A memória de Borges

Por Alejandro Zambra





Dois amigos incansáveis passam a última noite de 1970 traduzindo Shakespeare. Os amigos se chamam Borges e Bioy Casares. Não são exatamente mestre e discípulo, mas de alguma maneira o velho Borges inventou Bioy. Ou, melhor dizendo, é Bioy, com suma cortesia, que se deixou inventar, com a condição de manter alguns favoráveis sinais distintivos: ao lado de Borges será sempre jovem; ao lado de Borges será sempre longo, porque escreve romances, os romances que Borges aceitou não escrever para que Bioy os escrevesse.
 
Naquela noite, a de 31 de dezembro de 1970, após jantar peru com purê, os amigos incansáveis trancam-se a traduzir Shakespeare. “Com Borges dormimos um cadinho, versificando em espanhol as bruxas de Macbeth”, escreve Bioy em seu diário, e a imagem reaparece de forma invariável: em 10 de janeiro diz que trabalharam “cabeceando entre hendecassílabo e hendecassílabo”, e em 13, que traduziram “entre cabeceios”, e em 18 é Borges quem aceita que trabalhem “na força da resignação”. Para dar um pouco de ânimo comentam, com inflexível desdém, outras traduções (sobre a versão de Guillermo Whitelow: “Se os atores representarem Macbeth com o texto de Whitelow, morreriam afogados, sufocados. Ele a deve ter feito para ganhar uns pesos.”). Entediam-se com o ritmo das sílabas, distraem-se: muito mais que Macbeth o que lhes interessa é Shakespeare. É como se traduzissem Macbeth para escapar de Macbeth, para esquecer um motivo de traição na lembrança contínua daquele semblante que “mesmo através das más pinturas da época não se parece com nenhum outro”: o rosto de Shakespeare, o rosto de um homem que depois de ser muitos quis ser alguém e não conseguiu.
 
O trabalho é interrompido por uma viagem de Borges; ao regressar a tradução se mostra árdua e desnecessária: “Shakespeare é o ápice do espírito humano? Melhor não traduzi-lo; melhor não olhá-lo tão de perto – acabaremos por desprezá-lo. Que dificuldade ele tem para contar as coisas mais simples! Ou estaria tão acostumado ao estilo grandiloquente que não podia dizer nada com simplicidade?” Olhar de perto é perigoso, pensa Borges, e Bioy o olha de perto e logo transcreve, em seu diário, cada frase de Borges, com afeto e com certa prudência ou lealdade que o impede de denegri-lo ou mitificá-lo (“em geral, não lhe parecem boas as ideias que não são suas; digo isso sem amargura, como uma simples constatação”). Bioy precisa de Borges, Borges precisa de Bioy. O inventor precisa de sua invenção, o inventado precisa que seu inventor siga sonhando. Por isso transcreve cada palavra que o inventor diz. Por isso inventa o seu inventor, permite-se esse luxo. E Bioy aprecia os luxos.
 
Traduzir Macbeth não é um luxo nem uma necessidade. É uma piada: “Amanhã, talvez, trabalharemos... em algo que não seja Macbeth”, diz Borges. O projeto permanece inacabado durante anos, para sempre. Uma noite de 1985, em um de seus últimos encontros, Bioy propõe a Borges terminar a tradução e Borges responde que sim, que por pior que fique será certamente melhor que o Hamlet de Gide. Talvez naquele momento Borges já houvesse decidido deixar no meio essa versão de Macbeth. Em 1980 havia publicado A memória de Shakespeare, seu último conto — “o que imaginamos (surpreendidos pela perfeição deste fim) como o último conto de Borges”, diz Ricardo Piglia em Formas breves — cujo protagonista, Hermann Soergel, também é autor de uma versão inacabada de Macbeth.
 
Quando oferecem a Soergel a memória de Shakespeare (“desde os dias mais antigos e pueris até os do princípio de abril de 1616”), ele imediatamente pensa em escrever a biografia definitiva sobre Shakespeare, mas logo compreende, com inquietação, que a memória “não é uma soma; é uma desordem de possibilidades indefinidas”. Soergel possui apenas as circunstâncias, o “material incongruente” que Shakespeare converteu em poesia: “O acaso ou o destino deram a Shakespeare as triviais coisas terríveis que todo homem conhece; ele soube transmutá-las em fábulas, em personagens muito mais vívidos que o homem esmaecido que os sonhou, em versos que as gerações não enjeitarão, em música verbal. Para que destecer esta rede, para que minar a torre, para que reduzir às módicas proporções de uma biografia documental ou de um romance realista o som e a fúria de Macbeth?”
 
E Bioy? O que fez Bioy com a memória de Shakespeare? Não tentou compor uma biografia ou um romance. Tampouco escreveu, a rigor, um diário de sua amizade com Borges; explico-me: escreveu um diário de vinte mil páginas e teve a delicadeza de separar para nós as mil e seiscentas páginas que se referiam a Borges; escreveu mil e seiscentas páginas sobre Borges e destinou as restantes dezoito mil e quatrocentas a não escrever sobre Borges.
 
Um diário deve ser indiscreto, pensava Borges, e o de Bioy cumpre maravilhosamente bem essa regra. Mas Bioy não quer, não pode escrever a verdade sobre Borges. Ninguém pode. Bioy age como memorioso, anedotista; deseja capturar o material incongruente, a vida esmaecida, as “triviais coisas terríveis” que todo homem conhece. Prefere dar vida a Borges, convertê-lo em um imprescindível personagem secundário. Prefere que Borges seja, no fim das contas, alguém.
 

Dezembro, 2006
 

* Tradução de Guilherme Mazzafera. O texto “La memoria de Borges” encontra-se compilado no volume No leer (Editorial Anagrama, 2018).
 

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