A oração do carrasco, de Itamar Vieira Júnior

Por Guilherme de Paula Domingos




 
Dois livros são escritos quando o autor publica. Um é o livro propriamente dito, assinado por quem o escreveu. O outro é o livro que vai se desenhando e fica por bastante tempo no imaginário do leitor, com as questões que traz à tona. 
 
O talento de Itamar Vieira Júnior em A oração do carrasco está em desenvolver através de alegorias temas que nos são dolorosos. Aqui há referências a navios negreiros, carrascos, tribos indígenas, como também diálogos com Clarice Lispector, Hannah Arendt, Arthur Bispo do Rosário, entre outros. A vida se tornou banal, assim como a maldade na tese arendtiana. Um carrasco não sabe mais quantas pessoas já matou porque a crueldade do seu serviço, travestida de ação necessária para livrar o mundo de atos piores, está aliada a um cálculo que o poder faz sobre o valor de cada vida.
 
Itamar nos traz a figura do carrasco personificada em vários tipos que atravessam nossa história desde tempos antigos. O carrasco certamente não é somente um. O capitão do mato, o juiz, o policial são apenas alguns exemplos de potenciais carrascos que, se não unem a ação à reflexão, se não pensam nos efeitos que seu trabalho pode ter sobre outras pessoas, podem ceifar vidas e alterar destinos.
 
Por outro lado, há a questão da escolha. Em muitos casos, as pessoas simplesmente não possuem o poder fazê-la. Devemos nos lembrar que escolher é também um privilégio. No conto que dá título ao livro, os filhos não podem escolher seu destino. O narrador nos mostra que a história pode ser cíclica e a figura do carrasco pode estar dentro de cada um. Também indica que nossas trajetórias nos dão um bom indício de como nos tornamos o que somos. Em um contexto que oferece menos oportunidades, as chances de sucesso são menores.
 
Em um dos contos, acompanhamos a trajetória de Doramar. Através de sua perspectiva, a narrativa nos faz mergulhar na crueldade que um ambiente (a periferia) pode exercer sobre seus moradores, seja em mães que temem que o filho não volte da escola à noite, seja em mulheres que precisam sair de casa às pressas fugindo da violência do marido, seja em um garoto que leva treze tiros da polícia. “Qualquer que tivesse sido o crime dele, uma bala bastava. O resto era vontade de matar, era prepotência”. Clarice Lispector disse isso em uma entrevista de 1977, ao conversar sobre sua crônica “Mineirinho”. Itamar relembra esse texto para tecer uma odisseia periférica. Em Clarice, a morte de Mineirinho é o ponto para as reflexões das personagens. Em Itamar, é um cachorro com a orelha dilacerada.
 
O grande mote do texto de Vieira Júnior é a alteridade. O contato com o diferente sempre produz algo, seja o conflito, seja a identificação. E ele explora bem o conflito. Em um dos contos, o contato entre negros e brancos gerou a escravização e a consequente fuga de uma mulher cativa. Em outro, o contato entre tribos indígenas diferentes gerou uma guerra. E as relações entre brancos e indígenas se fazem mediadas por uma situação de exploração.
 
Já o contato entre um homem tido como louco e outro tido como normal gera o hospital psiquiátrico. Entre mulheres e homens, o contato pode gerar o abuso, assim como entre pobres e ricos, o contato pode gerar segregação. Os problemas da convivência marcam as histórias como um fio que as une. E as vidas encenadas se confundem com as nossas, a partir de nossa identificação com os problemas narrados.
 
Outro elemento central para Itamar em A oração do carrasco é a linguagem. Ele utiliza alguns artifícios para que o texto se aproxime mais de seu leitor. Em um dos contos cuja narrativa se passa em uma tribo indígena, ele utiliza palavras do vocabulário da língua jarawara, que são escritas sempre antecedidas por seu significado em português. Isso diminui nosso estranhamento como observadores externos de um cotidiano que não é o nosso.
 
Em outro conto, a personagem está em constante fuga e em momento algum pode parar. O autor quase não usa ponto final, pois a parada seria um luxo do qual não se pode dispor. O mesmo recurso é utilizado na narrativa que faz referência a Arthur Bispo do Rosário que, como se sabe, passou boa parte da vida na Colônia Juliano Moreira, espaço que abrigava aqueles classificados como “indesejáveis”. Tido como louco, ele tecia um manto para o dia do Juízo Final. A falta de pontos finais no texto representa tanto o fluxo de consciência de uma pessoa que não era encarada como “normal”, tanto quanto o processo de construção sem descanso do manto.

A oração do carrasco é desses livros que nos faz reexaminar vários aspectos de nossas existências, mesmo após o término da leitura, até porque o livro traz várias referências. Uma história aparentemente simples tem significados para além do texto e é preciso ficar atento.
 
 

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