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Bertha Wegmann |
Na aula
de sociologia, a aluna discutindo
O Espírito Protestante de Max Weber,
chamou o autor pelo primeiro nome. A professora questionou: “Que intimidade é
essa com o autor?”, ao que a aluna respondeu: “Somos íntimos sim, até levei ele
para cama ontem à noite”. A aluna referia-se ao fato de ter passado a noite
deitada em sua cama, com a luz de cabeceira acesa, estudando o livro. Essa é
uma anedota boba, mas que, de forma humorada, mostra a relação entre livro e
leitor.
O ato de ler é naturalizado pelo senso comum e é tomado como
algo orgânico, mas as formas de ler, a relação entre leitor e livro
modificou-se consideravelmente com o tempo. A começar pelo fato de que a
leitura é adotada simplesmente como recreação, quando também se trata de um
exercício físico e mental. Conforme argumenta o filósofo Antonio Gramsci:
“Deve-se convencer muita gente de que o estudo é também um trabalho, e muito
cansativo, com um tirocínio particular próprio, não só intelectual, mas também
muscular e nervoso.”
Em
Uma História Social da Mídia (2006), os
historiadores Peter Burke e Asa Briggs assumem que, à primeira vista, pode
parecer estranha a ideia de uma história da leitura uma vez que a maioria das
pessoas compreendem a leitura como uma atividade normal, sendo assim, “Em que
sentido pode-se dizer que ela mudou no tempo?”. Os autores salientam cinco
tipos de “formas de leitura” praticadas entre os anos de 1500 e 1800, são elas:
1) “leitura crítica”, segundo os autores, “graças ao aumento das oportunidades
de se comparar opiniões diversas em livros diferentes sobre o mesmo assunto”,
promovido pela impressão gráfica, a “forma de ler” tornou-se mais crítica; 2)
“leitura perigosa”, aqui, a prática “era vista como perigosa, especialmente
quando praticada por grupos subordinados”. Por volta do século XVII
autoridades, tanto civis quanto religiosas, acreditavam que a prática da
“leitura sem supervisão” era uma atividade subversiva, sobretudo a leitura de
jornais, que era compreendida como uma forma de encorajar as pessoas contra o
governo, de forma que a leitura
—
mesmo de ficção
— tornou-se
um hábito desencorajado; 3) “leitura criativa”, muitas vezes, argumentam os
autores, os textos podem ser interpretados de formas diferentes das propostas
por seus autores, esta é a prática da “leitura criativa”, aqui, mais importante
que o “o que se lê” é o “como se lê”; 4) “leitura extensiva”, marcado pela
proliferação e consequente dessacralização de livros, promovida pela impressão
gráfica. E por último, 5) “leitura privada”, frequentemente vista como fruto da
individualidade, esta “forma de ler” foi promovida pela mudança física dos
livros, “No século XV eles frequentemente eram fólios de tamanho grande que
necessitavam de apoios ou estantes para serem lidos. Nos séculos XVI e XVII,
pequenos livros se tornaram populares”. Ou seja, a forma do livro e a relação
entre livro e leitor modificou-se com o tempo e continuará a se modificar.
Em sua crônica “O Romance morreu?” Rubem Fonseca questiona a
máxima de que a leitura está fadada a ser abandonada conforme emergem novas tecnologias.
No texto o autor afirma que a primeira morte foi anunciada ainda no século XIX,
mas Dickinson, Kafka e mesmo Machado não assinaram o atestado de óbito. Depois,
no século seguinte, com o cinema e depois a televisão, o romance de ficção não
sobreviveria. Mas Mann, Eliot, Hemingway, Camus e muitos outros não ficaram
sabendo. E, por fim, a internet veio para salgar a terra na qual a literatura
está enterrada. Só esqueceu de avisar Pablo Neruda, Drummond e García Márquez.
Qual conclusão Rubem Fonseca tirou disso? Que os leitores podem até acabar, mas
os escritores não. Nem que terminassem como Kafka, escrevendo apenas para si
mesmos.
Bem, já não estou certo se podemos dizer isso.
Faz algum tempo, me lembro de ter ouvido no Podcast
Curta
Ficção o termo “Escritor que não lê”. Foi Jana Bianchi, editora da excelente
(e finada) revista de ficção especulativa
Mafagafo,
quem desabafou ao dizer que muitos autores que mandavam material para a revista
nem mesmo se davam o trabalho de ler o edital. O que a levou a especular, “Se o
sujeito não se dá o trabalho de ler um edital, o que ele lê?”. Então, se nem os
escritores estão dispostos a ler, quem está?
O relatório Retrato da Leitura no Brasil, elaborado pelo
Instituto pró-livro, publicado em setembro de 2020 (o último levantamento
registrado), apontou que entre 2015 e 2019 o Brasil perdeu 4,6 milhões de
leitores. Para a pesquisa foi considerado “leitor” aquele que leu ao menos um
livro (mesmo que em partes) nos últimos 3 meses. Os três gêneros mais lidos,
conforme listado, foram: “Bíblia”, “Contos” e Religiosos” (o “romance” ficou em
quarto lugar, parece que ainda não morreu). Esse cenário, no entanto, pode ter
se modificado. Desde 2020, os índices de venda de livros no Brasil parecem
crescer. Só em 2023 o
Painel
do Varejo de Livros no Brasil registrou uma variação positiva de 8%
nas vendas do setor. Então, é aí que estão os
leitores?
O youtuber mais proeminente do país, periodicamente,
desencoraja a leitura de um dos maiores clássicos nacionais. O ministro da
Economia do ex-governo defendeu abertamente a taxação de livros alegando que
“só rico lê”. Convido a todos a visitarem o
Museu Virtual
da Leitura. Criado e mantido por alunos dos cursos de arquivologia e
biblioteconomia da Universidade Federal Fluminense, desde 2016 o canal no
YouTube reúne entrevistas com anônimos sobre suas experiências no campo da literatura.
Vasculhando por alguns minutos verifica-se como é consumir livros no Brasil.
Como o livro é tratado na escola quase como uma punição. Como o acesso é
relativamente difícil, mas quase sempre o incentivo é feito no núcleo familiar.
E de como o mercado editorial age sem que o consumidor (pois é isso que o
leitor é) se dê conta.
O fato é que, a forma como um livro é consumido é apenas uma
ponta desse ninho.
A
produção literária
— seja ela
acadêmica, técnica, religiosa, política, filosófica, ficcional e mais
— pode ser apresentada como
produto de trabalho de um intelectual. E, este produto é contextualizado em
todas as suas dimensões, tanto subjetivas e semânticas (seu conteúdo, palavras
e termos adotados), quanto físicas e monetárias (tamanho e material usado,
valor de venda e de produção, remuneração do escritor).
Conforme demonstra Miguel
Alberto, na obra
A forma do livro (2012), desde os primórdios os
leitores exigiram diferentes formatos dos livros a fim de adaptar às suas
diferentes necessidades. E o formato e material ditavam a vida da obra, como
seria comercializada (se comercializada) e como seria armazenada. O livro como
conhecemos hoje, em brochura, só deu as caras na era vitoriana (1837-1901), até
então passou por uma série de mudanças. E, embora o conteúdo subjetivo e
semântico possa ser relacionado ao autor intelectual da obra (na maioria dos
casos), o mesmo não pode ser dito do conteúdo material de um livro. O
historiador Robert Darnton, conta, em
O beijo de Lamourette (2010), que
o livro se trata de um produto de um circuito que envolve o escritor e editor
como “criadores”, mas que passa entre “gráfica”, “distribuidores”, “livreiros”
até os “leitores”, sendo que os próprios autores e editores são (ou eram)
leitores. Mas entrar nesse circuito não é tarefa fácil.
Hoje, as plataformas de autopublicação tiraram um pouco o
poder das editoras tradicionais no vespeiro que é o mercado editorial
brasileiro, mas deu ao autor todas as atribuições da jornada do livro. O
escritor tem que ser editor, diagramador, revisor, muitas vezes até capista,
distribuidor e vendedor. E no final, volta a pergunta, onde estão os leitores?
Se o otimismo ainda não for crime (talvez seja só
insensatez), permita-me lembrar os autores independentes que porventura estejam
lendo que o primeiro livro de Ernest Hemingway (
Three Stories and Ten Poems)
só ganhou materialidade através de uma autopblicação. Então que Rubem Fonseca
esteja certo. Você, escritor, escreva! Alguém eventualmente te levará para a
cama, nem que seja outro autor.
Mas vê se lê a droga do edital da próxima vez.
* João Victor Uzer é natural da região metropolitana do Rio
de Janeiro, é historiador e bibliotecário. Desde 2018 escreve ensaios e
pequenas crônicas para blogs, jornais e revistas online.
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