigos a respeito de tal obra, pois é bem provável que já tenham realizado essa
leitura. De outro, existe um nítido problema: quase tudo foi falado, em todos
os lugares e em épocas distintas. Com isso, é inevitável que se questione a
necessidade ou mesmo a pertinência de um novo texto acerca deste ou daquele
clássico.
Seja como for, arrisco escrever
algumas considerações sobre um aspecto específico da obra Os Miseráveis,
de Victor Hugo. Sobre este romance, que figura entre os mais conhecidos ao
redor do mundo, como era de se esperar, muita coisa já foi dita. E em quase
todas as análises que leio a respeito da obra, percebo uma certa insistência
nos comentários sobre problemas sociais e econômicos, revoltas e revoluções, condições
de vida dos trabalhadores e da burguesia, aspectos românticos e costumes da
época, controvérsias políticas etc.
Contudo, em meio a devaneios
quaisquer sobre a obra, acabei por fazer uma pesquisa e encontrei pouquíssimos
textos que discorressem a respeito daquilo que, a meu ver, é o fio condutor de
interpretação para toda a história ali contada, qual seja, a promessa feita por
um ex-condenado a um sacerdote: a de ser um homem virtuoso. Eis aqui, de acordo
com a minha percepção, o acontecimento crucial para o desenvolvimento de todo
este extenso e complexo romance.
Logo no início da narrativa, Jean Valjean,
um homem que acaba de sair da prisão após ter sido condenado a 19 anos de
trabalhos forçados pelo furto de um pão, procura abrigo num pequeno vilarejo.
Percebendo que aquele homem era portador de um passaporte amarelo (reservado
aos ex-presidiários), os proprietários dos albergues locais logo o expulsam. O
único a lhe fornecer abrigo é o Bispo Charles Myriel, conhecido como Monsenhor
Bienvenu. Porém, traindo a generosidade do hospedeiro, durante a noite, o abrigado
furta os talheres da casa e foge. Não consegue ir muito longe. Pouco depois de
sua saída é pego por policiais, que o levam novamente à casa do Bispo, a fim de
que devolva os itens furtados e seja preso mais uma vez.
Nesse exato momento, a vida de
Jean Valjean poderia ter acabado. Já não era mais um jovem e aqueles longos
anos de trabalhos forçados seriam retomados após ter usufruído de poucas horas
em liberdade. O leitor, então, fica diante de um homem em estado de revolta e
sem qualquer esperança de voltar a viver dignamente em sociedade. Agora, para
piorar, havia cometido um crime contra alguém que bondosamente lhe concedera
comida e abrigo. Nada além de novas misérias poderia ser esperado por este
fugitivo, não fosse a caridade, a compaixão e a misericórdia do religioso que o
acolhera na noite anterior.
Questionado pelos policiais se
reconhecia aquele sujeito e os utensílios que carregava consigo, o bispo
responde que sim. Enquanto os soldados já se preparam para levar o preso à
delegacia, o sacerdote repreende o ladrão, dizendo que ele havia esquecido de
levar, também, os castiçais de prata, fazendo crer, em frente à guarda, que os
talheres encontrados com o preso, na verdade, haviam sido um presente a Jean
Valjean.
Com esse ato arriscado e quase
incompreensível gesto, sob a ótica de muitos, o sacerdote salva o homem de ser
preso novamente. O bispo então lhe entrega os castiçais dizendo, porém, que com
aquela prata havia “comprado” sua alma, advertindo-o de que, a partir daquele
dia, ele deveria se tornar um homem honesto diante de Deus.
A importância desse acontecimento
para o restante da narrativa (e da vida de Jean Valjean) é muitas vezes
menosprezada. Talvez isso ocorra de forma proposital ou pelo fato de Os
Miseráveis fornecer aos críticos um material de trabalho quase infindável,
que geralmente conta com mais de 1.500 páginas, numa história que passa por
diferentes dramas, paixões, épocas, cenários, personagens, lugares etc., mas quase
sempre envolvendo as reflexões, as decisões e as atitudes de seu protagonista. Prefiro
acreditar na segunda opção.
E por essa razão, ou seja, pelo
fato de toda a história envolver a vida de Jean Valjean e pessoas próximas a
ele, é que defendo a importância de sua promessa ao bispo para as consequências
daí advindas. Como exemplo, podemos citar o encontro com o garoto Gervais, que
derruba uma moeda no chão. Valjean coloca seus pés sobre a moeda e se dispõe a
agredir o rapaz para não devolvê-la. Após o proprietário do dinheiro fugir,
quando se recorda do que o bispo havia lhe dito, o homem se arrepende
instantaneamente, deixando claro, talvez pela primeira vez, o que tento dizer
neste texto.
Entretanto, essas crises de
consciência e os rompantes de virtude que assolam o personagem são frequentes e
o seguem até o fim da história. Se olharmos para as ações de Jean Valjean, em
muitos momentos enxergaremos uma certa bondade, elemento que o torna essa
espécie de anti-herói transformado em herói: os cuidados com Fantine até a sua
morte; a criação de Cosette como sua filha, protegendo-a de todas as formas; o
auxílio a Fauchelevent durante um acidente, salvando a sua vida, assim como a
do jovem Marius. Por que, então, quase nunca lembramos do motivo pelo qual essa
espécie de transição moral ocorre?
Aliás, certa vez, conversando a
respeito da obra, ouvi que as decisões virtuosas de Valjean não passavam de uma
covardia, visto que ele prejudicava outras pessoas (a exemplo de Cosette) com
sua “moralidade excessiva”. É uma interpretação possível, porém, em minha
percepção, isso seria ignorar justamente a motivação primordial de seus atos,
que estava alicerçada em algo maior, muito maior, do que o mero prejuízo ou desconforto
terreno e circunstancial. As decisões daquele homem estavam pautadas não na comodidade,
mas na promessa de que seria alguém virtuoso. Promessa, aliás, feita olho no
olho, a um homem que havia ensinado a ele o significado de misericórdia e
bondade.
Assim, não há como compreender
toda a profundidade existente no agir de Jean Valjean se não deixamos de lado a
nossa visão materialista e egocêntrica da realidade. Notamos que não há
joguinho de palavras, desconforto ou medo de injustiças que faça esse Jean
Valjean transformado mudar o seu caminho, pois não existe nada que esteja acima
de um dever sentido pela própria alma. Fazendo uma promessa ao bispo, Valjean finalmente
entendeu que fazia, em última instância, uma promessa a Deus.
Costumo dizer que a busca
incessante pela “desconstrução” pode ser algo perigoso, pois, se desconstruímos
tudo sem construir algo em seu lugar, sobrará o vazio. Por isso, quando percebo
uma busca desenfreada por interpretações literárias que se dizem modernas,
livres, despojadas, inovadoras etc., passo a desconfiar e temer que dali sairá
uma completa confusão sobre as pretensões originais da obra ou do autor.
Portanto, nessa minha pequena
contribuição para a leitura de Os Miseráveis, certamente um clássico da literatura
mundial, ressalto a importância de que retornemos humildemente aos alicerces da
vida humana, a fim de que saibamos identificar as bases que sustentam alguns
dos fatos que buscamos interpretar isoladamente. Nem tudo foi ou será mera construção.
Nem mesmo o agir virtuoso de Jean Valjean, que morreu sob as luzes daqueles
castiçais de prata.
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