Por Nestor García Canclini
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Capa da 1ª edição de Museu do romance da eterna (Centro Editora de América Latina, 1967) |
O espaço de Macedonio Fernández foi
criado por expansão. Nada demonstra melhor isso que este romance publicado
vários anos depois da sua morte, organizado definitivamente por seu filho,
Adolfo de Obieta, mas que já no seu rascunho dedicava a primeira metade das
páginas aos prólogos: cinquenta e seis tentativas de diferir o início da
obra. Neles se narram as dúvidas, as hesitações, as desculpas do autor; elabora-se
uma teoria estética; elegem-se as personagens que serão incluídas e se descreve
a “personagem que não figura, cuja existência no romance a torna fantástica em
relação ao próprio romance”; discute-se com Juan Pasamontes, que “queria ser
empregado, não personagem do romance: o deixava nervoso que estivessam lendo-o;
também com Nicolasa, a “personagem cozinheira”, que ao renunciar a obra a
converte num “romance de jejuadores”, ameaça a sobrevivência dos demais, do
próprio romance e talvez por isso o autor, para obrigá-lo a permanecer algumas
páginas, continue escrevendo sobre ele, de seus costumes e sua doutrina
metafísica, segundo a qual os dois poderes máximos da realidade são a Obscenidade
e a Eletricidade; discute-se principalmente com o leitor, se recusa o “leitor de
desenlaces” e o que busca “alucinar-se”, cumprimenta algumas vezes os demais,
os dispostos a ler o autor antes que escreva, a colaborar com ele na demora do texto.1
Quando terminam as introduções,
tampouco começa verdadeiramente o romance, porque as personagens — as que foram feitas para ler os prólogos —
apenas são “tiradas para manobras”. Nesta segunda parte, que simula ser a
narração, não existe um território exclusivamente “romanesco”: o relato dos
acontecimentos inclui o juízo do autor, seus diálogos com os leitores e a
exposição de sua estética. Além disso, os acontecimentos sucedem numa estância
que se chama “O Romance”, “todos os habitantes sentiam o sonhado de se
encontrar aí reunidos” e a personagem inexistente, o “Viajante”, que “vive aí em
frente e não sai de sua casa senão na hora do fim do capítulo”, aparece toda
vez que é necessário “destruir o momento de alucinação em que o leitor acredita
que o relato acontece”.
Todo romance se constitui contando
uma história; a história de Museu consiste em contar como se constitui
um romance. Os acontecimentos de uma narração são inexistentes; Macedonio quis referir,
nos acontecimentos, apenas a inexistência mesma, esse tempo vazio do livro que “se
obtém entre o prometê-lo e o publicá-lo”. Mas sua ambição chega também ao tempo
posterior à publicação e trata de incorporar o leitor no romance. Inventa o “leitor
fantástico” (porque é uma personagem a mais) e imagina como seria lida sua
obra, dá-lhe uma estrutura fragmentada (“literatura salteada”) para introduzir
na composição os hábitos do leitor impaciente. Mas, acaba reconhecendo que
todos esses atos são pouco mais que gestos, porque subsistem, sempre mais além,
leitores imprevisíveis. Daí que o romance, depois do fim, como apagando-o,
agregue três prólogos. “Deixo-o livro aberto: será talvez o primeiro ‘livro
aberto’ na história da literatura, quer dizer que o autor, desejando que fosse
melhor ou talvez bom e convencido de que por sua fragmentada estrutura é uma
temerária burrice com o leitor, mas também que é rico em sugestões, deixa
autorizado que todo futuro escritor de impulso e circunstâncias que favoreçam
um intenso trabalho, para corrigi-lo e editá-lo livremente, com ou sem menção
de minha obra e nome”; “Nesta oportunidade insisto que a verdadeira execução de
minha teoria romanesca só poderia se cumprir, escrevendo o romance de várias pessoas
que se juntam para ler outro”.
Este papel ativo do leitor transforma
a significação da obra e a função do autor. Tradicionalmente, se considerava o
leitor um receptor passivo de conteúdos definitivamente organizados em formas
estabelecidas pelo autor. Macedonio Fernández soube que a leitura constitui na
escrita, que ler qualquer texto desde uma perspectiva nova equivale a modificá-lo.
O contexto em que lemos muda o texto. Franz Kafka — dirá Borges mais tarde — criou
seus precursores. “Uma literatura difere de outra menos devido ao texto que
pela forma como que é lida: se me fosse dado a ler não importa qual página de
hoje — esta, por exemplo — como se a lerá no ano dois mil, eu conheceria a literatura
do ano dois mil.”
A obra aberta, esse espaço ilimitado
que é cada texto dilatado até o limite de suas leituras possíveis, muda também
a função do autor. O autor corresponde à primeira leitura, a primeira
totalização da experiência criadora; logo o leitor realizará outras combinações,
outras experiências. A grande originalidade de Macedonio radica em haver
dilatado seu próprio campo de “leitura” fazendo intervir em alguma medida a “escrita”
do leitor. Os prólogos que diferem a aparição do romance abrem um âmbito prévio
para que o leitor — e não apenas o autor — se antecipe à obra, para que leitor
e autor discutam juntos as condições de possibilidade da criação. Esta espécie
de kantismo literário é relativa, no entanto, a obra continua aberta a leituras
que o autor não pode prever. Mas, de toda maneira, o mérito de Macedonio é
haver plantado a questão dentro do texto e haver ampliado incluindo nela algumas
leituras virtuais. Se as grandes obras são as que inauguram uma nova leitura,
as que tornam possível começar a ler de um modo diferente, o Museu do romance
da Eterna é uma grande obra. Proust afirma que os Quartetos de Beethoven
criaram o público dos Quartetos de Beethoven; Macedonio inaugurou um público, mas
também uma escrita: Borges e Cortázar são os seus melhores leitores.
Ligações a esta post:
>>> Aqui, uma matéria acerca da primeira edição brasileira de Museu do romance da eterna
Notas da tradução:
1 As traduções de passagens de
Museu
do romance da Eterna são nossas a partir das versões oferecidas no texto em
tradução. No Brasil, o leitor pode consultar duas traduções diferentes do
romance de Macedonio Fernández. A referida neste texto é a publicada em 1967; a
mesma que serviu de base para a tradução de Silvia Massimini Felix, saída pela
Pinard em março de 2023.
* Este texto é a tradução livre de
uma resenha publicada inicialmente na revista Cahriers du monde hispanique
et luso-brésilien, n.13, 1969, p.148-150.
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