Por Pedro Fernandes
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Péter Nádas. Foto: Fredrik Sandberg |
Devido sua riqueza narrativa e
simbólica, a literatura desde sempre recorreu à Bíblia como matéria criativa. O
primeiro romance de Péter Nádas é um exemplo disso. O livro dos livros é
recuperado no uso intertextual e funciona também como um elemento nuclear e
mesmo essencial para as significações e o funcionamento da narração, esta que,
à semelhança dos textos bíblicos tratados como sagrados pelas religiões que os
utilizam, é apenas superficialmente simples mas complexa em sua profundidade.
Articulado pela memória do
narrador adulto que se desdobra sob perspectiva infantil, o que se narra em
A
bíblia é apenas uma curta passagem de tempo quando os dias numa casa de
altos funcionários do governo comunista do tempo de Mátyás Rakosi são marcados pela
chegada de Szidike, uma jovem de dezessete anos contratada para cuidar dos
afazeres domésticos. Esse núcleo familiar é formado por Gyuri, quem conta a
história, os pais e os avós maternos. A presença de Szidike se deve ora pelo reconhecimento
das limitações de uma mulher em idade avançada para cuidar de uma grande
propriedade ora em cumprimento de certo estatuto social ocupado pelos patrões.
O narrador repara, num jogo comparativo com os seus vizinhos, nas qualidades que
tornam os Till como parte de uma seleta classe social, impressão que se acentua,
quando no desfecho da narrativa, entra em contato com a periferia rural de onde
proveio a jovem empregada.
É preciso notar que a introdução de
Szidike no âmbito desta família acontece depois de dois incidentes tratados
como relevantes no âmbito dos intermináveis e monótonos dias de Gyuri, restritos
à escola, aos estudos e ao vagar indefinidamente entre os cômodos da casa e o
imenso jardim: o ataque violento que resulta na morte do cão da família e o
despertar amoroso de Gyuri por Éva, a filha dos vizinhos, iniciado como parte
de uma curiosidade infantil durante suas investigações entre a rica vegetação do
horto.
Em pelo menos dois dos três episódios
até agora mencionados, encontramos explicitamente ecos bíblicos: o Éden, assinalado
desde a matéria do nome do amor infantil de Gyuri; e o desfazimento dessa ordem
primordial pela presença de uma estranha marcada pela premonição sentenciada
pela matriarca dos Till de que a empregada “não daria certo”.
A serpente-Szidike modifica a casa
dos Till duplamente: Gyuri começa a entender que a rotina dos pais e a maneira
como é tratado se modificam ligeiramente. Exemplo disso é se perceber
continuamente vigiado pela estranha, uma vez que, antes os olhos dos avós
eram-lhe invisíveis ao ponto de não ser descoberto no que fazia distante dos
olhos dos pais, como a violenta atitude que resulta na morte do cão. Depois, a
própria avó, que trata a casa como se sua propriedade, sente a autoridade ameaçada,
abrindo-se uma silenciosa disputa de poder entre mãe, filha e empregada. Gyuri
percebe naturalmente as circunstâncias da avó e com ela é um elemento a mais nas
várias investidas lançadas contra Szidike.
Uma série de pequenos
acontecimentos colocam a empregada sob ameaça e chamamos atenção para um deles especificamente
devido a presença da Bíblia. Certa altura, descobrindo o cristianismo de
Szidike, o menino educado no ateísmo comunista recorre à biblioteca da família
e resgata uma antiga Bíblia e dela se utiliza para sua postura de inquiridor
sobre a jovem, confundindo questões morais e dogmáticas no entendimento de que
o livro funciona tão somente como subterfúgio para esconder os vícios do
crente. Esse objeto aparece outras duas vezes no desenvolvimento da narrativa:
quando o narrador recorda a função do livro na manutenção do disfarce utilizado
pela mãe na época de prisão do marido durante o cerco nazista; e quando essa
mesma Bíblia é encontrada na casa de Szidike, ocasião em que o narrador,
negando a imagem de ladra que se forma sobre a jovem, assume para a mãe que foi
dele a ideia de presenteá-la com o livro.
A presença da Bíblia funciona distintamente
no funcionamento dos sentidos do romance e o principal deles, nesse derradeiro
episódio, é manutenção da indecibilidade suscitada pela matéria narrativa. Afinal,
Szidike é a serpente capaz de desfazer a ordem idílica do Éden ou isso decorre
das atitudes de uma mulher interessada em recompor sua presença divinal no
paraíso ou das diatribes do neto mimado de trono igualmente ameaçado? Desfeita
a incipiente possibilidade do enovelamento amoroso com Éva ou transferida para
Szidike, a atitude final de Gyuri funcionaria como prova da sua idealização
pela jovem ou ainda uma eventual tentativa de redenção — no sentido mais
deturpado de sua terrenal e ateia consciência — ante os silenciamentos talhados
para os pais, a começar pela morte do cão?
Sabemos que os textos bíblicos têm
sido lidos ora pela perigosa rédea do dogma dos homens, isto é, como justificativa
dos seus vícios e suas opressões, ora como uma resposta para os mistérios da
existência, ora ainda como simples livros que documentam os modos de vida de
vários povos e sua formação em torno do monoteísmo. Pelo que observamos até
aqui, Péter Nádas utiliza-se dessas premissas para o seu romance: para Gyuri é
o livro com o qual formamos nossas maneiras de oprimir; para Szidike, entre os
mistérios que ocupam sua existência, a resposta para o seu padecimento terrenal;
para o romancista, seu livro que traz a bíblia no próprio título, documenta a
vida de uma sociedade cuja saída dos horrores do nazismo e ingresso no
comunismo estava distante de significar uma trégua da violência do Estado sobre
os seus indivíduos.
Sem se ater ao epicentro da história
ou deslocá-lo como plano de fundo para o interior da rotina de uma família de
altos funcionários do partido comunista, A bíblia prefere a força
transfiguradora da objetividade à atitude de retrato do realismo
historiográfico. Justifica tal escolha, o ponto de vista do infante, sempre
capaz de, simultaneamente, no comedimento do relato, constatar a realidade direta
mas nela imiscuir o que a consciência ainda não alcança totalmente. E não será
isso a própria forma da consciência adulta? A literatura, uma das nossas melhores
invenções, prova isso desde há muito.
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A bíblia
Péter Nádas
Paulo Schiller (Trad.)
Todavia, 2023
112 p.
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