Por Pedro Torrijos
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Juan Tallón. Foto: Pablo Araújo. |
Cesare Pavese morreu em 26 de
agosto de 1950 em Turim. Alejandra Pizarnik morreu em 25 de setembro de 1972 em
Buenos Aires. Anne Sexton morreu em 4 de outubro de 1974 em Boston. Gabriel
Ferrater morreu em 27 de abril de 1972 em Sant Cugat del Vallès. Os quatro
cometeram suicídio.
Há alguns milhões de anos, um
hominídeo tomou a decisão de atravessar o rio que tinha à sua frente. A água
que bebia todos os dias, serena e plana na margem, golpeava contra as pedras do
centro da correnteza com a violência de um rio batendo nas pedras que se
interpõem no seu caminho. Mais do que tudo porque a linguagem daquele hominídeo
ainda não havia desenvolvido o conceito de metáfora. Ao chegar na outra margem,
ele se tornou um explorador e a civilização iniciou então a sua jornada. Desde
então, sempre quisemos ir mais longe. Sempre quisemos saber o que existe do
outro lado, visitá-lo, conhecê-lo, reconhecê-lo, desenhá-lo, contá-lo. Sempre
quisemos escrevê-lo. Fixamo-nos à beira de penhascos, nas extremidades dos oceanos,
no sopé das montanhas e no início de pistas de decolagem. Submergimos
batiscafos em fossas marítimas e enviamos sondas ao espaço. Porque sempre
quisemos atravessar esse rio. Porque sempre quisemos cruzar todas as
fronteiras.
Exceto uma.
Nas páginas iniciais de
O
problema dos três corpos, romance de Cixin Liu, a protagonista diz: “Com
exceção do território desconhecido do outro lado da morte de onde ninguém
jamais voltou, aquele pico isolado do resto do mundo era o lugar onde ela mais
queria estar.” Por quê? Talvez a pergunta esteja equivocada. Talvez perguntar-se
qual é o motivo que leva uma pessoa a pôr fim com a própria vida seja uma
tarefa estúpida. Primeiro porque o viajante não vai te responder, e segundo
porque na história existiu tantos casos que é difícil adivinhar um padrão.
Depressão, esquizofrenia, perda de esperança, decepção, euforia, tédio.
Pavese, Pizarnik, Sexton e
Ferrater eram poetas. Mas ao entrar no
Fim de poema, o leitor logo se dá
conta de que Juan Tallón não estabelece nenhuma pauta. Evita conscientemente os
momentos precisos da morte de cada um deles e apenas aborda suas motivações
possíveis, supostas ou reais: a enfermidade mental forçou Alejandra Pizarnik?
Será que Anne Sexton sofreu um esvaziamento quase instantâneo de suas
estruturas mentais enquanto dirigia a sessenta quilômetros sob o pôr do sol de
Massachusetts? O álcool matou Gabriel Ferrater ou talvez o tenha salvado? Sem
mencionar as decepções amorosas de Cesare Pavese; isso é o que ele queria nos
dizer, seu artifício para culpar. Não é o que Tallón resolve para nós. Na
verdade, também se não pergunta.
No papel, Fim de poema é
uma narrativa do último dia de vida de quatro poetas. No papel, a poesia é o
veículo que o escritor utiliza para abrir caminho, como um facão à frente de um
desbravador que entra na selva. Porque é isso que Tallón faz: explorar o único
território possível em ambos os lados da fronteira da morte. O que se abre — ou
fecha — na nossa margem, pouco antes de o viajante atravessá-la por vontade
própria. Assim, Fim de poema torna-se uma cartografia emocional e física
do suicídio. Do primeiro parágrafo:
“Cesare olha sem metafísica pela
janela a cidade derreter. Derrete lentamente, como o sol da infância. Passados
alguns segundos, gastos no prolongamento dos seus silêncios, ele percorre
descalço o corredor até a cozinha, onde Maria enxágua a roupa no tanque. Está com
um vestido florido e o cabelo solto. Cantarola algo que ele não identifica, ferrugento
e triste.”
O desenho é detalhado e meticuloso
como o trabalho de um relojoeiro diante de uma centena de engrenagens
desmontadas. Mas Tallón não monta as engrenagens, ele as rastreia, as
reconhece, as percorre, as saboreia. E nos conta. O crepitar de um fósforo em
contato com o tabaco prensado na ponta de um cigarro, o ronco do motor de um muscle-car,
o cheiro de gim gasto no fundo de um copo, a cidade derretendo ao toque dos
olhos e o toque de um quadro negro escrito e apagado mil vezes.
Fim de poema alterna quatro
tempos e lugares que, embora nunca tenham sido interligados, entendemos como um
mapa completo. Entramos pelas peculiaridades biográficas, políticas e criativas
dos quatro poetas; mas também pelas suas realidades materiais, suas casas, suas
pousadas, suas cidades, suas bibliotecas e suas estradas. Até desembocar, de
dentro do leito do rio, na decisão final. Em “o último movimento do rei no
xadrez”.
É possível mapear um lugar tão
complexo? Bom, Juan Tallón não é desenhista, como já disse mais de uma vez, é
escritor. Fala pela escrita porque pensa por escrito. E milhões de anos se
passaram e a linguagem desenvolveu quase todos os seus conceitos. Assim, como
um cartógrafo precisa do quadro de legendas para que os não iniciados possam
compreender o seu mapa, a metáfora é o mecanismo que Fim de poema emprega
para traduzir o território incompreensível do suicídio. Por isso “os sons
atravessavam a parede com a limpeza com que um pequeno objeto passa da mão
direita para a esquerda”, “Carmem fez a Gabriel uma pergunta que vinha pensando
há muito tempo, à semelhança de um caldo caseiro que exige lentidão e fogo
baixo” ou “Não passou da primeira palavra. Ficou enredado nisso como uma teia
de aranha.”
É curioso, porque a metáfora é um
dos recursos essenciais da poesia. O mais molecular, uma vez superadas a
métrica e a rima. Talvez a força esmagadora da poesia tenha acabado por
devastar todos os territórios daqueles quatro criadores e não lhes restasse
mais nada para descobrir em nosso lado da fronteira. Talvez Juan Tallón
estabeleça sim uma pauta.
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Fim de poema
Juan Tallón
Rubia Goldoni; Sérgio Molina (Trads.)
Poente, 2023
136 p.
* Este texto é a tradução livre de “Fin de poema:
cartografía del suicidio”, publicado aqui, em Jot Down.
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