Por Gabriella Kelmer
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Lídia Jorge. Foto: Jean-Luc Bertini |
É o aceno involuntário de Carminha
ao lavar as janelas de casa o ato que recepciona o leitor que toma às mãos
O
dia dos prodígios (1979), romance de estreia da escritora portuguesa Lídia
Jorge. A narrativa, ao se iniciar com a pitoresca descrição da personagem, situando-a
para lá do vidro, simboliza o isolamento em que vivem a jovem e sua mãe, apartadas
dos outros habitantes do vilarejo por rejeição e anteparo próprio, devido ao
escândalo eclesiástico que fora o nascimento da moça. A limpeza sugestiona a
tentativa de dirimir as nódoas passadas; a transparência das janelas nega, ao
olhar externo, a presença de mácula na vida íntima. O narrador, que
alternadamente vê à distância a personagem e se entranha em sua subjetividade,
apreende simultaneamente o gesto do corpo e seu desejo interrompido de
liberdade. A saída às ruas é, à filha do padre, a manifestação da sentença
perpétua a ela imposta.
O caráter insular da vida da jovem
é adensado pela segregação geográfica, pois o enredo toma forma em
Vilamaninhos, decadente vilarejo ficcional na região do Algarve, ao sul de
Portugal. São escassas as novidades que transitam pela cidadela, de casas em
ruínas e êxodo da força de trabalho. Por essa razão, o insólito, quando se
apresenta, espalha-se rapidamente.
Depois de estarem limpas as
janelas, é na casa das Carmas — a filha, que já conhecemos, e sua mãe Carma
Rosa — que se tem a primeira notícia do aparecimento de uma cobra alada. Jesuína
Palha, mulher do povoado, fazendo as vezes de porta-voz dos demais habitantes,
direciona-se à residência das outras duas para dizer-lhes desaforos por se terem
mostrado apáticas à comoção gerada pelo acontecimento fantástico. Em meio às
ofensas proferidas, é descrito o encontro entre Jesuína Palha e o animal, que
fugiu voando. A existência da cobra, a partir desse ponto, passa a ser o ponto
de inflexão dos interesses do vilarejo, que se vê à espera de novo milagre.
“As asas saindo dos flancos, esse
relato invulgarmente obscuro, punha-lhes a boca à banda de tanto desconfiar da
verdade. De qualquer forma sentia-se outro, porque todos se encontravam
diferentes. Como assim? Ali, todos tinham sentido afinal que isso vinha a
caminho. Assim como um vazio por não comer desde a semana passada, ou um soco
no coração. Que fizesse o órgão andar como patas de cavalo solto de uma sela.
Os videntes. Esperança Teresa falou a quem foi visitar. Que aos sete pecados
capitais faltava um. Contra a maledicência, a temperança da língua” (Jorge, 1995,
p. 39).
Durante o ano que se sucede à
aparição da cobra, na monotonia dos dias que se estendem sem mudanças que deem
significado ao fato, ocupam a narrativa poucas figuras, marcantes em seus
dilemas privados. José Jorge Júnior e sua esposa, Esperança Teresa, relembram,
em desencontrado diálogo, o passado de heroísmo do vilarejo e os filhos, vivos
e mortos, com os quais não convivem pela negligência da prole. Branca Volante
tece diariamente um dragão em uma colcha sob as ordens do marido, José Pássaro,
que inicia o enredo a dominá-la física e psiquicamente. Enquanto isso, o
próprio Pássaro busca por uma mula que lhe fugiu às mãos depois de ser
submetida à dura surra, sendo a incapacidade de recuperar o animal perdido uma
ofensa à sua honra. Jesuína Palha deseja compreender as razões para o
surgimento da cobra. Carminha e sua mãe esperam a chegada do pretendente que as
salvará do destino de ostracização que a vida no vilarejo lhes destina.
Ao longo do enredo, a situação de
cada uma das personagens mudará sutilmente, havendo pequenas transformações em
âmbito privado, com a comunicação efetiva entre os idosos acerca dos filhos, a
libertação da vontade e do espírito da esposa violentada, a conclusão da jovem
de que não é possível esperar indefinidamente por um salvador forasteiro.
Apesar desses desenvolvimentos, sobrevivem à narrativa o alto grau de
moralização, violência e misticismo característicos de Vilamaninhos, ainda não
confrontada, ao fim do romance, com o vindouro processo de modernização.
Ao surgimento da cobra, que
mobiliza toda a escassa população do povoado, contrapõe-se ao fim da narrativa
a Revolução dos Cravos, fato da história portuguesa que marcou o encerramento
da ditadura salazarista no país. Na literatura, o acontecimento, divulgado por
todas as ruas da cidadezinha, torna-se a última esperança aos sinais colhidos
pelas personagens, que, depois de uma espera sem-fim pela cobra, passam a outra
espera de longos dias pela chegada dos soldados. Quando ela acontece, no
entanto, o diálogo é impossibilitado pelo linguajar dos lisboetas e pela
incompreensão dos vilamaninhenses, tornando-se a revolução uma decepção que nem
resolve o mistério da serpente alada nem ocasiona qualquer impacto na vida comezinha.
Não há solução definitiva para os
dilemas vivenciados pelas personagens, nem uma mudança estrutural da sociedade.
A manutenção de formas de dominação às margens da vida portuguesa permite
situar a diferenciação entre a revolução sonhada e a vivida. A população de
Vilamaninhos permanece alienada; que os soldados se mostram ineficientes em
estabelecer diálogo no dialeto do povoado. É nesse sentido que se pode
compreender por que a aparição da cobra, ao invés da realidade revolucionária,
é capaz de mobilizar os habitantes, enquanto os efeitos da chegada dos soldados
só repercutem como desengano.
“Todos os presentes se
entreolharam e sentiram alguma vergonha de si próprios. Os soldados tinham
abalado, encarregados sem dúvida de levar a visão a outros sítios. Viam.
Olhando-se nos olhos uns dos outros. Que se tinham alvoraçado por um nada. Mas
que não se desfaça o grupo. Disse Tiago. Iam as tuas cantigas tão belamente
cantadas. Macário achou que sim. Por isso levantou uma perna, descansou sobre o
joelho todo o corpo do bandolim. Abraçando-o. E cantou. Que uma cobra do mato.
No estertor da agonia. Ai no estertor da agonia. Dera o salto. Dera o salto.
Para outra freguesia” (Jorge, 1995, p. 184).
Posto nesses termos alguns pontos
relevantes do enredo, deve-se observar que Lídia Jorge, em seu primeiro
romance, opta por soluções notáveis para materializar as vozes que compõem essa
microssociedade, em uma construção de discursividade específica às cidades
pequenas. Tanto o ritmo como as escolhas lexicais da população emaranham-se no
discurso do narrador, que ademais conhece as personagens de dentro para fora e
cede amplamente a palavra por meio do discurso indireto livre. Tais escolhas
possibilitam reconhecer a vida subjetiva dos seres ficcionais, além de
proporcionar um efeito simultâneo de veracidade e subversão da dicção do
português interiorano. Além disso, há parágrafos inteiramente dialogais nos
quais os verbos de dizer são a única marcação da mudança de falante; vivem as
personagens em diálogos que marcam eles mesmos os acontecimentos e a passagem
do tempo, na ausência de outras mudanças. Há uma certa monotonia nos encontros,
que se repetem em estrutura e muitas vezes em temas. As intervenções de Jesuína
Palha e do povoado contra as Carmas ocorrem com a divisão do texto em colunas, dando
a impressão de sobreposição dos discursos e de uso do recurso dramático do
coro, que sugere uma unidade social a amparar a condenação e a punição
dedicadas aos perfis desviantes.
Os procedimentos mencionados
permitem reconhecer algumas características importantes à compreensão da obra.
Há uma variante linguística hermética, bem-marcada, que evidencia o afastamento
do povoado perante o resto de Portugal. Existe uma simultaneidade e
universalização dos julgamentos moralizantes, notada pelo recurso de
paralelismo das falas, que indicam o caráter conservador daquela população, o
que se comprova pela tolerância à violência marital e pela normalização do
abuso sexual contra as moças do vilarejo, não raro obrigadas a se casarem com seus
violentadores. Nota-se um elemento mítico, transcendente, que se vincula a um
lirismo e uma musicalidade presentes em diversas passagens do romance. A
manifestação do insólito e do fantástico passam por essa elaboração
linguística, sendo esses elementos vinculados especialmente à aparição da cobra
e à personagem Branca Volante, que, com sua vidência, consegue pôr fim à
dominação do marido.
“E então o estremecimento sobre a
montada da cama, veloz e horizontal, como se Pássaro se quisesse sacudir de si
próprio, despejar o seu interior aí sobre. Larva e linfa esmaecida. Branca
fecha os olhos. Desventrou-se de uma urina resinosa sobre mim. Agora todos os
pensamentos são amargos sob os ímpetos mal contidos. Nem um luz-em-cu atravessa
o quarto. Afinal Branca acorda com um tinido de esmalte” (Jorge, 1995, p. 43).
Sucedem-se, no romance, uma série
de outras temáticas, como a guerra colonial, a violência abjeta dos
ex-combatentes, a rejeição à modernidade, o alheamento político. Mas é a
linguagem musical, interiorana, que dá força a esse universo, em suas
especificidades, seus julgamentos, sua segregação. Todos esses elementos
apontam para uma condução narrativa hábil, de uma autora que, à época
estreante, era já bem experimentada em matéria de literatura. Sendo O dia
dos prodígios, dentre os romances de Lídia Jorge, o meu favorito, a leitura
é amplamente recomendada.
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