Por Jon Viar
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Alfred Jarry na sua Clément De Luxe, 1896, em frente ao Phalanstère de Corbeil. |
No passado dia 8 de setembro de
2023 comemorou-se os 150 anos do nascimento do dramaturgo simbolista Alfred
Jarry. É curioso que esta efeméride tenha passado um pouco despercebida, pois a
figura de Jarry é essencial para a compreensão do século XX. Existem dois temas
no pensamento e na obra do autor. São os dois temas de sua obra: por um lado o grotesco
personagem Ubu, e por outro lado a “patafísica”. Ambas as questões são sintomas
de uma adolescência turbulenta marcada pela figura ridícula do professor de
física do Liceu de Rennes, Monsieur Félix-Frédéric Hébert. O simpático
professor tentava fazer experimentos físicos que nunca devam certo e sua
obesidade mórbida era motivo de ridículo para os alunos. Começaram a chamá-lo
de “Père Héb” e o descreviam como tendo uma única orelha e três dentes: um de
metal, um de madeira e outro de pedra.
Por geração, ligado ao simbolismo,
Jarry tinha doze anos quando Jean Moréas publicou o seu “Manifesto Simbolista”
em 1885. Esse breve texto começa dizendo que, “como todas as artes, a
literatura evolui ciclicamente”. E continua a assegurar que se trata de uma
“evolução cíclica com as voltas estritamente delimitadas e que se complicam por
suas diversas modificações provocadas pela marcha do tempo e pelas perturbações
coletivas.” Esta evolução cíclica significaria um regresso à origem, mas com
uma nova perspectiva. Talvez a parte mais interessante da compreensão venha a
seguir, quando Moréas explica que “seria supérfluo mostrar que cada nova fase
evolutiva da arte corresponderia exatamente à sua decrepitude senil, ao fim
inelutável de uma escola imediatamente anterior”.
Vale lembrar a tensão que se
manifestou durante a segunda metade do século XIX entre as correntes realistas
e naturalistas, de um lado, e as correntes parnasianistas, de outro. E então
apareceu o simbolismo e quase ao mesmo tempo o gênio de Jarry. Com a sua
inocência adolescente, o autor nascido em Laval e criado em Rennes não teve
medo dos sinais dos tempos. As façanhas românticas e as paixões idealizadas estavam
acabadas. O épico também. Chegou a hora do “decadentismo”. Os detratores deste
movimento simbolista compreenderam que qualquer renovação seria pouco saudável
e desastrosa.
Jarry então investigou os
fantoches e marionetes de sombra chineses querendo explorar linguagens nas
quais pudesse se sentir completamente livre. Sonhava com uma arte libertada
daqueles espartilhos que lhe pareciam anacrônicos. Assim, foi nesse mesmo ano
de 1885 que os alunos do Liceu de Rennes começaram a caricaturar a figura do
seu professor Hébert. O que começou como uma série de piadas de mau-gosto
culminaria numa série de textos teatrais.
Ubu rei foi a criação de Jarry
com dois de seus colegas do liceu (os irmãos Charles e Henri Morin). Em 1888,
Henri Morin mostrou a Jarry um texto teatral que seu irmão mais velho, Charles,
havia elaborado. Era intitulado
Les polonais. Neste texto o personagem
Père Hébert decide matar o rei Venceslau e se tornar o novo rei da Polônia.
Esta seria a origem do mito de Ubu.
Em 1891 ocorreu um evento crucial;
Jarry deixa Rennes para se estabelecer em Paris. Na capital francesa,
percorrerá os círculos dos poetas simbolistas agrupados em torno da revista
Mercure
de France, fundada pela união entre Alfred Vallete e a escritora Rachilde.
Os simbolistas apelidaram Jarry de “o índio”, admiravam-no e ajudaram a
divulgar sua lenda. No Instituto Henri IV frequentou as aulas do filósofo Henri
Bergson, juntamente com o poeta Léon-Paul Fargue.
Nesse mesmo ano, a equipe do
laboratório contratada por Thomas Alva Edison em seu estúdio Black Maria
conseguiu projetar o cinematógrafo (uma câmera de cinema com movimento
intermitente de filme). Um novo mundo emerge. Naturalismo e simbolismo
irromperam em cena. Pouco depois surge o cinema, provocando curiosidade,
espanto e — como se verá de imediato graças a Méliès — inúmeras possibilidades
narrativas. Hemingway já o disse: Paris era uma festa onde tudo podia surgir,
até o Absurdo. Era assim que Jarry expressava as suas reflexões sobre a
burguesia parisiense, reticente às novas tendências: “O que se chama ceticismo
é credulidade burguesa”. E continuava, com questões mais transcendentes:
“Acredito no amor absoluto porque é um absurdo, da mesma forma que não acredito
em Deus. Como o órgão dos sentidos é causa do erro, o instrumento científico
amplifica o sentido na direção do erro, da superstição, então, vale o mesmo que
a ciência.”
Jarry não teve problemas
financeiros. Quando seus pais morreram (sua mãe em 1893 e seu pai em 1895), ganhou
uma substanciosa herança que permitiu passar uma vida de gastos na boemia. Um
sintoma relevante que não devemos ignorar é que Jarry não compareceu ao funeral
do próprio pai. Estava muito ocupado com outros afazeres. Aqueles que o
conheceram afirmavam que dedicava grande parte do seu tempo a beber absinto.
Disfarçado de capa e chapéu (e quase sempre bêbado), Jarry circulava pelas ruas
de Paris em sua bicicleta, atirando nas pessoas com uma pistola d’água. Ele
também carregava um revólver de verdade. Quando um transeunte lhe pedia fogo na
rua, ele sacava o revólver e disparava para o céu.
O personagem se apropria de seu
autor
Assim como outros escritores,
Jarry acabou perdendo parte da própria identidade e acabou se fundindo com seu
personagem. Ubu acabou possuindo Jarry. Jarry falava com entonações robóticas e
morava num quartinho próximo ao Boulevard Pont Royal. As paredes do seu portal eram
decoradas com seu próprio sangue. O quartinho em que morava era forrado de
veludo preto e cheio de corujas e crucifixos. Ele conseguiu evitar o serviço
militar ingerindo veneno. Sua amiga Rachilde o definia como alcoólatra:
“Jarry começava o dia com dois
litros de vinho branco entre dez da manhã e meio-dia. Depois acompanhava o
almoço com absinto. À tarde, café com conhaque. No jantar, qualquer bebida, boa
ou ruim. Nunca o vi realmente bêbado, exceto numa ocasião em que o ameacei com
seu próprio revólver, o que o deixou sóbrio instantaneamente.”
No campo, Jarry atirava em grilos usando
seu revólver. Seu amigo Pablo Picasso costumava comprar-lhe o revólver para que
não voltasse a atirar. Quando Jarry se acalmava, comprava-o de volta. E assim
repetidamente. Essa ideia cíclica também antecipa o que será o Teatro do
Absurdo. Seguindo essa ilógica, Jarry odiava água. Dizia que ali, em algum
momento, os peixes haviam transado. Estava convencido de que a água era um
veneno corrosivo e que os homens não deveriam beber onde se lavavam.
Por um tempo, Jarry fez encenações
privadas em casas de amigos, como a de
Ubu rei na casa de Alfred Vallete
e Rachilde em 1894. Enquanto isso, a França assistia aos avanços técnicos que
permitiriam o surgimento do que o poeta italiano Riccioto Canudo chamaria de
“sétima arte”. Numa noite de insônia, em Lyon, o engenheiro Louis Lumière
intuiu qual poderia ser a forma de passar o fotograma através da lente.
Em 13 de fevereiro de 1895, os
irmãos Lumière patentearam sua nova invenção sob o nome de “cinematógrafo”.
Este dispositivo tinha capacidade de ser uma câmera e um projetor. Com esta
invenção os irmãos Lumière fizeram a sua primeira gravação, intitulada
La
sortie des Usines Lumière à Lyon (
A saída dos operários da Fábrica
Lumière). Em 22 de março de 1895, seus filmes foram exibidos em Paris, numa
sessão da Société d’Encouragement pour l’Industrie Nationale. Georges Méliès, o
“mágico de Montreuil”, assistiu à exibição. Meses depois filmaria seu primeiro trabalho,
Une Partie de Cartes (
Jogo de cartas), uma única cena de menos de
um minuto em que ele próprio aparecia com alguns amigos fingindo jogar cartas.
Naquela mesma cidade que surpreendeu o mundo inteiro, alheio a essas
descobertas, Jarry continuou trabalhando em Ubu, seu insondável personagem.
A versão definitiva de
Ubu rei
foi publicada em junho de 1896 na revista
Mercure de France. A escrita
do texto não segue as diretrizes da lógica e da normalidade burguesa. Há uma
busca pelo irracional (“merda”, o baixo ventre, a vela verde, a Polônia, a
máquina de desmiolar). A obra é considerada hoje uma precursora do Teatro do
Absurdo. Estruturalmente, porém,
Ubu rei não é uma obra de situação
(como proporiam os absurdistas mais tarde). Pelo contrário, é uma peça de ação
e uma paródia grotesca de
Macbeth. A analogia com a “tragédia escocesa”
é muito evidente, pois Ubu seria uma transcriação de Macbeth, Mãe Ubu seria Lady
Macbeth e Venceslau, por sua vez, seria o ingênuo Rei Duncan. No personagem Ubu
encontramos uma figura alienada por sua grotesca sede de poder, sua facilidade
em banalizar o mal transformando suas próprias ações em farsa, como o
personagem de Ricardo III ou Barrabás em
O Judeu de Malta, de Marlowe.
De certa forma, Jarry foi um
visionário, pois foi no século XX que a figura dos grandes ditadores causou os
maiores massacres da história. Hitler, Stálin, Mao, Mussolini, Pol Pot... Por
que todo mundo segue um louco como Ubu?, perguntou-me certa vez um aluno na
aula depois de ler a obra. Étienne de la Boétie se questionava sobre o assunto
no início do século XVI em
Discurso sobre a servidão voluntária.
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Uma das versões de Ubu rei. Desenho de Alfred Jarry. |
O grande dia chegou finalmente em
dezembro de 1896. Ubu rei foi apresentado ao público. Houve apenas duas
apresentações: a de estreia e a do dia seguinte. A peça foi vaiada
impiedosamente. Ainda assim, tanto os apoiantes como os detratores pareciam
concordar que o trabalho era “incomum”. O poeta irlandês W. B. Yeats, que
estava em Paris na época e pôde assistir à estreia, escreveu o seguinte em seu
diário:
“Gritamos a favor da obra, mas
esta noite, no Hotel Corneille, sinto-me muito triste... Digo para mim mesmo: depois
de S. Mallarmé, depois de Verlaine, depois de G. Moreau, depois de Puvis de
Chavennes, depois dos nossos versos, após as fracas cores misturadas de Conder,
o que mais é possível? Depois de nós, o Deus Selvagem (citado por Roger
Shattuck em The Banket Years).”
A apresentação foi um sucesso.
Jarry ficou famoso, mas as críticas foram atrozes. Le Journal de Paris destacava:
“apesar de uma ação idiota e de uma estrutura medíocre, nasceu um novo gênero,
criado por uma imaginação extravagante e brutal, mais típica de uma criança do
que de um homem”.
Como vemos na fala de Jarry, antes
da apresentação, o personagem Ubu encarnará tudo de grotesco que existe no
mundo. Jarry assegurava que a obra fora montada rapidamente, mas com boa
vontade. Explicava ainda que o espetáculo só seria visto naquele dia e no dia
seguinte, pois para interpretar Ubu conseguiram o grande ator Gémier, que fora
emprestado para o papel nesses dois dias, voltando em seguida para o espetáculo
dirigido por M. Ginisty sobre um texto de Villiers de l’Isle-Adam. Desculpava-se
pela precariedade dos cenários e da música, com uma orquestra inexistente, e
terminava explicando a quem procurasse uma lógica ou referência na realidade
que, “a ação, que vai começar, se passa na Polônia, isto é, em Lugar Nenhum.”
Neste sentido, na brochura-programa intitulada Outra representação de Ubu,
publicada pela revista La critique para o Teatro de L’Œuvre (e distribuída aos
espectadores) foi recolhida outra reflexão sobre esta questão. Jarry explicou
ironicamente que “Lugar Nenhum está em todo lugar, e antes de tudo no país em
que nos encontramos”. Neste mesmo documento, logo em seguinda, no imparável
processo de identificação com seu personagem, Jarry dizia: “Senhor Ubu é um ser
odioso, razão pela qual ele parece (por baixo) com todos nós.” Devido ao
sucesso de Ubu rei, o dramaturgo simbolista percebe que deve continuar
dando vida ao seu personagem.
Depois de Ubu rei
Em 1900 Jarry escreveu Ubu enchaîné,
uma obra na qual aparecem “os homens livres” que realizam práticas estritas de
desobediência e pertencem a um disciplinado exército anarquista. Seguindo a
trama absurda e as motivações ilógicas dos personagens, Ubu aqui decide se
tornar escravo e depois prisioneiro. Após a derrota na Polônia, ele muda suas
preferências: não quer mais ser rei, agora quer ser escravo e servirá ao tio
Meapilas e à sua sobrinha Eleutéria. Mãe Ubu voltará a acompanhar o marido:
“Pai Ubu! Muitas vezes compartilhei sua má sorte, agora quero segui-lo na
prosperidade também!” Depois de inúmeras aventuras, Pai Ubu é condenado às
galés de Soliman, embora primeiro passe algum tempo na prisão, onde será
amarrado a duas bolas de ferro. Aqui terá o reconhecimento de seus pares
condenados e ascenderá como rei da prisão graças aos diversos mal-entendidos
que sucedem. Na prisão, os três homens livres decidem desobedecer
escrupulosamente a todas as ordens. “A escravidão é a verdadeira liberdade!”,
exclama Meafino — noivo de Eleutéria — no quinto e último ato da peça.
Em 1901 Jarry escreve um pequeno
texto intitulado “Confissões de um século” em que Ubu aparece ao lado de sua
Consciência para falar sobre assuntos atuais como a reforma ortográfica daquele
mesmo ano. Ubu afirma aqui que “os idiotas que querem mudar a grafia não são
sábios e eu sou”. Ubu também critica a paridade para ir lutar no front na
guerra, os costumes dos indígenas de Marselha ou a figura de Paul Kruger (líder
da resistência bôer contra o Reino Unido e presidente da República
Sul-Africana). O texto combina um exercício autorreferencial com aquelas
anedotas relacionadas aos acontecimentos mais imediatos da atualidade. Interessa-me
especialmente a opinião de Ubu sobre a Exposição Universal de Paris, ocorrida
meses antes (em 1900). Quando a Consciência pergunta a Ubu se ele visitou a
referida exposição, onde puderam ser vistos numerosos filmes de cineastas como
Méliès ou Alice Guy, Ubu responde energicamente:
“Mas como você se tornou
indiscreto, senhor! Deixe-me pensar... ah, sim: só uma vez, de longe; entrei
por uma porta e saí por outra, algo que as legiões de curiosos trancados nesse recinto
como numa ratoeira não tiveram coragem de fazer. Se quisesse observar os
caminhantes, teria podido observá-los muito melhor na liberdade de seu bulevar
natal. Quanto às barracas fechadas e outras cavalariças, nem pisei: não senti
necessidade de ver nenhuma das curiosidades que afirmavam conter, pois entendo
por ‘curiosidade’ um objeto que descubro por mim mesmo, em minhas explorações
individuais nas tribos selvagens. Exijo ser deixado para descobrir por mim
mesmo! Até o objeto mais bonito se torna banalizado quando é disponibilizado ao
alcance da multidão. Não visitei a exposição pelo mesmo motivo que não tenho costume
de ler manuais de vulgarização, sempre enfeito minha barriga com trajes sob medida
e nunca pego o ônibus!”
Mais tarde, em Ubu sur la Butte
(1906), Jarry faz uma versão reduzida de Ubu rei com o objetivo de
adaptar a obra original a um espetáculo de marionetes com roteiro clássico.
Em Ubu cocu (publicado em
1944) Pai Ubu volta a falar com sua Consciência e tranca-a dentro da mala. Ubu
descobre que Mãe Ubu o está traindo com Agamenon (em homenagem a um personagem
da Guerra de Tróia). Os “palotinos”, os criados, o Sapateiro, o Crocodilo e um
cachorro com meias de lã desfilarão pelo palco, mas sem dúvida o mais
interessante será a definição de “patafísica” que o próprio Ubu fará no início da
peça: “a Patafísica é uma ciência que inventamos e cuja necessidade se fazia
sentir de uma forma geral”.
A “patafísica” é um movimento
cultural francês inventado por Jarry, que teve o seu apogeu na segunda metade
do século XX, ligado ao surrealismo mas também a outros movimentos de
vanguarda. A expressão aparece em Ubu cocu, mas também em seu romance
póstumo intitulado Artimanhas e opiniões do Dr. Faustroll, patafisico
(uma sátira ao Dr. Fausto publicada em 1911). A “patafísica” emerge, portanto,
como a revelação da física e, portanto, tem precedência sobre ela e sobre a
metafísica. De certa forma, a “patafísica” também pode ser interpretada como
uma sátira ao cientificismo. Esta burla do cientificismo já aparece em Woyzeck,
de Georg Büchner (escrito em 1836, mas publicado em 1879).
Nas próprias palavras de Jarry, “a
patafísica é a ciência das soluções imaginárias, a ciência do particular que
estuda as leis que regem as exceções; aquele universo complementar ao nosso.”
No universo de Jarry tudo é anormalidade, a regra é a exceção da exceção. A
regra é o extraordinário, e isso explica e justifica a existência da
anormalidade. O habitual não é a norma, mas sim a exceção. O estranho é o que
marca a existência. O normativo, o regulamentado, o normal é a exceção. Jarry
acrescenta: “a patafísica é a ciência das soluções imaginárias, que concede
simbolicamente às diretrizes, as propriedades dos objetos descritos por suas
virtualidades” (livro II dos Artimanhas e opiniões do Dr. Faustroll, patafisico).
Diante da arbitrariedade das
ciências exatas que reduziam o engenho do homem a uma dependência psicotécnica,
Jarry inventa a patafísica através do doutor Faustroll, que é “a ciência por
excelência com remissão e acentuação imediata voltada para a imaginação diante
da lógica da imposição única”. A palavra “patafísica” é uma contração de ἐπὶ τὰ
μετὰ τὰ φυσικά (epí ta metá ta
physiká), que se refere a “aquilo que está ‘em torno’ daquilo que está
‘além’ da física”. A patafísica poderia ser entendida como o princípio da
unidade dos opostos, e torna-se um meio de descrever um universo complementar,
feito de exceções.
Quatro anos depois da publicação
de Ubu cocu, em 11 de maio de 1948 (o 22 de Palotin 75, segundo o
Calendário Patafísico) foi fundado o delirante Colégio de Patafísica. Diz-se
que foi criado como contraponto ao Collège de France e como homenagem ao
próprio Jarry. Começando com o Dr. Faustroll, o Colégio de Patafísica é
definido como uma “sociedade erudita e inútil dedicada ao estudo de soluções
imaginárias”. O Calendário Patafísico começa, portanto, com o nascimento do próprio
Jarry (8 de setembro de 1873). O chamado “colégio” é regido por um organograma
com títulos baseados na nobreza da Polônia (o diretor é o Vice-Curador Imóvel).
Para os patafísicos, o símbolo que representa o conhecimento (pelo qual Fausto
conseguiu vender sua alma ao Diabo) é uma espiral ilimitada conhecida como
Gidouille. Este emblema seria uma derivação do insaciável ventre espiral do
próprio Ubu e será conhecido como a “espiral maravilhosa” (spira mirabilis).
Influenciador e precursor
Muito se tem discutido sobre a
influência de Jarry na revolução das artes plásticas do século XX,
especialmente na vanguarda histórica. A estética de sua obra é muito definida
pelo dramaturgo com seus próprios desenhos grotescos. Esta afirmação da
influência de Jarry nas artes foi explicada por autores como Antonin Artaud
(que dedicou uma monografia a Jarry e fundou o Teatro Alfred Jarry em Paris em
1927), Jean Baudrillard e Boris Vian, que foi membro do Colégio de Patafísica,
como demonstra seu título de “Sátrapa Transcendente” emitido, segundo o
Calendário Patafísico, em 22 de Palotin de 80 (11 de maio de 1953).
Jarry conseguiu influenciar os
pintores “nabis” — um grupo de artistas franceses do final do século XIX
obcecados pela cor — como Pierre Bonnard, que colaborou com ele nos seus
espetáculos. Pablo Picasso também demonstrou grande admiração por Jarry, que
aparentemente conheceu através do escultor simbolista de Valladolid Paco
Durrio, que na época morava em Paris e era amigo de Paul Gauguin, que por sua
vez era líder dos “nabis”. Rachilde explicava (em Alfred Jarry. Le Surmâle
des lettres) a influência de Jarry no cubismo desta forma:
“Ele foi, gostemos ou não, o animador do cubismo na França. Basta comparar suas
xilogravuras gravadas com as criações mais recentes desse gênero hermético
(digo hermético por pura cortesia). Jarry foi verdadeiramente o primeiro
fundador da Escola que chamaríamos, por falta de termo mais técnico: a escola
dos demônios do absurdo [...]. Mas ainda é, sempre a máscara do Pai Ubu
devorando a verdadeira face de seu criador, antes de sua vítima”.
Joan Miró fez uma escultura em
bronze escuro que intitulou “Mãe Ubu”. Esta é uma figura perturbadora, que
poderia ser interpretada como uma mãe castradora. O artista catalão doou esta
obra ao Museu de Escultura ao Ar Livre localizado no Paseo de la Castellana, em
Madrid. O crítico alemão Riewert Ehrich escreveu justamente sobre a influência
dos desenhos e cenografias de Jarry nas obras de Miró. Como explica Josep
Massot no El País, o primeiro retrato de “Mãe Ubu” feito por Miró data
de 1937, e pôde ser visto no Pavilhão Espanhol da Exposição Universal de Paris
daquele ano, “quando desenhou a sua caricatura no programa pela representação
de Ubu enchaîné nos eventos da Exposição Universal de Paris, em que
Picasso expôs Guernica e Miró pintou o mural Le faucheur e desenhou o
selo antifascista Aidez l’Espagne”.
A influência de Jarry nos
movimentos de vanguarda não termina aqui. O futurismo também estaria em dívida
com ele. O poeta Filippo Tommaso Marinetti — que mais tarde seria um ideólogo
do fascismo — colaborou com Jarry na redação da revista simbolista La Plume
quando este viveu em Paris (entre 1893 e 1896). Durante esse período mantiveram
uma correspondência relevante. Marinetti conheceu através desta revista o
simbolismo pictórico, mas “também o divisionismo ou impressionismo científico
que serviu de base à pintura futurista desenvolvida a partir de 1909 por Balla,
Carrà, Severini, Russolo, Boccioni, Depero etc.”, afirma Manuel Sánchez Oms no
artigo “A arte do conhecimento ou o conhecimento da arte”. Sánchez Oms também
explica que O supermacho (1902), de Jarry, “com o subtítulo ‘romance
moderno’, foi sem dúvida o impulso necessário para Marinetti fundar o movimento
futurista”. Por fim, recorda que a primeira tradução italiana de Ubu rei
foi feita em 1926 por outro futurista italiano, Anton-Giulio Bragaglia.
O surrealismo foi o movimento que
Jarry influenciou de maneira mais evidente. Alguns pintores surrealistas como
Dalí fizeram parte do Colégio de Patafísica. André Breton, criador do Manifesto
Surrealista, apropriou-se do mito: “defendemos que, desde Jarry, como desde
Wilde, a diferença entre arte e vida foi aniquilada como princípio”.
Além de todos esses movimentos de
vanguarda, Jarry acabará sendo considerado um precursor do Teatro do Absurdo,
que mostrará a futilidade da existência humana em um mundo imprevisível com um
olhar cético. Ionesco estará alheio aos grandes ideais do século XX que
causarão milhões de cadáveres. Algumas de suas obras mostrarão a crueldade e a
estupidez do fanatismo. O rinoceronte é o exemplo mais claro. Não é por
acaso que este Nouveau Théâtre ou Teatro do Absurdo surgiu no final da Segunda
Guerra Mundial, depois de Auschwitz, quando o mito do progresso foi quebrado
para sempre. Nunca mais haverá certezas. Não haverá mais esperança. Tal como
Jarry, Ionesco compreenderá que a comunicação humana é impossível, que todas as
relações interpessoais se baseiam em mal-entendidos. Sem dúvida, este Nouveau
Théâtre deveu ao pobre Jarry, um gênio que teve a coerência de viver como sua
própria criação até se tornar indistinguível. Martin Esslin assegurou em 1961,
no prefácio de O Teatro do Absurdo, que este tipo de teatro abraçava
tendências que já se manifestavam “na literatura mais esotérica do final do
século passado e início do presente (Joyce, o surrealismo, Kafka), ou na
pintura da primeira década deste século (cubismo, pintura abstrata).” Esslin
acrescentava que o teatro só foi capaz de abraçar essas tendências absurdas e
apresentá-las a um grande público quando teve tempo de “aderir a uma tendência
mais ampla”.
Ubu é um mito que supera o próprio
Jarry e se torna um exemplo de hipertextualidade, como diria Gérard Genette. Ubu
se transforma, portanto, em um texto que dará origem a novos textos que serão
transformados por expansão ou modificação. Um bom exemplo é a versão de Els
Joglars. O dramaturgo e encenador Albert Boadella ousou caricaturar o
presidente da Generalitat Jordi Pujol a partir do Ubu rei. Na verdade, o
espetáculo intitulado Ubu presidente tornou-se um marco. Neste caso, a
realidade acabou por superar ficção. Boadella explicou anos depois que, mesmo
sabendo que Pujol era um corrupto, nunca poderia imaginar a magnitude de sua
corrupção. Jarry também não conseguia imaginar a ascensão dos ditadores e o
horror que aconteceria no século XX que viu nascer.
O romancista e acadêmico francês
Michel Arrivé alertou para a excessiva reiteração e repetição até mesmo do mito
de diferentes anedotas da vida de Jarry. O próprio André Breton foi um dos
primeiros a reconhecer na sua Antologia do humor negro (1940) que Jarry
eliminou as fronteiras entre a obra literária e a vida real. Como Josep Pla
explicou em Vida de Manolo, um dia, no jardim da casa de Valette e
Rachilde, o louco Jarry começou a atirar em direção ao local onde estavam os
filhos da escritora. “Rachilde saiu assustada, branca como a parede.”
Aparentemente, Jarry intercedeu eloquentemente: “Não tenha medo, senhora”,
disse com a maior seriedade. Se eu os matar, produzirei uns quantos iguais a
vocês”. Quando ficou sem dinheiro, Jarry foi morar com a irmã, que cuidou dele
até sua morte. Antes de morrer, seu último desejo foi que colocassem um palito
de dentes em sua boca. Morreu de meningite com apenas 34 anos, em 1º de
novembro de 1907, no Hospital da Caridade. Seu suicídio foi lento, mas
constante.
Ligações a esta post:
>>>
Resenha de O supermacho, de Alfred Jarry
Referências
Esslin, Martin. El Teatro del Absurdo. Barcelona: Seix Barral,
1964.
Jarry, Alfred. Todo Ubú. La Rioja: Pepitas de Calabaza, 2018.
Jarry, Alfred. Gestes et opinions du Dr. Faustroll,
Pataphysicien. Paris: Bibliothèque Numérique Romande, 1911.
Massot, Josep. “El simbolismo de la ‘Mère Ubu’ de Miró”. El País,
19 de agosto de 2023.
Moréas, Jean. “Manifeste du Symbolisme”. Le Figaro, 18 de
septiembre de 1886.
Sánchez Oms, Manuel, “El arte del conocimiento o el conocimiento del arte:
las aportaciones estéticas y plásticas de Alfred Jarry y la patafísica”. Revista
de la Asociación Aragonesa de Críticos de Arte, n. 32, 2015.
* Este texto é a tradução livre de “Alfred Jarry, Ubú y la patafísica”, publicado aqui, em Letras Libres.
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