Nascido em Praga em 4 de setembro
de 1875, Rainer Maria Rilke era chamado de “o bom europeu”. Por um lado, escrevia
em alemão e em francês; por outro, viveu ao menos em meio centena de casas
espalhadas pelo continente. O sentimento de desenraizamento o acompanhou
durante toda a vida.
Será a infância, como diz a
expressão mais comum, a única pátria do homem? A dele não foi particularmente
feliz. Depois da morte da irmã, a mãe insistiu em continuar a vesti-lo como as
crianças de seu tempo, de menina, até os sete anos, compensando com mimos
excessivos o fracasso do casamento; aos onze anos, seu pai o mandou para a
academia militar, tentando compensar o fracasso da própria carreira no
exército, que lhe proporcionou um “alfabeto de horrores”.
Passou um ano em Munique, quando
recém entrado nos vinte anos, com o pretexto de terminar a formação, quando já
tinha a sensação de que a poesia seria a sua única ocupação. Foi onde conheceu
Lou Andreas-Salomé, a mulher mais determinante de sua vida, que lhe sugeriu que
fizesse psicanálise, procurasse um emprego e se tornasse, enfim, uma pessoa
normal. Foi Lou quem germanizou seu nome de nascimento, René, como Rainer
Maria. Ninguém o marcou tanto. Até a caligrafia dele, que era inclinada e
variada, tornou-se arredondada e clara, parecida com a dela.
Depois veio a viagem à Itália,
registrada em
O diário de Florença que só pode ser entendido como uma
prova de amor, e a chegada a Berlim, onde Andreas-Salomé morava com o marido.
Durante esses meses atravessaram florestas povoadas por gamos e corços; andando
sempre descalços, como prescreviam os ensinamentos do doutor Andreas, com quem
Lou estava casada havia uma década, talvez sem nunca ter consumado o casamento.
O poeta e filósofo Valverde dizia
que Rilke era um alemão muito eslavo, e a verdade é que não sentiu como era a
sua terra natal até atravessar a espessura da taiga. Na Rússia conheceu o
pintor Leonid Pasternak (seu filho, Boris, que tinha nove anos na época, mas
que, com o tempo, alcançaria fama mundial com
Doutor Jivago, nunca
esqueceria o encontro) e Liev Tolstói, com quem não terminou de se entender.
Não deve ter sido fácil lidar com o hiperestésico Rainer, vítima da apatia e
dos solavancos somáticos da criação poética (cada peça que terminava o deixava exaurido);
basta imaginar sua imagem com o caderno de apontamentos no bolso do colete de
cetim abotoado até o pescoço para se ter uma ideia de seu caráter pitoresco.
Mas existe sempre um descosido ou um rasgo e até o próprio Rilke, quintessência
dos desenraizados, encontrou uma terra onde poderia ter criado raízes.
Quando chegou em Paris, em 1902,
com a intenção de conhecer o escultor Auguste Rodin, encontrou uma cidade
repleta de hospitais e moribundos. A experiência lhe forneceu material para um
romance que inicialmente intitulou
Diário de meu outro eu e que acabou
se tornando essa obra de fronteira que é
Os cadernos de Malte Luarids Brigge,
um
totum revolutum, composto por digressões filosóficas, esboços de
poemas em prosa e anotações inclassificáveis. Por suas páginas desfilam santos,
poetas e reis malucos. Depois do livro que foi seu único romance, Rilke sentiu
que tudo estava dito e chegou a cogitar a possibilidade de desistir de escrever
e se tornar médico. Mas, na realidade, abandonou outras duas coisas: a prosa, à
qual nunca mais voltaria, e Paris; a Grande Guerra, que o surpreendeu na
Alemanha, impediu-o de regressar à Cidade Luz.
A seguir vieram Capri, Veneza,
Munique e, claro, o Castelo de Duino vieram a seguir. Depois de mais de uma
década de documentação, a sua travessia pela Espanha tinha que ser “a viagem
das viagens”. Chegou a Toledo seguindo o rastro de El Greco e ficou
decepcionado, pois a cidade não se ajustava com suas ideias preconcebidas. Da
sua estadia em Ronda tirou alguma inspiração: por exemplo, uma cançoneta
infantil que ouviu num convento de monjas e que, dez anos depois, ao escrever
os
Sonetos a Orfeu na torre de Muzot, no cantão suíço de Valais, de
repente viria à mente e inspiraria o “Soneto XXI”.
São conhecidas as reservas com que
Rilke tratava seus casos amorosos, testando suas roupas antes de expor seus
sentimentos e se fazendo de vítima em muitas ocasiões. Até a princesa de Thurn
e Taxis, proprietária do Castelo de Duino, o forte nas margens do Adriático
onde Rilke escreveu as suas famosas
Elegias, desistiu das suas
tentativas de arrumar o poeta para uma jovem triestina quando, com um rosto
torturado e lágrimas de crocodilo, o “tresnoitado donjuán” alegou que, se visse
a mesma jovem com frequência, corria o risco de acabar se tornando seu escravo.
Sua relação com Lou atesta isso. É por isso que é surpreendente que tenha
rompido com tanta determinação o casamento com Clara Westhoff, com quem teve
uma filha quando ambos eram muito jovens. Mas faz sentido se compreendermos
que, para Rilke, a literatura era uma espécie de sacerdócio. “Se consegues
viver sem escrever”, disse ele em suas
Cartas a um jovem poeta, “não
escreva”. A trashumancia era, aparentemente, uma condição da possibilidade de
escrita.
É difícil encontrar uma grande
cidade europeia onde não resida o “bom europeu”. É paradoxal, portanto, que a
sua viagem mais decisiva tenha sido uma curta caminhada. Certa manhã, em
janeiro de 1912, enquanto descia a ravina do Castelo de Duino até a praia de
Sistiana, na costa do Adriático, Rilke ouviu uma voz dentro de si fazendo uma
pergunta: “Quem, se eu gritasse, me ouviria nos coros celestiais?” Dez anos se
passaram até que, tomado de inspiração, escreveu em poucas semanas as
Elegias
de Duino, que começam com essa frase. Curiosamente, ele não as compôs no
castelo, mas na cabana da velha guarda, no meio da floresta, tendo apenas uma
mesinha e uma poltrona como companhia.
Não sabemos em que coros
celestiais pensava o “bom europeu”. Para alguns, inspirou-se no “anjo meridiano”
da Catedral de Chartres, a quem dedicou o primeiro grupo dos seus
Novos poemas;
para outros, no “anjo terrível” às portas do inferno, obra à qual seu mestre
Rodin dedicou trinta e sete anos e que ainda deixou inacabada; e, para outros,
nas pinturas de El Greco. Alguns apontam a semelhança com os daena do zoroastrismo,
e outros, com o malak do Alcorão. A sua identidade nos é indiferente, mas a sua
figura, convertida em tópico, cai como uma pedra na poesia de Rilke, e conduz a
inúmeras leituras, muitas delas simplificadoras. Foi Heidegger quem afirmou em
“E para que poetas em tempos de miséria?”, ensaio presente em
Caminhos de floresta,
que a tarefa do poeta é “prestar atenção ao rastro fugidio dos deuses” e “ainda
preservar o traço do sagrado.” Para simplificar, dir-se-ia que a obra de
Heidegger, talvez o filósofo mais importante do século passado, nada mais é do
que uma nota de rodapé à poesia de Rilke.
Se o tempo bíblico em que podíamos
ver os anjos nos parece distante, não é porque eles tenham fugido, mas porque,
ao não resistirmos à sua presença, deixamos de vê-los. Como lemos em
O livro
das horas: “Para onde foram os dias de Tobias, / quando um de entre os mais
luminosos apareceu, no simples limiar da entrada, / um pouco diferente, em traje
de viagem, já nada aterrador”. De acordo com Henry Corbin, o mundo ocidental
perdeu os seus anjos quando o mecanismo cartesiano nos dividiu em corpo e
mente, condenando-nos a vagar sem rumo, “na peregrinação e na perdição”. Para o
poeta John Keats, a filosofia cortou as asas do anjo; por isso, no seu poema
Lamia,
ele lamentou que o arco-íris se tivesse desfeito, como se, ao enunciar a teoria
corpuscular da luz, Newton tivesse roubado o enigma de um fenômeno que era
melhor não compreender completamente.
A retórica do “desencantamento do
mundo”, para usar as palavras de Weber, tem as suas raízes numa longa tradição
que surgiu na sequência da Revolução Industrial. Foram muitos os autores que,
desde então, tentaram nos convencer de que o preço do progresso é a perda de
sentido. Argumentam que a mesma técnica que nos permitiu medir e pesar o mundo
é a mesma que dele nos distancia, transformando-o numa espécie de borboleta
presa num alfinete, facilmente analisável mas desprovida de vida. Toda
tentativa de iluminação é, em última análise, uma espécie de desencanto. Aberta
a maquinaria de par em par, contemplamos as bielas e os pistões que alimentam a
decoração e, nesse momento, o mistério desaparece. Mas Rilke, apesar do que
sustentam muitos dos seus exegetas, não é o enésimo defensor do desencanto,
muito pelo contrário.
Como sugerem seus versos, talvez o
desenraizamento seja a condição natural do ser humano. A sétima elegia diz: “Cada
volta surda do mundo tem tais deserdados,/ aos quais já nada mais pertence, nem
o que virá…/ Pois até o mais próximo, para o homem, é longínquo.” Há duas
décadas ele havia escrito no “Dia de Outono”, incluído n’
O livro das imagens:
“Quem não tem lar já não terá; quem mora/ sozinho há de velar e ler sozinho”.
Mas a obra de Rilke, como nos ensinam não as
Elegias, mas a sua relativa
continuação, os
Sonetos a Orfeu, nada mais é do que uma tentativa de
oferecer novas raízes.
Não foi a procura de um substrato
firme, de raízes que a cosmopolita Praga lhe negou, que o levou a reivindicar
descendência de uma linhagem nobre estabelecida na região da Caríntia no século
XIII, proclamando assim as suas ligações com os Habsburgos? Na verdade, seu
sobrenome veio de alguns camponeses que chegaram à Boêmia quatro séculos
depois, mas isso não o impediu de gravar em seu túmulo um brasão inventado por
ele mesmo. Não é por acaso que a árvore genealógica descrita no “Soneto XVII” (“mas
os ramos ainda se partem. / Mas assim que se chega ao topo,/ curva-se em forma
de lira”) tomou a forma do instrumento de Orfeu. Haverá raízes mais vigorosas
do que aquelas regadas pelo “deus-rio do sangue”?
Quem percebe a melodia órfica que
inclui tudo, tanto os vivos como os mortos, cria raízes. “Um Deus o pode. Mas,
diga-me, e um homem como poderá acompanhá-lo numa estreita lira?” Olhando para
o lado na sombra. A poesia de Rilke, que é uma afirmação radical da existência,
agarra o leitor pela lapela e incita-o a abandonar o sofrimento, aceitando-o
completamente; acolher a percepção dos sentidos no espírito e do invisível no
visível. Como diz o famoso final do “Soneto XIX”: “Só o canto sobre a terra/ salva
e saúda.”
Em suma, lança raízes quem se fortalece
no mais profundo. “Quem saiba das raízes do salgueiro”, diz o “Soneto VI”,
“estará mais apto a dobrar os seus ramos”. Orfeu, graças ao seu sacrifício,
permite-nos ouvir a sua melodia. “E tudo ficou em silêncio. Mas mesmo no
silêncio houve/ um novo começo, uma mudança, um sinal”. Só depois da morte a
lira vibra: depois da morte do próprio músico, desmembrado pelas bacantes,
ofendidas pelos seus constantes desrespeitos, aliás; mas também antes, depois
da morte de Eurídice, a que vê morrer duas vezes. “Não tenha medo de sofrer e o
que é pesa/ devolva ao peso da terra.” Talvez a transcendência ocorra em vida,
e não após a morte, pois o sujeito se transcende não com a própria morte, mas
com a dos que o rodeiam.
Agora, quanta verdade — para dizer
com Nietzsche — pode afrontar o espírito? “Não que tu pudesses suportar/ a voz
de Deus, de modo algum. Mas escuta o sopro,/ a incessante mensagem que nasce do
silêncio.” Como? Olhando como o anjo olha. Ou seja, abrindo bem os olhos e olhando
para o interior (“Em lugar nenhum, amada, haverá mundo se não o dentro”).
Lembre-se da resposta de Rilke ao poeta que lhe pergunta sobre a qualidade dos
seus versos: “O senhor olha para fora, e é isso sobretudo que não devia fazer
agora. Ninguém pode aconselhá-lo e ajudá-lo, ninguém. Há apenas um meio.
Volte-se para si mesmo. Investigue o motivo que o impele a escrever; comprove
se ele estende as raízes até o ponto mais profundo do seu coração, confesse a
si mesmo se o senhor morreria caso fosse proibido de escrever.”
Rilke viveu para a poesia. A rosa,
que é a flor dos poetas, ensinou-lhe que não há fronteira entre a aparência e a
realidade, assim como não há fronteira entre o corpo e a roupa: “mas cada uma
das tuas pétalas evita / e ao mesmo tempo nega toda roupa.” Caráter é destino:
foi justamente o espinho de uma rosa que acabou com sua vida. Certa manhã, em
outubro de 1926, ela queria cortar uma rosa para uma amiga egípcia e foi picado
por um espinho; a ferida infeccionou e, para Rilke, muito fraco por causa da
leucemia, isso foi fatal. Em seu epitáfio se pode ler: “Rosa, ó pura
contradição, prazer de não ser o sono de ninguém sob tantas pálpebras”. Com
efeito, é pura contradição a razão pela qual o bom europeu não tem casa.
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