Por Sérgio Linard
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Bora Chung. Foto: Hye-young. |
Talvez seja desnecessário
reafirmar o fato de que grande parte do que se produz na literatura sul-coreana
merece nossa detida atenção. Obviamente que como todos os materiais culturais
que recebem farta ampliação de investimentos e de divulgações, a saturação, a
produção de “enlatados” e a afirmação de ditames meramente declaratórios acabam
sendo valas comuns em que os excessos acabam caindo. Este não é, sobremaneira,
o caso de
Coelho maldito. O livro de contos, publicado originalmente em
2017, chega ao Brasil trazendo, pela primeira vez, a autora para os leitores
deste lado do Atlântico. Destaco, desde já, ser este um caso de leitura
bastante recomendada, seja por sua qualidade de condução narrativa seja por sua
abordagem de temáticas com primorosas ousadia e coragem já comuns — é verdade —
em muitas produções literárias orientais.
Normalmente, a elaboração de
contos exige, por parte do autor, um poder de concisão e de construção de um
bom conflito. Esse poder é, porém, muitas vezes falho, reduzido ou inexistente,
especialmente quando se observa uma coletânea de textos deste gênero, pois a
comum prolixidade de alguns acaba limitando a esperada capacidade de
cortar
e de aparar arestas que se façam desnecessárias para que a narrativa mais curta
atinja o objetivo proposto. É admirável, portanto, diante de uma realidade
contemporânea em que o arrojo para gerar desconforto e conflitos é escasso, o
fato de Bora Chung conseguir, em todos os dez contos que integram
Coelho maldito,
este feito.
O conto homônimo é também o que
faz a abertura do livro. Quando uma escolha como esta é feita, encontramos,
pelo menos, duas possibilidades, i) de que seja este o melhor texto da
antologia, gerando o potencial prejuízo de que as demais histórias sejam ofuscadas;
e ii) de que seja este um conto bom, mas não tão relevante como os outros,
justificando-se sua escolha para título da obra somente por ser o mais
comercial. Bora Chung, por sua vez, constrói outro caminho: o conto de abertura
é excelente, assim como os são os outros nove. É uma situação em que a
predileção por um ou por outro se constituirá, somente, por meio de
preferências temáticas subjetivas de cada leitor.
Além da nítida qualidade
literária, o que liga os textos é a presença de acontecimentos extraordinários.
Pessoas comuns, em aparentes vidas comuns, encaram algo que lhes parece
sobrenatural, dando ao conto margens para que, nos termos de Todorov — crítico
búlgaro radicado na França —, tenha-se a aplicação do fantástico. De uma
maldição contra aqueles que trouxeram prejuízos a amigos próximos, até a uma
mulher apaixonada pelo fantasma de um suicida, passando por uma senhora cuja
assombração é formada pelos próprios excrementos gestados em vasos sanitários,
os contos de
Coelho maldito ocupam-se de sublimes linguagem e narrativa
que proporcionam verticalidade nos escombros humanos por meio de caminhos
atípicos e, constantemente, irreais.
Em alguns contos, há mais
exploração das figuras funestas e macabras do fantástico em que cenas
representativas de filmes de terror são descritas. Desde a inconfundível oração
adversativa, elencada quando alguém pensa ter descoberto a chave de libertação
da maldição imposta, até mesmo a exclusividade de infantes de conseguirem
visualizar as ameaças sobrenaturais, o desfecho dessas histórias não cai no
tradicional maniqueísmo de bem contra o mal. Na verdade, o que interessa a elas
é exatamente o contrário disso: o conflito. Parece importar a este projeto
literário que o leitor, finda a apreciação de cada conto, questione-se sobre
ter sido um final justo ou injusto para as personagens ali construídas.
Em outros contos, como
“Reencontro”, “Lar, doce lar” e “Cicatriz” a forma com que o humano lida com a
morte autoinfligida e/ ou com a morte de outrem é pano de fundo para a condução
de personagens à tomada de decisões difíceis, incertas e, ainda, em aberto.
Nestes contos, a obra se aproxima mais de uma espécie de realismo mágico,
inclusive porque, como no caso de “Reencontro”, o sobrenatural é demarcado
somente em momentos finais da história lida. São estas escolhas e os abruptos
cortes que não permitem entrever certeza sobre o que se acabou de ler e que
fazem com que os contos de
Coelho maldito muito se aproximem de uma
tradição contística que bebe e se inscreve — direta ou indiretamente —da/ na
fonte do inconfundível autor argentino Júlio Cortázar.
“Observou aquele ser, criado não
pelo útero e pelo cordão umbilical, mas dos seus intestinos e excrementos.
Olhou para aquele ser que a atormentara por tanto tempo se escondendo naquele
buraco negro no vaso sanitário e que agora dizia estar pronto para partir. Se
aquele fosse o momento de despedida definitivo, o que importava entregar-lhe as
roupas do corpo
?”1
As marcas que buscam explorar as
possíveis figurações do feminino dentro das sociedades, são construtos que
também podem servir como elo entre os dez textos desta antologia. Isso porque,
invariavelmente, uma mulher, em diferente posição social, é colocada como
protagonista ou coadjuvante do texto lido.
No caso do excerto acima, retirado do conto “A cabeça”, a figura central
é convidada a encarar o resultado de suas abnegações em detrimento dos próprios
medos e desejos, tendo como consequência uma figura de si mais jovem disposta a
tomar o lugar daquele corpo velho, inaproveitado, e, agora, nos termos da
narrativa, inútil. Um debate que muito se apropria de discussões atuais, mas
que se propõe sem a simples horizontalidade das orações engajadas em vazios.
Contrário a isso, é por meio da oportunidade de confrontar aquilo em que nunca
se buscou conhecer a real profundidade que a história se concretiza. Chega a
ser estranha a escolha dos meios selecionados para tal fim, mas a provocação da
estranheza, do indigesto e do inquietante é que fazem com que os contos
alcancem pontos efetivamente reflexivos acerca daquilo que é lido.
Não obstante, é merecido o
destaque da presença de uma tradição oral como base para a construção de
histórias que,
a despeito da potencial ojeriza
diante do tema tratado, fazem com que o sentimento de impossibilidade de parar
a leitura antes de sua conclusão seja uma constante. Tanto histórias advindas
de um folclore popular, como em “O senhor do vento e da areia”, como a
reprodução de um episódio de contação de histórias entre um avô e sua neta,
presente em “Coelho Maldito”, demarcam a influência e o diálogo entre aspectos
populares e eruditos das histórias apresentadas, computando às narrativas uma
profundidade mais aguçada e perspicaz para problemas humanos de antes e do
agora. A figura consagrada do autor que recebe a “tocha literária” de outros
autores para conseguir construir sua própria obra é vista às claras, assim como
ocorre com as marcas singulares de uma escritora que domina o objeto que tem
mãos e demonstra saber exatamente em quais pontos quer chegar. Isso se
afirma ao olharmos para cada texto individualmente,
mas também ao encararmos a relação destes textos dentro da obra lida em sua
integralidade.
Além disso, de uma forma que
lembra a elogiada série televisiva
Love, Robots + Death, a autora
apresenta no conto “Adeus, meu amor” uma verve para a ficção científica que
chega a surpreender pela naturalidade dos fatos narrados. Criar, amar,
relacionar-se e sofrer pela falta de um robô são acontecimentos apresentados
sem quaisquer tipos de ressalvas ou de medos. A hesitação lida é somente pelo
sentimento de possível traição conjugal quando da necessidade de atualização do
companheiro eletrônico.
“Pensar no fato de que o
fabricante do meu primeiro amor foi ao mesmo tempo o meu primeiro trabalho e
ele o resultado do meu primeiro projeto me deixou um pouco melancólica e
hesitante, mas me decidi depois de encontrar um companheiro artificial de cabelos
castanhos e olhos verdes, muito parecido com o N. 1, no catálogo.”
Da edição a que tive acesso,
porém, pontos negativos de revisão gramatical, infelizmente, acabam saltando
aos olhos até mesmo de leitores menos exigentes (de mais, no lugar de demais;
nuca, no lugar de nunca etc.). Nada que diminua, de forma alguma, a qualidade
do texto lido, mas que merece o destaque para uma possível revisão mais
aguçada. Também é interessante saber que conhecer, brevemente, o currículo
acadêmico da autora — ela possui mestrado em literatura russa e do leste
europeu e doutorado em literatura eslava — ajuda a entender algumas escolhas
estilísticas e desfechos narratológicos que aparecem em alguns contos. Isso sem
cair, felizmente, em uma simples literatura confessional.
Coelho maldito é, portanto,
uma obra que coloca Bora Chung legitimamente em nosso radar de atenção, com
desejos para que seus romances também possam adentrar as leituras de
brasileiros em breve. A ver.
______
Coelho maldito
Bora Chung
Hyo Jeong Sung (Trad.)
Alfaguara Brasil, 2024
232 p.
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