A sombra do gigante

Por Jordi Canal

Mario Vargas Llosa. Foto: Oscar del Pozo.


A Académie Française elegeu Mario Vargas Llosa como novo integrante da instituição em novembro de 2021. O Prêmio Nobel de Literatura de 2010 ocuparia o assento número dezoito. Já imortalizado — nome dado aos eleitos a partir da reservada cerimônia de posse —, no dia 9 de fevereiro de 2023, teve lugar o ato de recepção, com a notável presença do antigo rei da Espanha Juan Carlos I, sob a cúpula da sede parisiense da Academia. Vargas Llosa apareceu com o obrigatório uniforme verde — na verdade, azul escuro ou preto, com bordados de ramos de oliveira verdes e dourados — e a espada simbólica, que no seu caso era obra do mestre espadachim de Toledo Antonio Arellano. O escritor hispano-peruano proferiu um notável discurso no qual, além de fazer os elogios obrigatórios ao seu antecessor na décima oitava cadeira, o filósofo Michel Serres, abordou a sua relação com a França, a literatura francesa — em primeiro lugar, obviamente, de Gustave Flaubert — e o hoje e o amanhã do romance. Afirmou, entre muitas outras coisas: “Uma vida sem literatura seria horrível, sinistra, desprovida das mais ricas e variadas experiências da vida, uma intolerável rotina, feita de obrigações que se repetiriam diariamente como um conjunto de compromissos sem promessa de remissão.”
 
Alguns meses antes, em 1º de dezembro de 2022, a editora francesa Gallimard publicou Mario Vargas Llosa, écrivain du monde, do filólogo e tradutor Albert Bensoussan. Ambos os eventos estavam intimamente relacionados. O último capítulo do livro é dedicado, nesse sentido, a discutir a relevância da decisão da Academia Francesa. É verdade que a eleição foi bastante excepcional, tanto pela idade e a nacionalidade do escolhido, como pelo fato de ter recaído sobre um escritor de língua não francesa. O autor insiste em alguns aspectos. A entrada de Vargas Llosa em La Pléiade, em 2016, por um lado. Foi o primeiro autor não francês a ser publicado em vida nesta prestigiosa e clássica coleção, tão importante para o próprio romancista em sua juventude peruana e, evidentemente, mais tarde. Por outro lado, a paixão de Vargas Llosa pela literatura francesa, de Flaubert a Hugo, de Malraux a Camus, de Aron a Revel. Afinal, diz Bensoussan, “escritor peruano, escritor espanhol, Vargas Llosa é também um dos mais brilhantes divulgadores da literatura francesa”. E, na linha seguinte, acrescenta, no que constituem as frases finais do livro: “E um desses autores universalistas que ele próprio admira. Um verdadeiro clássico contemporâneo. Um escritor do mundo.”
 
Albert Bensoussan é o tradutor de quase toda a obra de Vargas Llosa para o francês. Desde 1974, com Les chiots (Os cachorros, 1967), ele observa: “Traduzi tudo”, romances, peças de teatro, ensaios — cerca de cinquenta volumes — e “centenas de artigos de extensão variada”. Na época só lhe escaparam A cidade e os cachorros, A casa verde e Conversa no Catedral, embora este último tenha sido retraduzido quarenta anos depois, em 2015. É verdade que alguns ensaios, como o que Vargas Llosa dedica a Gabriel García Márquez em 1971 ou o Diário do Iraque, nunca foram publicados na França. Nem, por enquanto, o trabalho recente sobre Pérez Galdós.
 
Nas últimas três décadas, Anne-Marie Casès e Daniel Lefort colaboraram com Bensoussan nas traduções. Com isso assinou, em 2021, a versão de Temps sauvages (Tempos ásperos, 2019). Ele afirma que, “em cinquenta anos de mimetismo, transformei-me na sombra falante do grande escriba”, o que significa, entre outras coisas, partilhar a seu “cotidiano mental”. O tradutor constitui uma ponte entre culturas, que precisa ter a mesma criatividade do autor, pois inventa o mesmo texto em outra língua: “Traduzir é criar e, inversamente, criar é traduzir”. Ele é uma espécie de autor a posteriori, uma sombra: “Nada se opõe, nos seus termos”, assinala Bensoussan, “tradução e criação, mas tudo as separa, não um muro na realidade, mas simplesmente a altura de uma letra maiúscula que converte o Autor em gigante e o tradutor, não em anão, obviamente, mas na sombra deste gigante.” A sombra do gigante: uma caracterização esclarecedora.
 
O livro apresenta ao público francês a extensa obra de Mario Vargas Llosa — os elementos mais estritamente biográficos, porém, são transferidos para um apêndice cronológico. O tratamento de cada peça é muito desigual, tanto em extensão como em profundidade e perspicácia. Nada é dito sobre alguns dos livros: sobre A casa verde, por exemplo, talvez porque não tenha sido objeto de sua tradução. A outros, porém, Bensoussan dedica muito espaço. É o caso de A guerra no fim do mundo (1981) ou Travessuras da menina má (2006). Ele insiste, no primeiro, que levaria um ano inteiro para traduzi-lo para o francês, na sua definição de livro de cavalaria e aventura. Subestima, no entanto, na minha modesta opinião, o papel na narrativa de um dos personagens, o jornalista míope, uma homenagem de Vargas Llosa ao grande Euclides da Cunha, autor de Os sertões (1902). Este romance total, “rico e complexo” segundo Bensoussan, está na linha que dará origem aos seus dois romances mais políticos e mais barrocos: A festa do bode (2000) e sua parcial extensão Tempos ásperos (2019). Travessuras da menina má, autêntica “geografia moderna de um amor louco”, é, em sua opinião, o romance mais flaubertiano do escritor. Os romances desse “fabuloso contador de histórias” que é Vargas Llosa, afirma Bensoussan, “colocam o nosso mundo na sua justa realidade, cheio de som e fúria, sangue e sexo, e todas as misérias da humanidade”.
 
Entre os ensaios, embora quase nada seja dito, algo surpreendente, de A verdade das mentiras (1990), se destaca com bom critério sobretudo A orgia perpétua (1975) — “uma confissão de um escritor do século” em forma de homenagem a Flaubert —, A tentação do impossível (2004) — estudo “brilhante” e meticulosamente documentado sobre Victor Hugo — e O chamado da tribo (2018), obra de pensamento de um “liberal universal” , isto é, humanista e democrático.
 
De qualquer forma, as partes mais interessantes de Mario Vargas Llosa, écrivain du monde são, sem dúvida, as que se referem à tradução. Dar, afinal, “uma voz francesa” a este escritor hispano-peruano que, “no seu objetivo totalizador”, disse tudo sobre a vida e as coisas. Bensoussan se refere em alguma passagem a meio século de mimetismo. São muito sugestivas as páginas dedicadas ao seu papel de “tradutor erotizado” em relação a Travessuras da menina má, obra que considera como uma reflexão sobre a profissão de tradutor e intérprete. Em mais de uma ocasião alude ao personagem Salomón Toledano, “arquétipo do tradutor”, poliglota e descendente de judeus sefarditas, que o fascina. As reflexões sobre a tradução para o francês de algumas passagens ou palavras, como huachafería — para cucuterie —, tão peruana, ou de títulos, por exemplo El paradiso en la otra esquina (O paraíso na outra esquina, 2003), que resulta em Le paradis – un peu plus loin, são fascinantes. Finalizo com uma frase de Albert Bensoussan que, a meu ver, resume bem os fundamentos desta obra dedicada a Mario Vargas Llosa: “A cultura francesa ensinou-o a ler melhor e ele ensinou-nos a lê-la melhor”. 


* Este texto é a tradução livre para “La sombra del gigante”, publicado aqui, em Letras Libres.

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