|
Ilustração: Nate Kitch |
A afirmação de que as redes sociais deram voz a uma
legião
de imbecis, feita por Umberto Eco alguns anos atrás, repercutiu de
diferentes formas, como não poderia deixar de ser. De um lado, aqueles que
enxergavam um exagero ou mesmo um conteúdo “antidemocrático” na fala do
intelectual, ressaltando as benesses do universo digital, em que vozes antes
ignoradas podiam se manifestar; em sentido contrário, houve os que concordaram
expressamente com a frase, destacando o prejuízo advindo dessa “democracia
digital”, em que qualquer pessoa pode comentar até mesmo sobre aquele tema que
jamais realizou sequer um estudo mínimo.
O debate se mostra cada vez mais atual e interessante, ainda
mais com o avanço das ferramentas virtuais disponíveis, e pode ser aplicado à
crítica literária — numa investigação sobre a forma pela qual essa é exercida
atualmente. Se décadas atrás os comentários a respeito da literatura ficavam
restritos às colunas dos jornais de grande circulação e eram elaborados por aqueles
autores cujo nome trazia de antemão algum reconhecimento por sua envergadura
intelectual, hoje, o cenário é claramente distinto. Ao abrirmos redes sociais
como YouTube e Instagram e digitarmos o nome de uma obra literária seguido de
algo como “resenha” ou “crítica”, logo estaremos diante de inúmeros conteúdos.
E aqui começa propriamente a relevância da discussão.
Até que ponto essa multiplicidade de conteúdo favorece a
literatura e aquilo que entendemos ou ao menos entendíamos por crítica
literária? O que fizemos com essa tarefa relevantíssima à qual já se dedicaram
grandes nomes da vida intelectual brasileira, como Álvaro Lins e Otto Maria
Carpeaux? Ainda existe crítica literária? O seu significado continua sendo o
mesmo? Em qual espaço ela se manifesta atualmente? A qualidade da crítica
literária melhorou ou piorou? Enfim, os questionamentos são muitos.
A fim de esboçar reflexões sobre algumas dessas questões,
ainda que de maneira sucinta, utilizo-me de duas obras recentes:
O que é
crítica literária?, do autor Fábio Durão e
O mínimo sobre literatura,
de Rodrigo Gurgel. Na primeira, Durão, após afirmar que a crítica literária se
tornou vital nos dias hoje, mas que ao mesmo tempo está mergulhada em profunda
crise, acrescenta:
“É muito fácil confundir a crítica com a interpretação pura
e simples e, de fato, a história de uma está intimamente ligada à da outra. A
diferença maior reside no fato de que a crítica tende a implicar algum espaço
concreto de veiculação e a consequente existência de um público leitor, de uma
esfera pública na qual se inserirá.”
Aqui, temos um primeiro aspecto muito relevante: não se pode
confundir a crítica literária com a simples interpretação pessoal de uma obra
literária. E essa afirmação não significa uma hierarquia entre uma e outra, mas
serve antes como um alerta àqueles que se entregam à missão de analisar a
literatura. E com a diferenciação acima, parece que podemos chegar a uma
primeira conclusão: no ambiente virtual, a interpretação pessoal de livros
prevalece sobre a crítica literária.
No entanto, o mesmo autor logo chama a atenção para alguns
problemas advindos dessa “vantagem” obtida com o desenvolvimento da internet,
afirmando que a abundância de conteúdo pode ser tão prejudicial ou pior do que
a sua escassez. Concordo. A dificuldade ou mesmo impossibilidade de auferir a
qualidade de certos textos ou vídeos faz com que muitos conteúdos (produtos)
sem qualquer conteúdo (fundamento) se alastrem virtualmente.
Outro aspecto importante de ser abordado é o de que não
podemos perder de vista alguns critérios objetivos na análise de textos
literários. Sucumbir a argumentos como “não é que exista uma obra melhor, elas
são apenas diferentes” é o começo do fim, e Fábio Durão acerta em cheio quando
diz que o fato de a literatura em nossa época ser muito diferente de duzentos
anos atrás e de que certamente o será em um futuro bastante próximo não deve
levar ao
relativismo.
Contudo, no outro extremo, também é necessário evitar um
excessivo uso das regras linguísticas e da teoria literária para analisar uma
obra. Sobre esse aspecto, Rodrigo Gurgel é cirúrgico ao dizer que acorrentar a
interpretação literária à linguística e a um modelo único de literatura, significa,
na verdade, apartá-la da vida. Aqui, quem sabe, os divulgadores da internet
apresentem alguma vantagem, visto que simplificam e tornam mais pessoal a
intepretação literária, diferente do que realizam alguns acadêmicos que
escrevem de maneira truncada, solipsista, fazendo com que seus artigos não
sejam lidos por mais do que duas ou três pessoas.
Dessa forma, resolvi apontar brevemente algumas
problematizações entre a austeridade da crítica literária e a flexibilidade e
acessibilidade das interpretações literárias do mundo virtual, para que possamos
perceber que não há solução pronta ou receita de bolo para o desenvolvimento
dessa tarefa tão relevante para nós. Aqui se ganha, ali se perde, e por aí vai.
Porém, precisamos sempre pensar na função que a crítica/ análise literária
possui diante da sociedade. Ela não pode ser um trabalho individualista ou que
vise apenas o dinheiro, o elogio ou quejandos parecidos, seja num jornal
impresso, num artigo acadêmico ou num perfil de rede social.
Como muito bem apontado por Gurgel, citando Todorov, se o
objeto da literatura é a própria condição humana, aquele que lê as grandes obras
e as compreende se tornará não um especialista em análise literária, mas um conhecedor
de si próprio e também do ser humano. E essa capacidade de compreender a si e
ao mundo por intermédio da literatura deve ser, por sua vez, o objeto de
trabalho do crítico literário, seja qual for o espaço em que ele realize tal
feito. A crítica literária requer responsabilidade. Seriedade. Comprometimento
para com o outro. Somente assim poderemos fazer com que ela se desenvolva
independentemente do lugar em que a encontremos.
Comentários