A presença de Emerald Fennell no
rol da fama como diretora de cinema aparece com
Promising Young Woman,
filme que ela escreveu, produziu, dirigiu e fez com que se tornasse a primeira
mulher britânica indicada ao Oscar de Melhor Diretor. O feito não é apenas
inédito ou grandioso. Ele é produto de uma obra que a altura fomentou
expectativas muito positivas em relação aos próximos trabalhos de Fennell e eis
que, dois anos adiante, somos apresentados a
Saltburn, um filme que
repete o interesse da crítica e das premiações especializadas com a atenção
fora da curva do público. É possível que essa nova obra cumpra um passo a mais
na carreira recente da diretora. O filme é bem executado, se organiza
utilizando as estratégias que deram reconhecimento a outras produções
reconhecidas ao longo da história do cinema e dos clichês que atendem bem ao
gosto popular.
O reuso das narrativas de vida
universitária e de romance gay são bons exemplos. Embora o filme não seja nem
uma coisa nem outra, seu enredo sustenta de uma ponta a outra o tema da
irrealização amorosa entre dois homens, beneficiando-se de uma parcela dos identitarismos
em voga em todas as expressões artísticas em curso. No primeiro caso, o enredo
recorre a uma estrutura que, em tudo refaz uma atmosfera integralmente
conhecida aos educados na saga Harry Potter, tais como o dilema do sujeito em
desacerto com a nova ordem social que passa a frequentar ou as divisões, intrigas
e segregações entre os grupos de estudantes. As referências ao universo fabulado
por J. K. Rowling são explícitas na vida nova de Oliver Quick em Oxford e são recuperadas
não apenas em situações e imagens como na presença da obra da escritora
britânica entre as leituras do grupo familiar frequentado pelo protagonista.
Depois, o reuso do drama movido
especificamente pelos impasses de ordem psicológica à maneira de Jordan Peele —
marcadamente em
Corra! — ou o Bong Joon Ho de
Parasita ou Ruben
Östlund de
Triângulo da tristeza. Repetindo uma estratégia que é marca
do próprio fazer do cinema, Emerald Fennell costura um objeto feito das
estratégias cinematográficas que foram os sucessos e marcaram as últimas décadas
do cinema. Mas, direta ou indiretamente, tal tessitura não deixa de apontar
para outros objetos da sétima arte verdadeiramente inovadores: a narrativa do
hospedeiro fora explorada vigorosamente por Pier Paolo Pasolini no excelente
Teorema;
e a habilidade de uma mente brilhante para a manipulação em
Plein Soleil,
de René Clément a partir do incontornável romance de Patricia Highsmith,
The
Talented Mr. Ripley — embora a composição de Fennell seja devedora, até
mesmo na escolha de Barry Keoghan para o papel de Quick, a adaptação
estadunidense de Anthony Minghella.
E pululam as marcas de estilo de
outros de sucesso: Tim Burton no desenvolvimento de alguma excentricidade e da
atmosfera sombria ou Baz Luhrmann, na extravagância, ou ainda na maneira como
ponto máximo da narrativa se alcança, Luis Buñuel. Às pitadas do cinema é possível
juntar as da literatura nessa receita. Além de J. K. Rowling, acrescente-se
Oscar Wilde no desenvolvimento do humor, ou os conflitos de classe dos
chatíssimos romances de campo de Jane Austen, ou mesmo o vazio drama de elite
de F. Scott Fitzgerald. E mais longe, a recorrência à estrutura do mito do
labirinto tornada aqui em referência principal para os sentidos procurados por
uma intriga que apenas na superfície é da inveja de um homem atiçada pelo reiterativo
discurso do incapaz socialmente mesmo que muito à frente dessa ordem por outras
qualidades aí desprezadas, como a força intelectual.
A imagem do labirinto é dominante.
Embora se manifeste direta e explicitamente no que poderíamos designar entrecho
da narrativa, pelo amplo jardim de Saltburn, o encontramos no curto passeio que
o recém-chegado estudante de Oxford realiza pelo campus até alcançar seu dormitório
na residência universitária. Depois, na imensa casa de Saltburn, quando apresentada
por Félix, o recém-amigo de Oliver, o filho dos proprietários e de quem aquele
se aproxima em Oxford com o interesse duvidoso revelado paulatinamente ao longo
do enredo. Mas, os espaços físicos servem, como é natural no cinema (e ainda na
literatura), entre outras coisas, para demarcar concretamente os labirintos da
interioridade, sobretudo, num filme como o Fennell em que as qualidades íntimas
das personagens são tão essenciais para o desenvolvimento e funcionamento da
narrativa. Assim é que, entre o início e o fim da trama, essa variação da
imagem do labirinto assume um trânsito entre o opressivo e o libertador,
denotando a travessia do indivíduo pelos desafios diante de uma estrutura que
continuamente o oprime. Aqui, o uso do porte físico de Barry Keoghan e a
exploração pela câmera dos ângulos entre sua personagem e as demais é singular,
amplifica que o papel exercido pelo labirinto não é apenas material.
Desde a chegada de Oliver Quick à
Saltburn, quando a noção de labirinto se apresenta integralmente visível pela
casa, pelo jardim e pelas relações famílias, os impasses com o meio se
amplificam; os Catton significam a antecipação do mundo que o estudante encontrará
depois da universidade. É com os Catton que o jovem precisa estabelecer sua ação
racional para se impor no mundo adulto. Por isso, ao contrário do insípido
começo potteriano, quase desnecessário se não fosse este um desses filmes que
subestimam um pouco da faculdade dos seus espectadores (é horrível a passagem final
pela estratégia de mostrar ponto a ponto o que já sabíamos acontecido), é este
núcleo da narrativa, centrado nas férias de Verão de Quick e quando
acompanhamos sua metamorfose entre herói e monstro, o melhor dessa obra de
Emerald Fennell. À maneira da corrida do herói para derrotar o Minotauro, o
confronto principal de Quick nesse labirinto é ainda o de não se reduzir ao
sombrio passado de outros que estiveram por Saltburn e que corre implicitamente
entre os da casa e seus frequentadores como perdedores. Não faltam esqueletos
no armário da elite.
É nesse sentido que a sucessão de
tragédias iniciada a partir da grande festa de aniversário preparada pelos
Catton para seu hóspede figura o triunfo da razão sobre a irracionalidade da elite
burguesa. É claro que Fennell lida com contradições, afinal o hospedeiro é
sempre o que se institui propriedade no alheio e a metamorfose de Oliver Quick fruto
do seu heroísmo embora o coloque numa condição confortável se vencido o corpo
doente não o faz um outro melhor, mas desfeita a força pela astúcia, a
estrutura que o aprisiona é modificada tal como se verifica na aparente libertária
passagem do homem de terno ao homem nu. Na prática, a atitude do protagonista é
permitir o triunfo da sua coerência sem se perder no labirinto e a
possibilidade para tanto é converter-se no monstro.
Saltburn alcança o homem num
instante de crise pelo descrédito no mito. A razão, a que confere sentido e
significado e a condição de transformarmos a natureza, se tornou insuficiente porque
uma vez acreditarmos que superamos a natureza, passamos a estabelecer
hierarquias de
superação dos nossos semelhantes. Oliver Quick na alegre
dança, despido de tudo, que o prova um exímio habitante do labirinto conquistado,
ainda não se deu conta disso. Por isso, a liberdade aparente. Ele é o ponto em que
nos encontramos.
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