Oração para desaparecer, de Socorro Acioli

Por Pedro Fernandes

Socorro Acioli. Foto: Igor de Melo


 
Socorro Acioli regressa aos temas do misticismo popular e da obsessão amorosa aparecidos em A cabeça do santo. Se neste romance o ponto de interesse recai sobre o primeiro, em Oração para desaparecer é o segundo que constitui matéria dominante da narrativa. O entendimento da obsessão é aqui restaurado pelo polo positivo, ou seja, não recai sobre o outro lado que divisa com este sentimento em linha tênue e isso torna, muitas vezes, o andamento das circunstâncias neste romance um tanto cansativo, colocando em risco a própria forma do romanesco, esta que, diferente da novela, deve se ocupar dos seus interesses pela pluridimensionalidade. Ainda bem que o fundo do romance não é apenas o do imbróglio amoroso. É outra a sua melhor qualidade.
 
O material para a ficção é trazido da história e das fabulações populares que se instalam dentro e fora do acontecimento histórico: o soterramento da Igreja de Nossa Senhora da Conceição de Almofala, em Itarema, região Norte do Ceará, e o conflito entre religiosos e parte da população local no translado das imagens do templo. A construção de traço jesuíta começa a ser integralmente encoberta em 1898 por uma mudança repentina no regime dos ventos que transpôs as dunas móveis do seu entorno. Meio século depois, o mesmo fenômeno permitiu a dispersão da areia e o reaparecimento do templo. Enquanto a pequena igreja era soterrada, o padre da comarca de Acaraú recebe a incumbência de salvar as imagens sagradas e tem sua missão interceptada por Joana Camelo, uma das mais de três mil pessoas que acudiram a Almofala na ocasião e que integrava uma frente dos opositores pela retirada das imagens do lugar. Os revoltosos foram presos e o patrimônio sagrado levado, entre eles, a imagem dourada encontrada pelos índios na praia e designada Labareda.
 
A este caso, o romance reimagina uma salvação para a mulher revoltosa e o restauro do patrimônio sagrado em sua integridade. Dotada de uma dimensão miraculosa, Joana Camelo teria alcançado escapar de Almofala para reaparecer ressurrecta num vilarejo de mesmo nome do outro lado do Atlântico, em Portugal. Aqui, outra vez, repete-se a mesma estratégia para o desenvolvimento do tema amoroso, embora, nesse caso, a versão ficcionalizada que se sobrepõe ao acontecimento histórico seja plenamente justificada, quando consideramos que o interesse do romance recai mais pelas significações forjadas fora do discurso oficial do que por uma complexificação ou problematização entre essas duas dimensões. Afinal, sabemos desde Aristóteles que à literatura interessa como poderia ter acontecido e não o que aconteceu.
 
E isso se deixa notar desde a maneira como narrativa de Oração para desaparecer é organizada: as duas primeiras das suas três partes privilegiam o périplo de Joana em Portugal como Aparecida desde quando salva e acolhida por uma família sabedora dos ressurrectos e do predestinado aparecimento dessa brasileira numa freguesia de mesmo nome encravada na fronteira com a Espanha. Apenas na última parte, isto é, no que seria a apresentação dos acontecimentos basilares dos relatos anteriores, é que os episódios históricos se mostram entre as versões dos habitantes da Almofala brasileira, constituídos por descendentes dos índios Tremembé. É nessa ocasião que a portuguesa descobre o seu passado de brasileira num destrance feito de um complexo amálgama cultural com elementos do imaginário indígena involucrado às crenças populares feitas das matrizes europeias do catolicismo e do espiritismo e das manifestações africanas. Cada um explica ao seu modo a sobrenatural Cida, que desapareceu e voltou Joana mas também foi, na aurora dos tempos, Muthiana Orera.
 
Mas, não é o tema do amor e nem a estruturação da narrativa que colocam Oração para desaparecer em destaque na literatura brasileira. É sim a maneira como o romance encontra no biografema uma possiblidade de oferecer o retrato de uma figura popular cujo passado apagado da historiografia envolve — como em todo caso e o Brasil é um país prodigioso nesse sentido — pelo menos dupla versão, uma interessada na sua derrisão e outra na beatificação. A noção de biografema, claro está, deriva de Roland Barthes; a personagem construída pela narrativa deste romance é uma figura textual derivada não do significado biográfico de matéria historiográfica, mas, de imagens, episódios e discursos diversos. É evidente que Socorro Acioli desenvolve — à maneira de Jorge, o moçambicano de família portuguesa com quem a ressurrecta Cida se casa e que movido pela variante do imaginário popular africano aporta na Almofala brasileira à procura do passado de Joana Camelo — sua investigação sobre uma mulher do povo que se levanta contra os mandos do priorado católico. A personagem, entretanto, se faz por outros meios.
 
E porque estamos em território literário, uma das fontes essenciais para o romance é a própria literatura e por isso recorre a muitas outras obras da tradição luso-brasileira. Mesmo não tão evidente, não deixamos de perceber José de Alencar: no interesse quase etnográfico pelas matrizes do imaginário cultural cearense; no imbróglio amoroso talhado pela faca do tempo e na fidelidade atemporal dos amantes; no impasse entre índios e portugueses no tempo colonial; e mesmo na composição desta Joana, a órfã adotada pelos tremembés como se um espírito protetor desse povo e desenhada com as mesmas tintas da sedutora Iracema, a que conhece o segredo da sua gente de adoção e a que se envolve com o homem forasteiro; ou ainda, uma vez que falamos especificamente de Iracema, na maneira com a narrativa dinamiza a noção de saudade, praticando o texto de Acioli uma inversão da espera, fica o amado em terra firme enquanto o mar não devolve quem partiu.
 
Outras obras literárias são mais evidentes. É o caso de O vendedor de passados, de José Eduardo Agualusa. Do romance, a narrativa de Oração para desaparecer restabelece Félix Ventura. Procurado por Jorge para construir um passado para Cida, o protagonista do escritor angolano vê-se desafiado a elaborar com os sonhos e outras maturações subjetivas uma vida para uma ressurrecta. É no relato de Cida para Ventura que a alcançamos pela primeira vez na narrativa ora em leitura. Investindo ainda numa resposta sobre quem somos, uma das matérias de Oração para desaparecer, somos relembrados que nossa identidade não é feita de uma coisa que não tem nome e sim dessas matrizes que muitos sequer reparam na sua importância, o simbólico, os sentidos de pertença, as memórias do vivido e das relações que exercemos desde nossa primeira consciência com o mundo.
 
No romance isso se mostra não apenas pela angústia de Cida ante um passado lacunar, mas como esse vazio entra em conflito com um outro tempo repleto de referências, o passado descoberto no seu périplo português. Nesse ponto, Oração para desaparecer se faz como um alerta acerca desse interesse tresloucado de negação do passado ou sua substituição por uma versão que melhor agrade certos setores da ideologia. Contra isso, e o regresso de Cida ao Brasil atesta a leitura, o romance propõe um passado capaz de agregar o que passou pelas vias oficiais à posteridade e o que essas mesmas vias, propositalmente ou não, silenciaram, negaram ou modificaram em nome de uma versão dominante.
 
Essa percepção da história é colhida em José Saramago, devedor da Nouvelle Historie, obra com a qual Oração para desaparecer estabelece profundos estreitamentos. O interesse pela Almofala dos Tremembés certamente encontra seu vínculo com a Almofala portuguesa inserida num vale, com o Rio Águeda a separá-la da Espanha, e um dos pontos no itinerário de Salomão e sua comitiva em A viagem do elefante. É deste romance que a escritora toma epígrafe de um dos inventados livros pelo escritor português e constitui sua tese: “Sempre chegamos ao sítio aonde nos esperam”, de O livro dos itinerários. A travessia de Cida para Joana se constitui como um demonstrativo deste excerto.
 
Enquanto Cida forja seu passado e dele se quer escapar em nome de um interesse no presente e no futuro, parte da gente de Almofala no Brasil espera o regresso da desaparecida Joana, os tremembés e sobretudo Miguel, o biólogo especialista em cavalos marinhos que mais de quatro décadas depois do enlace amoroso com a filha adotiva dos índios e mesmo feito noutra vida, espera, se não reaver, rever a mulher de sua vida. Ainda que a noção de amor neste romance se desvie e muito da perspectiva saramaguiana, sua força rediviva e do acaso é encontrada continuamente na literatura de José Saramago. Estão aqui, por exemplo, as marcas do amor entre Mogueime e Ouroana redivivos em Raimundo Silva e Maria Sara, de História do cerco de Lisboa.
 
Cida e suas qualidades são encontradas ainda nas figuras femininas do escritor português. A imagem que encerra Memorial do convento do que não sobe às estrelas porque pertence à terra encontra-se na concepção de Cida, assim designada, porque nascida da terra, fruto da concretização de um aparecimento denunciado na família portuguesa desde há muito quando se descobre a existência dos ressurrectos — “pessoas que mudam de lugar, que parecem mortos em um sítio, mas um novo sítio lhes devolve a vida”, tal como explica o tio de Jorge. Parece importante apontar alguma coisa acerca dessa condição de Cida, afinal, nos perguntamos por que uma brasileira integrada aos índios no interior do Ceará morta em sua terra ressuscitaria na terra do colonizador. É uma imagem interessante no âmbito do debate colonial porque o romance parece ir na contramão das dissociações pela evidência da improvável ruptura entre os povos. A integração Brasil, Portugal e África portuguesa reanima uma perspectiva integrativa — outra vez uma alternativa vislumbrada de José Saramago, marcadamente em A jangada de pedra, em que o deslocamento da Península Ibérica resulta um território voltado para a América e África.
 
Os poderes mágicos de Cida colocam-na ao lado de Blimunda. A ressurrecta — mas também a filha adotiva dos tremembés — vê os mortos, as sombras de toda a legião dos devedores com alguma coisa neste mundo. Como o dom da personagem saramaguiana de ver o interior das pessoas é derivado de uma certa Madame Pendergast, é pela mão de uma mademoiselle Vásquez que Cida encontrará a primeira das explicações de sua natureza, num demonstrativo de como as diferentes culturas interpretam à sua maneira os fenômenos para os quais não encontram uma explicação racional. O último capítulo de um livro francês traduzido para o português como O livro dos itinerários de Mlle Vásquez reproduz uma carta de Dominique Lonchant acerca dos ressurrectos, um dos materiais que compõem o dossiê para a narrativa de Cida. A estratégia é significativa para o romance de Socorro Acioli; participa na composição do verossimilhante e expande os dois universos literários em contato.
 
Agora, especificamente sobre a carta de Lonchant, vale uma ressalva. O engenho criativo da narrativa de Oração para desaparecer foi pontuado aqui como a qualidade excepcional do romance. Mas, lidar com múltiplos registros de linguagem e com variadas formas textuais de épocas distantes da nossa requer um elevado cuidado de um escritor para não cair em conjeturas inverossímeis ou anacronismos históricos. Nesse romance, Socorro Acioli mobiliza várias vozes narrativas e várias temporalidades: há o tempo da narração que ora se aproxima à vida e aos episódios contados por Cida ora se distanciam; o tempo dos episódios, que invocados pelo tempo da narração integram-se à sua correnteza; os tempos das narrativas que se intercalam ao relato, seja o da vida de outras personagens ou dos acontecimentos circunstanciados documentalmente, como é o caso da carta de Dominique Lonchant.  
 
A voz principal da narrativa é a de Cida, que corre livremente com a de outras personagens centrais contando de si ou revelando quem é a protagonista; e no interior desses relatos, o romance recorre ainda a outras formas textuais de matriz narrativa ou não, como é o caso da carta recortada d’O livro dos itinerários, de uma carta escrita por Joana e remetida do Brasil para Jorge, ou da Oração para desaparecer, que, à maneira da carta de Lonchant no livro de Mlle Vásquez, responde ao segredo entre Cida-Joana e sua natureza de ressurrecta. Por escolha da escritora, entrevista desde os primeiros diálogos entre a brasileira e os portugueses, é necessário que a linguagem acompanhe as variações assumidas ao longo do romance. Da língua portuguesa, por exemplo, são três variantes, ainda que nenhum dos falantes de matriz portuguesa e africana exerçam-se enquanto narradores. Fora isso, existem as variações das outras formas textuais, uma delas situada num tempo muito anterior ao da narração embora traduzida livremente por um angolano, e mesmo o tempo vigente da narrativa, afinal, Cida não é nossa contemporânea. No primeiro exercício, isto é, o do manejo das linguagens orais, digamos assim, a narrativa se desenvolve acertadamente, nos casos seguintes tem suas dificuldades e ainda escorrega em alguns materiais na caracterização e organização do tempo.
 
Dominique Lonchant foi amigo do avô de Mlle Vásquez. Ela escreve O livro dos itinerários aos treze anos. Mais tarde, a obra passa a integrar o índex de 1754 promulgado pelo papa Bento XIV. O problema de a carta ser escrita em registro muito próximo do nosso se justifica pela tradução livre mas deixa de acompanhar a dicção de quem a traduziu: o vendedor de passados. A dificuldade maior, por sua vez, não é esta e sim o conteúdo da missiva que se propõe relatar as várias informações dos chamados ressurrectos ao longo do tempo. Pressupondo que o livro integra o índex do século XVIII e que a carta é de um amigo contemporâneo do avô de Mlle Vásquez, talvez ainda de um século anterior, resulta inverossímil que o missivista diga: “Diz ele, o austríaco, que foi feito um filme de sua vida em Havana.” A história do cinema, como sabemos, só começaria um século mais tarde. O deslize de caracterização temporal, evidentemente, acentua o problema do registro.



Oração para desaparecer lida com duas dimensões, conforme notamos: uma do maravilhoso e outra do histórico. E algumas vezes cai num impasse de caracterização da narrativa. Considerando a extensão temporal entre os fenômenos dos ventos que soterram e dessoterram a igreja de Almofala, o tempo de Cida é de meados a fins dos anos quarenta do século passado. Nessa época, a navegação aérea entre o Brasil e a Europa é extremamente precária: consta um voo de 1946 com escala pelo Recife; duas décadas mais tarde começam voos entre Lisboa e Rio de Janeiro com escalas também por Salvador; as viagens para Fortaleza datam de a partir de 1966. Mas, assim registra Cida na sua narrativa da vinda até a Almofala brasileira: “Primeiro enfrentamos um voo de Lisboa à Fortaleza.” É crível a passagem subterrânea e subaquática de Cida entre os dois países porque são acontecimentos integrados ao maravilhoso, entretanto, o pequeno detalhe de composição temporal, que pode parecer insignificante, é o feio caruncho que corrói o bom funcionamento da narrativa.
 
O livro dos itinerários, já dissemos, figura na biblioteca imaginária forjada por José Saramago, criação certamente marcada pela influência de Jorge Luis Borges, mas embora histórica, a cidade de Almofala também salta do mesmo livro em que figura a frase-tese de Oração para desaparecer; agora, no retrabalho de referências aqui proposto, o que não procede é a existência de um livro imaginário intitulado O livro das visões; Livro dos conselhosLivro dos provérbios, Livro das epígrafes, Livro das evidências, Livro dos contrários, Livro dos itinerários, Livro das vozes, e o mais próximo, Livro das previsões. E este bem poderia ser a referência tomada pela romancista, afinal, o livro que se designa apocrifamente saramaguiano (e agora saímos do romance para ler os agradecimentos da escritora Socorro Acioli) é o que nomeia caderno que serve para as anotações de Cida na sua perquirição em, pela palavra escrita, descobrir ou organizar o seu passado pelos sonhos. Mas, Saramago, reiteramos, não inventou um tal Livro das visões.
 
Demonstradas algumas peças do engenho de Oração para desaparecer e alguns dos seus defeitos — muito recorrentes na feitura dos romances brasileiros contemporâneos e na sua maior parte pelo vexame dos revisores ou ineficiência dos editores — regressemos ao tema da obsessão amorosa, o ponto derivado de A cabeça do santo e que se faz principal no romance de 2023. O primeiro amor, que dribla a ordem ou a desordem do tempo, se desenvolve entre o biólogo Miguel e a órfã criada pelos índios Joana. Tecido com as tintas melífluas do encontro entre o bonito forasteiro e a jovem quista e invejada por todos do seu povoado, esse amor reaparece entre Cida e o diplomata Jorge desenvolvendo-se pelos mesmos tons. É isso que designamos como a unidimensionalidade temática. Entre essas duas histórias escritas à maneira do espelhamento derivado do duplo (outra vez, intercede-se um romance de José Saramago, O homem duplicado) não se aplica o princípio do complemento tampouco sua reparação para tanto; reparação que, por natureza inexplicável do próprio funcionamento do curso da existência, faz se manter o desacerto. No romance ora lido, o que falta numa história, continua a faltar. E o que se encontra na outra é por continuidade. E isso é dada pela adoção um tanto ultrapassada do amor, o feito do encontro de almas gêmeas, de predisposição eterna do romantismo. Nesse caso, o amor é não apenas a parte principal do mistério de existir como a força capaz de explicar e oferecer sentido para a existência. Também é o princípio redentor e regenerador da unidade obnubilada dos sujeitos.
 
Embora se teça uma metáfora cujo material simbólico poderia ser mais bem explorado, a monogamia do cavalo-marinho, o fim da primeira história de amor é trágico e resulta no casamento de Miguel com outra e de Joana com outro. Considerando o fim da primeira história, o regresso da amante rediviva, não afeta, contraditoriamente, os sentidos de alguém que se submeteu à espera e enfrentou na solidão o ódio coletivo do povoado que se instaura pela desaparecida por mais de quatro décadas. É curiosa a falta de qualquer conflito e a aceitação taciturna do velho biólogo (o forasteiro viandante que se faz preso a Almofala) com a nova situação aparecida. Ele abdica do que considerou amor eterno até o reencontro com a amada para que esta siga a vida nova devolvida como prêmio do destino com o novo amante, o belo e insuperável Jorge. Ao conflito que vez ou outra quer transparecer na longa narrativa de Miguel para Jorge sobre o vivido com Joana, não paira qualquer tensão entre os amantes e mais adiante ainda assistimos os três ateando fogo ao passado.
 
O indireto felizes-para-sempre que se confirma com a carta de resgate de Joana-Cida para Jorge, condena sua própria natureza mítica, esta que se apresenta desde o início da narrativa e se confirma quando descobrimos o segredo de uma personagem que desloca entre tempos e gerações assumindo-se como a chama voraz característica da própria lógica carnal e terrenal do amor, que toda vez morre e renasce. No romance de Socorro Acioli, os tremembés, na necessidade de sempre materializar o invisível, chamam a padroeira de Almofala, Nossa Senhora da Conceição, por Labareda; Joana, o espírito que veio salvar esse povo dos desmandos do homem branco no simbólico gesto de cooptar a imagem religiosa, é a encarnação da própria chama. As marcas do sentimento, do intenso e do impetuoso, derivadas do significante, à medida que recaem sobre os sentidos mobilizadores da crença dos índios e da atitude da personagem, associam-se ao profano e ao carnal, a matéria de todos os viventes.
 
Se Cida é uma amante insípida, quase assexuada, moldada para o homem, Joana é a encarnação da chama amorosa, livre, uma mulher qual as figuras de Jorge Amado, tal como se demonstra no relato de Miguel ou na imagem da prostituta assumida pela voz dos populares de Almofala. Mas essas implicações, ainda que mencionadas, não ganham contornos no romance. Onde há fogo, há destruição, para só depois o renascimento. Este é um ciclo, como mito, imutável. Ao apostar no asséptico e inefável amor eterno, o romance esqueceu das duas forças que o constitui — a da história e a do mito —, ou pior, desviou para o rumo do menos crível. Apenas no imaginário cristão, a ressurreição pode ser uma salvação; mas, entre nós que não somos santos consta que jamais estamos salvos.
 
Mesmo assim, não podemos negar que Oração para desaparecer é bonito romance e se coloca, em tudo, na contramão dos separatismos dominantes: dos modelos autocentrados de narrar às pautas dos identitarismos, por exemplo. Preocupa-o a existência, enfim, em seu rico caleidoscópio feito de mistério e luminosidade, simplicidade e complexidade, razão e fé, dor e alegria, vida e morte. E sobretudo é dos raros romances que apostam na ideia sempre original de contar uma história e na literatura como artefato de linguagem ideal porque feita do simbólico e da fabulação capazes de nos colocar simultaneamente dentro e fora disso que instituímos como realidade.


Ligações a esta post:


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Oração para desaparecer
Socorro Acioli
Companhia das Letras, 2023
208 p.

Comentários

Luís Fagner disse…
Nunca li nada da autora. E, pelo seu texto, parece que tenho feito boa escolha.
Sue Soares disse…
Incrivel sua analise. Mas em relação à temporalidade do retorno dela pra Almofala brasileira, acontece 49 anos depois de sua partida, logo os voos entre Brasil e Europa eram comuns.
Pedro Fernandes disse…
Sue, agradeço pela sua leitura e pelo comentário. O episódio de soterramento da igreja da Almofala cearense data de 1897. Se a ressurrecta fez apenas uma travessia espacial de Brasil a Portugal, resulta inverossímil que ela alcance regressar em 1966, quando se estabelecem os voos entre Lisboa e Fortaleza. O possível é que a travessia da ressurrecta tenha se produzido por uma aceleração do tempo, mas, não me recordo se a narrativa toma o cuidado de oferecer esse esclarecimento. Numa oportunidade futura, se eu próprio não for soterrado pelo tempo, posso voltar ao romance e ver isso. Mas, caso você ou outro leitor mais recente encontre esse detalhe - as coisas às vezes passam em branco numa só leitura - peço que me aponte. Seria de grande valia para uma revisão do meu ponto de vista e do texto.

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