B. Traven: o homem que nunca esqueceu
Por Barry Gifford
Ilustração: Vasyl Savchenko |
Por que Ret Marut — antissemita mas exaltado defensor do anarquista judeu
Gustav Landauer na Baviera em 1919 —, que muitos pensam ter se tornado B.
Traven, foi um contador de histórias e humanista que se isolou no México depois
de escapar de uma sentença de morte por ter sido declarado um inimigo do Estado
em Munique; havia tentado fugir para os Estados Unidos ou Canadá, havia se
escondido em Berlim durante quatro anos, fabricando e vendendo bonecos de pano
na rua com sua amante Irene Mermet (que mais tarde se casou com um advogado e
professor de Harvard e morou em Nova York), e esteve preso durante três meses
na prisão de Brixton, em Londres, por não ter se registado como estrangeiro e
se autodenominar Hermann Feige, a sua caligrafia era completamente diferente da
escrita do homem que se autoproclamava autor de cerca de uma dezena de romances,
além de alguns contos e um memorável trabalho documental?
O homem chamado B. Traven afirmou
repetidas vezes que a única coisa que realmente importa é a obra, não o autor,
conclusão com a qual tendo a concordar. Como aponta o estudioso de Traven,
Michael Baumann, nada se sabe realmente sobre Shakespeare ou Homero, mas a obra
dos dois é objeto de reverência e estudos variados. Não, não importa quem foi
B. Traven. O que importa — pelo menos para mim — é por quê.
Como muitas pessoas, o primeiro
contato que tive com a obra de Traven foi através do filme O tesouro de
Serra Madre, dirigido por John Huston, estrelado por Humphrey Bogart,
realizado em 1948. Nunca esqueci o menino, interpretado por Bobby Blake, que
vendeu um bilhete de loteria para Fred C. Dobbs, personagem interpretado por
Bogart, em uma taverna em Tampico. Quase meio século depois, Blake interpretou
outro personagem inesquecível chamado “O Homem do Mistério” em um filme que
escrevi em colaboração com o diretor do filme, David Lynch: A estrada perdida.
Em 1958, aos onze anos, mal sabia eu quando vi Bogart derramar uísque ou
tequila na cara do menino que tentava lhe dizer que acabara de ganhar na
loteria, que o verdadeiro “homem misterioso”, uma invenção da imaginação de um
gênio louco como o Dr. Mabuse, era o criador dos personagens.
Alguns anos depois de ver o filme,
comecei a ler os livros de Traven. Primeiro li o Tesouro, claro, e
depois O navio da morte, Os catadores de algodão, Uma ponte
na selva, Marcha para Montería, Governo e o resto da série de
contos sobre a selva. Li seus contos de O visitante nortuno, bem como
uma pequena joia de bolso que encontrei numa caixa de livros usados em
Chicago, pela qual paguei cinco centavos, chamada Stories by the Man Nobody
Knows (Histórias do homem que ninguém conhece, em tradução livre). Esse
foi o livro que me fez pensar por que... eu não me importava tanto com quem era
B. Traven, só queria saber por que não queria que as pessoas soubessem dele.
O poeta simbolista francês Arthur
Rimbaud deixou de escrever poesia aos dezenove anos, depois que seu amante, um
homem casado, o também poeta Paul Verlaine, atirou em seu pulso num hotel em
Bruxelas. Rimbaud ingressou na marinha holandesa, da qual desertou
imediatamente. Durante a sua vida posterior e relativamente breve — ele morreu
aos 37 anos — Rimbaud estava obcecado pela ideia de ser um perseguido pelas
autoridades holandesas, determinadas a prendê-lo e colocá-lo na prisão. Talvez
por isso tenha fugido da Europa e da vida literária, e se estabelecido como
traficante de armas e de escravos do rei Meneluk, da Abissínia, terra dos
homens “com cauda” e cara listrada. Rimbaud foi para o sul cerca de quatro anos
antes de o homem chamado Traven também partir. A diferença é que Arthur parou
então de publicar, enquanto Traven começou nessa época. Se Traven fosse
realmente Ret Marut, um fugitivo da Alemanha, talvez tivesse o mesmo medo, o de
ser feito prisioneiro e permanecer nas mãos das autoridades do Velho Mundo. Que
melhor solução do que mudar seu nome, sua geografia e até mesmo sua caligrafia?
(Para meus olhos destreinados, as amostras de sua caligrafia que Traven
forneceu aos seus biógrafos Karl Guthke e Baumann inicialmente parecem
masculinas — Marut — e depois femininas — Traven. As cartas deste último
possivelmente foram escritas por Irene Mermet, que visitou Marut-Traven no
México durante os primeiros anos que passou no país. No início da década de
1930, as cartas de Traven eram inteiramente datilografadas e às vezes mal
assinadas com uma assinatura pequena e ilegível.)
A pergunta insistente sobre B.
Traven é quem realmente escreveu esses livros. Será que Marut — cujo apelido
era sem dúvida um nome de plume de guerre — fez amizade ao chegar ao
estado mexicano de Tamaulipas com alguém que já os havia escrito ou estava
escrevendo? Não acredito. Acredito que O barco da morte (publicado na
Alemanha em 1926), como todos os outros livros de Traven, são obra do renegado
em alemão e foram mal traduzidos para o inglês por ele para fazer o público
pensar que os havia escrito por um estadunidense. Bernard Smith, editor da casa
Alfred A. Knopf, que publicou O barco da morte, reconheceu ter submetido
este romance a uma extensa revisão para tornar seu inglês aceitável.
Marut-Feige-Rathenau-Wilhelm, seja
quem for, continuou a trazer narrativas de sua nova terra, que resultaram na
série de livros sobre os camponeses e sua exploração por latifundiários
produtores de algodão, nos campos petrolíferos e na selva. Os catadores de
algodão foi originalmente denominado Der Wobbly, em homenagem à
organização International Workers of the World, de curta duração, que deu
origem ao designativo wobblies, e o tema era inteiramente consistente
com Marut.
O fato de este escritor ter
salpicado O barco da morte com detalhes e insinuações antissemitas e
depois, em 1933, em cartas ao seu editor fazer referência aos “judeus sujos”, “judiados
e semitizados de frente e de trás”, “gananciosos, viscosos, fedorentos [para
salvar sua] loja semita de departamentos” etc., não me surpreende. Mesmo um
chamado anarquista radical como Marut, e apesar do seu apoio a Landauer, tinha,
como alemão, profundamente esculpido o antissemitismo. Não me parece que seja
uma inconsistência: penso que se trata de uma enfermidade cultural, uma enfermidade
que predominava ontem e predomina hoje.
Em sua obra, B. Traven, pelo menos
até 1940, quando deixou de publicar, defendeu os direitos dos felás, da
classe baixa, dos “mais pobres”, ao mesmo tempo que lhes deu uma imagem nobre,
que se tornou numa espécie de forjador moderno de mitos, em congruência com seu
zeloso e egoísta idealismo intelectual. O que importa? Ele sabia contar uma
história e é isso que conta. É por isso que seus livros foram Best-sellers em
todo o mundo, apesar do estilo estranho, da sintaxe confusa, dos inacabamentos,
dos mal traduzidos ou dos mal escritos. B. Traven, quem quer que fosse, como
Joseph Conrad, que escreveu na sua quarta língua, criando assim um estilo
irrepetível, tinha algo importante a dizer. Ele não cutucou feridas sem
sentido, como fazem hoje a maioria dos escritores modernos. Esta é uma das
razões pelas quais seus livros continuarão vivos enquanto houver leitores.
Em abril de 2004, fui convidado por
uma das enteadas de Traven, Malú Montes de Oca de Heyman, e seu marido, Tim, um
banqueiro e escritor britânico, para almoçar na casa deles na Cidade do México.
O encontro foi organizado por um editor desta cidade que sabia do meu constante
interesse pela obra de B. Traven e sabia que, no início dos anos setenta, eu estivera
em contato com Rosa Elena Luján, a viúva de Traven (o escritor morreu em 1969)
e mãe de Malú. De alguma forma, consegui o endereço da viúva e escrevi para ela
porque havia um romance de Traven que eu nunca consegui encontrar, The Logs
(Os registros, em tradução livre) e queria saber se ela poderia me dizer como
encontrar um exemplar. Rosa Elena generosamente me enviou um exemplar, em
alemão porque não havia sido publicado em inglês. Contei a Malú, que me
informou que sua mãe — ainda viva, mas muito doente — obviamente percebeu a
sinceridade do meu interesse e estava me enviando o romance por causa de sua
atual dedicação ao trabalho do marido.
Contei também a Malú que em 1978,
enquanto estava em Mérida, Yucatán, conheci o dono de uma livraria que me
contou que tinha estudado com ela e sua irmã Rosa Elena, e disse ter visto
várias vezes o padrasto. Ele me descreveu o terceiro andar de sua casa, nas
ruas do rio Mississippi, onde ficava o estúdio de Traven, que chamavam de “A
Ponte”, como o de um navio, e me disse que Traven, a quem se dirigia como “Sr.
Traven”, e não Croves, sempre foi generoso com ele, que era um escritor
iniciante. Malú me explicou que seu padrasto usava o nome de Hal Croves em
público e para assinar seus roteiros, com o objetivo de separar essas obras de
seus romances. (Entre seus roteiros estão Macário e A rebelião dos torturados.)
Malú me mostrou as máquinas de
escrever de Traven, das quais uma Underwood portátil, manual, certamente, era a
que ele usava na selva de Chiapas, segundo me contou. Também me mostrou os
chapéus do escritor, incluindo um capacete de safári no qual havia encontrado o
cabelo de Traven. “Se eu conseguir encontrar algo para compará-lo”, disse Malú,
“poderia solicitar uma análise de DNA para descobrir quem ele realmente era”. A
verdade, reconheceu, é que nem ela conhecia a origem do homem que considerava
seu pai desde os dez ou onze anos. Ela e a irmã o chamavam de Skipper.
“Ele tinha as mãos mais singulares que vi em qualquer homem”, afirmou.
Malú e Tim foram anfitriões gentis
e me convidaram para conhecer os livros de Traven, não só as diversas edições
de seus romances, mas sua biblioteca pessoal, que foi o que mais me interessou.
Havia alguns livros em alemão, embora quase todos em inglês, especialmente de
ficção: Conrad, Conan Doyle, Wells. Havia títulos de Mencken e livros sobre
ouro e mineração, bibliografia que ele deve ter consultado para escrever O tesouro
de Serra Madre.
No final da década de 1970,
enquanto trabalhava como consultor editorial, recomendei a publicação do livro
infantil de Traven, A criação do sol e da lua, que foi publicado. Foi
uma acertada decisão e durante as negociações conheci o principal editor de
Traven nos Estados Unidos, Lawrence Hill. Malú também conheceu Hill, e eu lhe
contei que, uma vez almoçando com ele no Players Club em Nova York, ele me
disse que talvez nem o próprio Traven soubesse quem ele era. Isto quer dizer
que o homem chamado Traven, ou Torvsan, ou Croves, não tinha certeza sobre as
suas origens, e que isso estava intimamente relacionado com o obscurecimento da
sua identidade.
Foi no seu leito de morte que ele
aparentemente confessou a Rosa Elena, sua esposa, que ele realmente era Ret
Marut, e que ela poderia tornar isso público. Na minha opinião, falei para
Malú, Traven sempre soube quem era, quem eram seus pais, onde nasceu. Durante
tantos anos, tal como Rimbaud quando se voltou contra a força naval holandesa,
ele foi dominado e assediado por um medo semelhante, fundado ou não; e quando
todo perigo real ou imaginário passou, também passou sua capacidade ou
necessidade de se metamorfosear.
Mas uma coisa me incomoda: a
tentativa tardia de Traven enriquecer sua lenda literária escrevendo e
publicando um último romance: Aslan Norval, em 1960, vinte anos depois
de seu último romance de selva. Aslan Norval, até onde sei, foi
publicado primeiramente em alemão. Em 1960, Traven teria no máximo 78 anos
(a data de seu nascimento seria 1882 ou 1890), e segundo Rosa Elena Luján era
um homem vigoroso, mental e fisicamente forte quase até sua morte, nove anos depois.
O livro mostra o antigo antissemitismo expresso por Ret Marut em sua revista de
Munique Der Ziegelbrenner em 1919, e por B. Traven nas cartas aos
seus editores alemães em 1933. Este último romance é fraco e, consequentemente,
passou praticamente despercebido. Por que ele publicou
isso? A razão é que Traven era um escritor e nunca parou de escrever, mesmo que
apenas mentalmente, principalmente, e não conseguia mudar. A verdade última é
que B. Traven nunca pôde esquecer quem ele era.
* Este texto é a tradução livre de B. Traven: the man who never forgot, publicado inicialmente em The Cavalry Charges: Writings on Books, Film and Music (Thunder's Mouth Press, 2007)
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