Por José Domingo Argüelles
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Franz Kafka. Arte: Mathieu Laca. |
É o primeiro centenário da sua morte e por isso 2024 também se converte no
ano de Kafka. Kafka, essa palavra de cinco letras (três, na verdade, se
subtrairmos as que se repetem), refere-se não apenas a uma obra e a um século,
mas a toda uma literatura.
Nasceu em Praga, em 3 de julho de 1883; morreu de tuberculose em um
sanatório em Kierling, área da pequena cidade austríaca de Klosterneuburg,
perto de Viena, em 3 de junho de 1924. Tinha 40 anos. Faltava exatamente um mês
para completar 41 anos. Praga era então uma das capitais do Império
Austro-Húngaro e, embora muitas vezes se afirme que ele é um escritor tcheco,
na realidade ele era um cidadão tcheco, mas um autor alemão, já que escreveu
neste idioma. É um dos maiores nomes desta literatura no século XX,
contemporâneo de Rainer Maria Rilke (1875-1926), Thomas Mann (1875-1955) e
Hermann Hesse (1877-1962), entre outros notáveis, embora tenha sido um
desconhecido, até poucos anos após sua morte, tanto para os tchecos quanto para
os alemães.
É o criador de uma obra literária personalíssima que, pela sua
profundidade humana, é universal e imperecível. Jorge Luis Borges afirmou: “O
destino de Kafka era transmutar circunstâncias e agonias em fábulas. Descreveu
pesadelos sórdidos em um estilo límpido. Não em vão era um leitor das
Escrituras e um devoto de Flaubert, Goethe e Swift. Era judeu, mas a palavra
judeu não aparece, pelo que me lembro, em sua obra. Esta é atemporal e talvez
eterna.” (Borges, 1997, p. 16)
Tal como a sua celebridade, a maior parte da sua obra é póstuma. Mas,
mesmo que essas páginas póstumas não existissem, o que publicou seria
suficiente para ocupar o lugar de destaque que ocupa na literatura. O seu
primeiro livro, Contemplação, surgiu em 1913. Trata-se de uma coletânea
de prosa curta, descritiva, reflexiva, poética e narrativa, da qual “O infortúnio
do celibatário” é o texto mais do que revelador para fins autobiográficos.
Seguiram-se os livros de contos O veredicto (1913), O foguista
(1913), A metamorfose (1915), Na colônia penal (1919) e Um
médico rural (1919), cada um deles publicado, de forma modesta, em sua
cidade natal, Praga. Em seu leito de morte corrigiu as provas de Um artista
da fome (1924). A sua última obra concluída, que considerou digna de
publicação, é o conto “Josefina, a cantora ou o povo dos ratos”.
Em algumas páginas, Kafka deixou registrado que seus manuscritos fossem
destruídos quando ele morresse. Porém, seu amigo, confidente e, por fim,
executor, editor, divulgador e biógrafo, Max Brod (1884-1968), recusou-se a
cumprir a última vontade do escritor. Pelo contrário, logo após a sua morte dedicou
os seus maiores esforços à organização, publicação e divulgação dessa obra, até
atingir o objetivo de que fosse não só apreciada, mas também admirada e
reconhecida como um dos grandes autores universais, que mudou o curso da literatura.
O argumento de Brod para desobedecer à última vontade de seu amigo é
encontrado no epílogo da primeira edição do romance póstumo e inacabado O
processo, que apareceu um ano após a morte de Kafka. Ao justificar o que
Milan Kundera chamou de “o testamento traído”, Brod observa: “Para quase tudo
que Kafka publicou, foi necessário que eu o induzisse a fazê-lo com paciência e
recursos verbais. [...] Se me recuso a executar o que meu amigo tão
categoricamente me pediu, é porque acredito que tenho razões poderosas para
isso. [...] Ele me mostrou o papel escrito a tinta que depois apareceu em sua
mesa e me disse: ‘Meu testamento será muito simples. Eu imploro que queime
tudo.’ Ainda me lembro qual foi a minha resposta: ‘Se você pensa seriamente que
serei capaz de fazer isso, digo-lhe de agora em diante que não o farei.’ [...] Não
o agradeço por ter me deixado com esse doloroso caso de consciência, pois ele
conhecia o culto que eu prestava a tudo que era dele. [...] Minha intenção de
publicar suas obras póstumas também é estimulada pela lembrança que tenho das
exaustivas discussões que precisei travar para convencê-lo em cada ocasião a
publicar o que escrevia.” (Brod, 1986, p. 218).1
Contra as mais do que prováveis objeções e censuras à sua decisão,
Brod finalmente apresenta razões estéticas em favor da literatura e dos
leitores: “Não ignoro que ainda existem motivos suficientes para consciências
muito escrupulosas que impediriam esta publicação. Mas considero meu dever
opor-me a estes insidiosos escrúpulos. O que me levou a fazê-lo tem pouco a ver
com as razões que apresentei. É apenas o fato de que os últimos escritos de
Kafka contêm os maiores tesouros e o que há de mais valioso em sua própria
obra. Devo afirmar francamente que este único fato, esta única razão literária
e estética — mesmo que eu não tivesse nenhuma objecção contra o valor dos
últimos desejos do seu autor — levou-me a cimentar a minha decisão com uma
determinação à qual nada poderia me contrapor. Por outro lado, Kafka
infelizmente executou seu pensamento. Pude ver em sua casa quatro volumosos
cadernos dos quais restavam apenas as capas. Seu conteúdo foi destruído. [...]
A parte mais valiosa do legado de Kafka [são] as obras que poderiam ser salvas
das mãos do autor com o tempo e colocadas em segurança.” (p. 219-220)
Brod ainda acrescenta um fato em sua defesa: Kafka lera ou lhe mostrara
obras que, para sua decepção, não conseguiu encontrar quando morreu. A maior
virtude de Brod, além da fidelidade fraterna, é a certeza que tem da grandeza
do trabalho do amigo, até então ignorado. Não são muitos os que confiam tanto
na arte de alguém próximo a ponto de, primeiro, desobedecer a sua última
vontade e, segundo, dedicar o máximo de esforços e zelos até convencer o mundo
de quanto teria sido perdido, para universal literatura, se fosse cumprida, sem
mais demoras, a disposição testamentária do escritor, ainda que esta não
produzisse efeitos jurídicos. Finalmente, se os leitores têm com sua uma obra
sua (foi nisso que consistiu o esforço incansável de Brod), o autor não tem
mais muito a dizer, ou a decidir, sobre ela.
Com excesso de dramatismo, embora também com alguma verdade, diz-se que
Kafka vendeu, durante toda a sua vida, apenas um único exemplar da sua obra.
Isso tem a ver com uma anedota contada por seu amigo Rudolf Fuchs: “Quando
apareceu seu primeiro livro, Contemplação, editado por Wolff, ele me
disse: ‘Onze exemplares foram entregues na casa de André. Eu próprio comprei
dez. Gostaria de saber quem adquiriu o décimo primeiro.’ Ele disse isso
sorrindo, divertido. Ninguém sabia o que ele escrevia e se o que escrevia era
importante para ele ou não.” (Brod, 1974, p. 223).
Em seu enorme livro de memórias intitulado Borges, Adolfo Bioy
Casares recolhe as seguintes palavras do autor de El Aleph: “Kafka
inventou um tipo de narrativa totalmente novo; mas, diferente de todos os
inventores e precursores, soube manusear a sua invenção com notável economia e
lucidez, utilizando uma quantidade mínima de elementos. Esta simplicidade das
suas composições é um dos seus maiores méritos.” (Casares, 2006, p. 557). Noutra
passagem, referindo-se ao século passado, afirmou: “Kafka é o grande escritor
clássico do nosso atormentado e estranho século”.
A maioria dos estudantes (incluindo os de Literatura no ensino superior)
aprenderam com os seus professores que a literatura, em princípio, “se explica”
e “se interpreta”. Famoso é o ensaio de Susan Sontag que se opõe a isto (“Contra
a interpretação”) porque considera, com razão, que este preceito profissional
para a docência desviou o gosto e a paixão pela leitura, na medida em que hoje
lemos para sermos aprovados na disciplina de literatura, e não para desfrutar,
como disse um estudante a Stephen Vizinczey, conforme relatado em Verdade e
mentiras na literatura. Na pior das hipóteses, esta deformação profissional
levou muitos a acreditar que a interpretação é mais importante que a obra, como
Italo Calvino lamentou em Por que ler os clássicos.
Referindo-se ao mistério que é consensual sobre o conjunto da obra de
Kafka, Borges enfatiza: “Kafka não explica nem precisa se explicar: seu
mistério é o mistério do mundo ou da vida.” (Casares, 2006, p. 557). Este
elogio é importante não só porque vem do escritor argentino, mas principalmente
porque ele, como outros grandes nomes da literatura, entendeu o que Julio Ramón
Ribeyro, outro admirador unânime de Kafka, afirmou em seu prodigioso diário A
tentação do fracasso: “Uma nova forma de narrar não implica necessariamente
inovações espetaculares de natureza técnica ou verbal, mas sim um simples
deslocamento de ponto de vista. A questão é encontrar o novo ângulo que nos
permita uma apreensão inédita da realidade. Penso particularmente no caso de
Kafka, em oposição ao de Joyce.” (Ribeyro, 2003, p. 420).
E Borges foi mais longe: “Pergunto-me se esses escritores que estavam
prestes a escrever contos de Kafka — Conrad em O duelo, Melville em Bartleby
— anteviram a possibilidade e desdenharam-na”. E acrescenta: “Kafka foi um dos
grandes autores de toda a literatura. Para mim é o primeiro deste século.
Estive nos eventos do centenário de Joyce e quando alguém o comparou a Kafka eu
disse que isso era uma blasfêmia. Joyce é importante dentro da língua inglesa e
de suas infinitas possibilidades, mas é intraduzível. Por outro lado, Kafka
escreveu num alemão muito simples e delicado. Ele se preocupava com a obra, não
com a fama, isso é indubitável. Em todo caso, Kafka, aquele sonhador que não
queria que seus sonhos fossem conhecidos, agora faz parte desse sonho universal
que é a memória. Sabemos quais são as suas datas, qual é a sua vida, que ele é
de origem judaica e assim por diante; tudo isso será esquecido, mas suas
histórias continuarão a ser contadas.” (Ferrer, 1988, p. 149-150).
Kafka é um mestre da escrita diáfana e do estilo claro. Embora seja
verdade que, em seus romances, contos e aforismos existam múltiplos enigmas,
nenhuma de suas páginas está escrita com linguagem retorcida ao limite das artificiais
obscuridades, como costuma fazer quem não tem nada a comunicar. Sua escrita é
perfeitamente luminosa, além de seus temas sombrios ou sórdidos. Nela combina
sabiamente a realidade com a fantasia: é um escritor fantástico e realista,
porque os sonhos e os pesadelos que relata baseiam-se numa realidade a que cada
leitor está exposto, razão pela qual certa frase de um crítico e ensaísta se
tornou tão emblemática. George Steiner em seu livro Linguagem e silêncio:
“Quem leu A metamorfose de Kafka e consegue se olhar destemido no
espelho será capaz, tecnicamente, de ler a letra impressa, mas é analfabeto no
único sentido que conta.” (Steiner, 1994, p. 26).
Por que Steiner afirma isso? Porque o protagonista de A metamorfose,
Gregor Samsa, somos todos ou cada um dos leitores, se no nosso exercício de
leitura colocamos inteligência e emoção, porque há momentos em que a nossa vida
se transforma e nos perturba até nos sentirmos como insetos. Nos desumanizamos,
nos tornamos seres repugnantes e monstruosos diante os demais e,
principalmente, diante de nós mesmos. Subjacente à figura do monstruoso inseto
Gregor Samsa, sem dúvida, está uma alegoria, mas não é necessária uma
hermenêutica para descobri-la: Franz sempre foi humilhado e menosprezado por
seu pai, Hermann Kafka, que o considerava um perdedor, um sonhador, um louco,
porque ele não se adaptava ao esquema do homem de sucesso que o pai autoritário
tinha como modelo. Seu filho era escritor, contador de histórias, fraco,
solitário; isso o fazia se sentir profundamente envergonhado.
Hermann Kafka teria desejado que seu primogênito assumisse plenamente a
consciência de pertencer a um clã importante (Mischpoche, na língua
judaico-alemã) e que, a partir dele, o imitasse em sua presunção, sua
iniciativa empreendedora, sua orgulhosa tirania e sua desprezo absoluto por
tudo aquilo que considerava impraticável e inútil — por exemplo, a literatura.
Franz odiava a vulgaridade arrogante do pai, que dizia para humilhar aqueles
que considerava incompetentes: “Quem se junta com cachorros, acorda com pulgas.”
(Kafka, 1975, p. 123). Para o chefe do clã Kafka foi uma decepção que seu filho
(retraído, sensível, com dons intelectuais e, obviamente, “com pulgas”) se
dedicasse à literatura e não a ampliar, com prosperidade financeira, o nome da
família como um Kafka. A vergonha do pai gradualmente se transformou em
ressentimento e desprezo; a ferida no seu amor-próprio levou-o a um ódio surdo
contra o filho fracassado, contra o ninguém.
Precisamente em Kafka’s Relatives (O clã dos Kafka, em
tradução livre) traça a genealogia do escritor: diz que os avós de Franz eram
açougueiros e que, consequentemente, o pai de Franz demonstrava tanta
autocomplacência e orgulho: ele havia alcançado um status mais elevado na
família. De acordo com Northey, todos os Kafka se ergueram do nada para fundar
empórios mais ou menos prósperos: foram empresários, piratas modernos,
funcionários e profissionais bem-sucedidos, advogados e fabricantes de boas
posses. Consequentemente, o pai tirânico de Franz ficou envergonhado ao ver
que, entre tantos triunfos da família, seu filho, o escritor, era apenas um maluco
fantasioso, como seu amigo Max Brod, a quem ele também desprezava e cuja
influência era motivo de censura.
Não é por acaso que, em A metamorfose, a morte do inseto é
resultada de uma ferida aberta causada pelo pai. A tradutora e crítica Marthe
Robert garante que o romance responde a esse conflito entre o pai autoritário e
o filho sempre marginalizado. A grave lesão que o senhor Samsa causa a Gregor,
ao acertá-lo com uma maçã que lhe atira, é, fora da literatura, a ferida
constante que o pai inflige, dia após dia, ao filho desprezado. Na narrativa,
diante do golpe da maçã, o inseto tenta escapar sem sucesso. O golpe permanece
“incrustado na sua carne”, da mesma forma que a humilhação está incrustada na
alma.
Na vida fora da ficção, o desprezado Franz nunca conseguiu escapar dos
golpes verbais do pai. Em A metamorfose não existe herói, o que aparece
é uma vítima que, além de tudo, não é um ser humano, mas sim um parasita. Esse
sentimento o assombrava o tempo todo. É claro que Kafka sabia distinguir entre
literatura e realidade. Uma coisa é a ficção nascer de experiências pessoais e
íntimas, sublimadas, transfiguradas, transmutadas, e outra é retratar, sem
dimensão estética, sem profundidade, o conflito humano. Por isso, o escritor se
vê obrigado a esclarecer o seguinte ao amigo Gustav Janouch, como se lê em seu
memorável livro Conversas com Kafka: “Samsa não é simplesmente Kafka. A
metamorfose não é uma confissão, embora seja, em certo sentido, uma
indiscrição.”
Essa “indiscrição” é
óbvia: é o pai tirânico de Kafka que, sem saber, incentiva o filho a escrever
esta e outras alegorias. Esse desconcerto — o desprezo que o seu pai sentia por
ele — funciona como uma força motriz na sua literatura: um motivo lamentável,
certamente, mas do qual vem uma grande força para criar a obra brilhante que
continua a falar-nos e, acima de tudo, a questionar-nos. Conserva-se uma carta
que enviou à namorada, Felice Bauer: nela, ao descrever seu ideal de solidão
literária, Franz descreve de alguma forma, com inevitável paralelismo, a vida
(debaixo da cama) do monstruoso Gregor Samsa. Ele conta: “Certa vez você me
escreveu dizendo que queria estar ao meu lado enquanto eu escrevia; mas,
imagine, eu não conseguiria escrever nessas condições. [...] Escrever é doar-se
completamente. [...] É por isso que não se pode estar sozinho o suficiente quando
se escreve. [...] Muitas vezes pensei que a melhor vida para mim consistiria em
me isolar com uma lâmpada e o que preciso escrever no fundo de um grande porão
fechado. Trar-me-iam comida de fora e a depositavam bem longe, atrás da porta
mais externa do porão. Ia buscar essa comida, vestido apenas com um roupão,
pelos corredores do porão, seria minha única caminhada. Depois voltava para
minha mesa, comia devagar, refletindo, e imediatamente voltava a escrever. E
que coisas eu escreveria então! De que abismos eu as arrancaria!” (Kafka,
citado por Canetti, 1981, p. 68-69).
Entre os registros de seu Diário, Kafka considera — sempre na
defensiva — que há uma “maliciosa ingenuidade” em alguns de seus amigos e
familiares quando, ao lerem suas obras, se veem retratados em seus personagens
e identificados em suas esferas domésticas. É o caso, por exemplo, do conto “O
veredicto”. Em 11 de fevereiro de 1913, ele ressalta: “Na ocasião de corrigir as
provas de ‘O veredicto’, anoto todas as relações que me foram esclarecidas na
narrativa, tal como as estabeleço neste momento. Isso é necessário porque a
narrativa saiu de mim como num verdadeiro parto, coberta de sujeira e mucosidades,
e só eu tenho a mão capaz de alcançar o corpo e disposta a fazê-lo.” (Kafka, 1975,
p. 265)
Mas enquanto ele observa as relações que se tornam claras para ele
durante a revisão do texto, os outros notam as relações com as quais se
identificam. Dessa forma, sua irmã diz, após ouvir a leitura de Kafka: “É a
nossa casa”. A frase leva o escritor a registrar em seu Diário o
seguinte: “Fiquei surpreso que tenha entendido mal o local e disse: ‘Aí o pai
teria que morar no banheiro’”. A verdade é que quem conhecia pessoalmente o
autor e interagia com ele todos os dias sabia de onde ele tirava as suas
ficções: incontestavelmente, da sua realidade cotidiana combinada com os seus
sonhos que muitas vezes se transformavam em pesadelos onde sempre aparece um
poder de um pai despótico e castrador, distorcido por suas inseguranças e seus complexos.
Precisamente em “O veredicto”, o pai, talvez louco (nunca se sabe ao
certo), diz ao filho Georg: “você está condenado por mim, seu pai, a se afogar
no rio”. Na narrativa aparece um pai que condena o filho e há um filho
atormentado, solteirão que se decidiu se casar e contar essa notícia para um
amigo que foi morar na Rússia, mais especificamente em São Petersburgo. O nome
da noiva é Frieda Brandenfeld. O conto é dedicado por Kafka a “F.”, inicial do
primeiro nome de sua então amiga (ainda não prometida) Felice Bauer, com quem
compartilhou anos tempestuosos e com quem, no final, não se casou. Frieda
Brandenfeld e Felice Bauer têm as mesmas iniciais; o pai que espiona o filho
ficou velho, mas Georg, ao vê-lo, pensa: “Meu pai ainda é um gigante”. Antes de
completar a frase, o protagonista exclama para si mesmo: “Queridos pais, apesar
de tudo sempre amei vocês”.
São muitas coincidências entre a literatura e a realidade, mas se falta
alguma para saber que o condenado é Franz, que o juiz é seu pai e que a noiva é
Felice Bauer, o próprio autor o especifica em seu Diário, em 14 de
agosto de 1913: “Conclusões tiradas de ‘O veredicto’ para o meu caso.
Indiretamente, é a ela [a inominada Felice] a quem devo a história. Mas Georg se
apaga por causa de sua namorada.” O autor tem pavor de casamento, pois está
literalmente casado com a literatura. Na vida comum, as mulheres o deixam em
pânico porque se tornam “ameaças” que, se ele não puder evitá-las, podem
impedi-lo de escrever, principalmente se estiverem em busca de casamento. É
assim que Daniel Desmarquest vê a questão em seu interessante ensaio Kafka
et les jeunes filles (Kafka e as mulheres, em tradução livre).
Felice, Grete, Julie, Milena, Dora e até sua irmã, Ottla (seu “anjo da
guarda”), todas as mulheres da vida de Kafka sabiam que nunca poderiam competir
com “uma garota de tinta e papel que sempre teve a última palavra.”
Max Brod lembra que quando seu amigo “lê ‘O veredicto’ na casa de Baum,
ele o faz entre lágrimas”, e
acrescenta: “A verossimilhança do conto foi confirmada”. Em 1921, em artigo
publicado numa revista, Brod fez a seguinte observação: “Kafka não condena a
vida. Não briga com Deus, mas consigo mesmo. Daí o horrível rigor com que é
levado perante o tribunal. Seu trabalho é repleto de juízes e execução de
sentenças”. Observamos que Brod se refere a Kafka como se ele fosse um
personagem dele mesmo. E conste que Kafka leu este artigo de alguém que o
conhecia melhor do que ninguém.
A verdade é que, para cada um dos enigmas da obra de Kafka, a chave é
sempre ele mesmo: o seu conflito interior, a sua vida atormentada, os seus
medos e terrores, os seus pesadelos. Por isso Borges tem razão quando afirma:
“Na Alemanha e fora da Alemanha, foram delineadas interpretações teológicas da
sua obra. Não são arbitrários — sabemos que Kafka era um devoto de Pascal e
Kierkegaard — mas também não são muito úteis. A plena fruição da obra de Kafka —
como a de tantos outros — pode preceder qualquer interpretação e não depende
delas.”
Além disso, a psicanálise pode dizer, e disse, muitas coisas sobre o
significado dos contos, dos romances e dos sonhos de Kafka, mas também não
precisa dizer nada. Todos sonhamos os seus sonhos e os seus pesadelos também
são os nossos.
Notas da tradução
1 A tradução é nossa a partir do texto em língua espanhola. A observação
vale para todos os excertos no restante do texto.
Referências
Borges, Jorge Luis. Biblioteca personal. Madrid: Alianza,
1997.
Brod, Max. Kafka. Trad. Carlos F.
Grieben, Madrid: Alianza, Emecé, 1974.
Canetti, Elias. El otro proceso de
Kafka. Sobre las cartas a Felice. Trad. Michael Faber-Kaiser e Mario
Muchnik. Barcelona: Muchnik Editores, 1981.
Casares, Adolfo Bioy. Borges. Buenos
Aires: Destino, 2006.
Ferrer, Antonio Fernández (org.). Borges
A/Z. Madrid: Siruela, 1988.
Kafka, Franz. Diarios (1910-1913). Trad.
Feliu Formosa. Barcelona: Lumen, 1975.
Kafka, Franz. Obras completas -
Narrativa completa. Trad. R. Kruger; J. R. Wilcock. Barcelona: Seix Barral,
1986.
Northey, Anthony. El clan de los Kafka.
Trad. Carmen Gauger. Barcelona: Tusquets, 1983.
Ribeyro, Julio Ramón. La tentación del
fracaso. Diario personal (1950-1978). Barcelona: Seix Barral, 2003.
Robert, Marthe. Franz Kafka o la soledad. Trad. Jorge
Ferreiro Santana. México: FCE, 1982.
Steiner, George. Lenguaje y silencio.
Ensayos sobre la literatura, el lenguaje y lo inhumano. Trad. Miguel
Ultorio. Barcelona: Gedisa,
1994.
* Este texto é a tradução libre de “Son nuestras las pesadillas de Kafka”,
publicado em El Cultural.
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