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Kobo Abe. Foto: The Asahi Shimbun |
Kobo Abe foi um desses escritores
que se recusam a fornecer qualquer informação sobre sua vida além daquela que
está implicitamente contida em sua obra. Talvez a mesma rejeição que sente pelo
romance autobiográfico e pela atitude de complacência perante o sentimentalismo
para com o sofrimento de alguns escritores japoneses, que disso se utilizam
como tema dos seus romances, seja o que o leva a ser muito parcimonioso quando
se trata de falar sobre si mesmo. De qualquer maneira, pode ser interessante
reunir as poucas informações que temos sobre a sua vida e tentar, com elas,
moldar algo que se assemelhe a uma biografia.
1
Kobo Abe nasceu em Tóquio em 1924,
mas passou a primeira infância em Kyushu, embora por sua família ser de
Hokkaido (perto da cidade de Asahikawa), segundo o costume japonês, é onde ele
está registrado. Ele próprio observa: “Como o local de registro, o local de
nascimento e o local onde cresci são diferentes, tornei-me muito reservado
quando se trata do meu passado. O que posso responder quando me perguntam onde
nasci?”
“Essencialmente, sou uma pessoa
sem terra natal. Graças a esse fato, é muito difícil para mim escrever uma
lista ainda que abreviada de datas importantes da minha vida. O sentimento de
desenraizamento que está na base das minhas emoções pode ser atribuído às
mesmas razões.”
E continua:
“Pouco depois fui levado para a
cidade de Hoten (Mukden, hoje Shenyang), na Manchúria, e lá morei até ingressar
na escola preparatória Seijo, no Japão, no 15º ano de Showa (1940). Na
Manchúria, talvez, adquiri a habilidade de descrever paisagens desoladas.”
Desta breve informação emergem
pelo menos três aspectos importantes relacionados com a vida e a obra desse
escritor: o desenraizamento, a visão do deserto e a ideologia progressista.
Comecemos analisando este último ponto, que não é tão claro quanto os outros
dois.
Os japoneses idealistas emigraram
para a Manchúria, então colónia do Império, que queriam escapar à atmosfera
política cada vez mais opressiva do arquipélago (estes eram os anos de gestação
da guerra) e, no processo, experimentar outras formas de coexistência e formas
de pensar. O pai de Kobo Abe, que era médico, talvez pertencesse a esta
categoria de japoneses e incutiu no filho ideias que mais tarde o levariam ao
marxismo da sua juventude. É preciso ter em conta que naqueles anos os partidos
e a literatura de esquerda eram absolutamente proibidos no Japão, pelo que a
única forma de manter viva essa ideologia era, muitas vezes, na intimidade
familiar. Além disso, muitos japoneses que conheceram a Manchúria falaram de um
sentimento de liberdade que não existia na cerrada, superpovoada e
claustrofóbica terra natal.
Quanto à visão do deserto, que
tantas vezes aparece nas obras de Abe, é natural que os anos de infância
passados
na imensid
ão desolada do continente tenham exercido grande influ
ência no imagin
ário e no estilo
s
óbrio do autor. Numa terra como o Jap
ão, onde uma natureza pr
ódiga tem
tradicionalmente fomentado delicados sentimentos de comunh
ão e medita
tivo, que na literatura se traduziram
numa tend
ência muito marcada para o intimista, as
paisagens des
érticas e o estilo despojado de Abe
podem aparecer,
à primeira vista, como um fato
completamente anômalo. Relacionado a isso, Yukio Mishima comentou certa vez que
seria muito difícil encontrar, nos mil anos de ficção japonesa, outro escritor
que tenha reduzido, como Abe, de forma tão drástica, sua tradicionalmente
elevada “umidade” (ele se refere a um gosto quase mórbido para o sentimental).
Quanto à falta de raízes, no Japão
Kobo Abe é visto como um autor cosmopolita e sem raízes, pouco japonês,
condição da qual sempre se orgulhou, já que se considerava “uma pessoa sem
pátria”, livre dos sentimentalismos nostálgicos do passado.
No seu ensaio
A fronteira interior
(Uchi naru henkyo, 1974), onde trata dos judeus mas sem se ocupar
especificamente da questão judaica, Abe expressa mais claramente do que em
qualquer obra de ficção, as vantagens do exílio e da falta de raízes. Além
disso, nega a autoridade e a lei com base nos laços da terra. O
desenraizamento, que causa angústia e perda de identidade, é, no entanto, o
destino do homem moderno e é aí que reside a sua fonte de energia. Como aponta
no parágrafo final do ensaio: “Embora a praça ainda esteja mergulhada na
escuridão, é muito cedo para perder a fé. Afinal, o exilado não vive só de
luz.”
Depois da passagem pela Manchúria
e do regresso ao Japão, em plena guerra, encontramos o escritor, inesperadamente,
em Tóquio, em 1948, onde acabava de receber o seu novo título de doutor em
medicina. Ele próprio comenta este acontecimento com certo humor: “Estudei
medicina na Universidade de Tóquio, mas dizem que não era um aluno aplicado. Os
professores me diziam que se eu prometesse não exercer a profissão, me
permitiriam me formar.”
E cumpriu com a sua promessa
porque nesse mesmo ano publicou o seu primeiro romance, uma espécie de
biografia espiritual que se passa na Manchúria, intitulado
O sinal no fim da
rua (Owarishi michi no shirubeni). O que estava começando era uma carreira
literária. Em qualquer caso, a medicina, juntamente com a matemática e a
entomologia, seus hobbies desde a adolescência, serviriam para moldar um estilo
muito peculiar onde se combinam a precisão do cirurgião, a paixão pelo rigor e
as simetrias do matemático; e a obsessão quase maníaca por classificação do
entomologista.
A cidade de Tóquio, além de
constituir um ambiente totalmente diferente da Manchúria da sua infância,
marcaria definitivamente o seu caráter e a sua obra com o selo cosmopolita da
vida urbana. Em romances como
A mulher das dunas é onde a síntese
deserto-cidade, apesar de não estar presente, atinge a sua plenitude,
tornando-se uma espécie de metáfora do deserto espiritual da vida
metropolitana.
É também em Tóquio que Abe estreia
as suas primeiras armas de escritor, com a publicação, em edição mimeografada,
de uma coletânea reunindo poemas e um capítulo de
O sinal no fim da rua,
que o colocou em contato com o ambiente literário do pós-guerra. Com algum
receio se aproxima do grupo liberal de
apres-guerre, que apresentou alguns
de seus contos na revista
Kindai bungaku. Mas a sua simpatia está do
lado dos setores marxistas, o que o leva a se juntar às fileiras do Partido
Comunista, do qual foi expulso alguns anos depois, segundo a versão de Edward
Seidensticker.
2 Como escritor, porém, nunca apresentará,
diretamente, questões sociais, mas sim na forma de metáfora.
Já neste período inicial de sua
carreira, seu nome começou a ficar conhecido no mundo literário, embora ainda
se fale em Abe
Kimifusa, em vez de Kobo Abe.
3
A partir daí, e durante três
décadas, daria forma a um dos estilos mais singulares e discutidos no Japão,
cuja rigorosa coerência se estabeleceria a partir de um tema complexo e
recorrente que permeia toda a sua obra: a procura da identidade.
Os anos da ocupação nos mostram um
Abe ainda ligado a um modelo europeu de literatura, que oscila entre o
existencialismo e o expressionismo, e que, para o Japão da época, poderia muito
bem ser considerado “vanguardista”. Seu primeiro romance,
O sinal no fim da
rua, reflete sua experiência na Manchúria, em um tom bastante
existencialista. Os críticos e o próprio Abe reconhecem os valores limitados
desta obra, que, no entanto, contém as sementes de muitos problemas que ele
desenvolveria mais tarde.
Em 1949 publicou
Dendrocacalia,
conto que trata de uma metamorfose. Em 1951 recebeu o Segundo Prêmio de
Literatura do Pós-guerra por
O casulo vermelho (Akai mayu), cujo tema é outra
vez uma metamorfose. Mas sua consagração veio alguns meses depois, quando
recebeu o prêmio Akutagawa por
O crime de S. Karuma (Kabe S. Karuma-shi
no hanzai). Este romance começa quando o protagonista, ao acordar certa manhã,
percebe que perdeu o nome. Esquecido completamente, procura desesperadamente um
cartão pessoal (o aliado indispensável da identidade japonesa), sua credencial
de trabalho, o nome estampado na farda, mas tudo é inútil. O nome não aparece.
É o começo do pesadelo.
Os críticos receberam a notícia de
que um romance tão excêntrico havia sido premiado com surpresa e até
indignação. Como estes eram anos em que o “moderno”, isto é, o “ocidental”,
estava na moda no Japão, muitos disseram ironicamente que até o prêmio
Akutagawa tinha se rendido à “modernização”. O famoso crítico Shugo Honda escreveu:
“De acordo com as características do prêmio Akutagawa, o fato de ter sido
atribuído a uma obra de Kobo Abe deve ter surpreendido até mesmo o autor”. O
escritor Koji Uno tratou o romance como “incompreensível e tedioso”. Mas a
verdade é que o escritor começava a ser tido em conta no mundo das letras,
independentemente da sua relação com Jun Ishikawa, que se disse ter sido o seu
iniciador na literatura “vanguardista”. Com a acentuada propensão dos japoneses
para rotular de uma vez por todas, Kobo Abe tornou-se, a partir de então, o
escritor de vanguarda. No contexto do Japão daquela época, realmente era.
Os anos desde o fim da ocupação
até
Ampo (1952-60) foram anos de continuação da busca e decantação do
estilo. Os numerosos contos e romances desta época insistem nos mesmos temas:
metamorfose, perda de identidade, alienação, angústia existencial,
desenraizamento. A maioria delas são narrativas muito engenhosas,
brilhantemente resolvidas do ponto de vista estilístico, cujos temas servirão,
anos depois, para algumas das obras teatrais do próprio Abe.
Em 1957 publicou o romance
As
feras voltam para casa (Kemonotachi wa kokyō o mezasu), novamente com o
tema do desenraizamento no cenário inóspito do deserto da Manchúria. Esta obra
parece marcar o fim de uma fase, já que a seguinte, o romance
Quarta era glaciar
intermédia, juntamente com
Aqui está o fantasma (Yürei wa kokoni
ira, 1958), uma peça teatral paródico-humorística, são o início da transição
para o que chamamos de “período de maturidade expressiva”, que coincide com os
anos de grande crescimento económico do Japão (1960-73).
Este período de maturidade
expressiva mostra dois aspectos muito importantes da carreira literária de Kobo
Abe: por um lado, uma abertura a novos meios de expressão, como o rádio, a
televisão, o cinema e, especialmente, o teatro; por outro, uma mudança no seu
estilo narrativo, ligada a uma nova abordagem dos temas habituais.
Embora a adaptação cinematográfica
dos seus próprios romances e os roteiros para o rádio e a televisão constituam
uma notável intenção de procura de novas formas, é no teatro que Abe encontrará
o meio mais adequado para desenvolver as suas experiências e a sua visão
particular da realidade, como se os mecanismos cênicos constituíssem para ele o
instrumento perfeito para mostrar o que propõe.
Um de seus primeiros trabalhos foi
Casa de escravos (Doreigari), obra que contém certos elementos
marxistas, produzida pelo Teatro de Atores, em 1962.
Amigos (Tomodachi,
1967) tem muitos pontos de contato com o teatro do absurdo europeu. Mais tarde,
ele adaptou alguns dos seus primeiros contos para o palco, por exemplo,
O
homem que se transformou num pau (Bo ni natta otoko), baseado em
O pau
(Bo, 1955) e representada pela primeira vez em novembro de 1969, em Tóquio.
Desde então a sua atividade teatral se expande, não só como escritor de peças,
mas também como encenador (a partir de 1972) e até autor de música, com a
colaboração da sua esposa Machi na cenografia. No papel de homem de teatro o
encontramos, em maio de 1979, em turnê, com sua companhia, pelos Estados
Unidos, que culminou no Teatro Experimental La MaMa, em Nova York. A peça representada
foi
O pequeno elefante morto (Kozó wa shinda) e teve ótima recepção de
crítica, que elogiou a audácia da encenação e a acuidade de um texto que vai
além das palavras.
Apesar da sua crescente aposta no
teatro, a década de 1960 marca o momento mais alto da sua narrativa, sobretudo
através dos três grandes romances:
A mulher das dunas (1962),
O rosto
de um outro (1964) e
O mapa queimado (1967). Há neles uma notável
consolidação do seu estilo, que se torna mais pessoal e muito mais próximo do
ideal objetivo, quase jornalístico, a que o nosso autor parece aspirar.
Quanto aos temas, o protagonista
de
A mulher das dunas, um entomologista, se perde num buraco de areia no
deserto; o cientista de
O rosto de um outro perde a face durante um
experimento de laboratório; e o detetive particular de
O mapa queimado se
perde tentando encontrar um homem desaparecido. O que os três perdem, na
verdade, é a identidade. Ou, talvez, eles nunca a tiveram.
Depois de
O mapa queimado,
levará alguns anos até que Abe produza outros novamente romances. É
precisamente em 1973, ano do
shock do petróleo, que surge
O
homem-caixa, uma história sufocante onde todas as certezas que a percepção
costuma proporcionar se desvanecem nesse labirinto simbólico que é a megalópole
industrial.
Encontro secreto (1977), um dos seus últimos romances, que
se passa quase inteiramente dentro dos muros de um hospital, continua na mesma
linha do anterior. Aparentemente há uma regressão ao primeiro período, uma
espécie de paráfrase do seu estilo e temas, levados às últimas consequências, o
que sugere um período de “maneirismo” decadente e o seu inevitável declínio
como narrador. Mas se nos atermos às declarações do próprio Abe, por ocasião da
estreia em Tóquio, em junho de 1979, de
O pequeno elefante está morto,
esta obra constitui o fim de uma etapa e o início de outra, cujos objetivos ele
não especifica.
Em síntese, Kobo Abe é um autor
cuja obra, que abrange todo o período do pós-guerra, e manteve uma coerência
rigorosa nas suas pesquisas literárias (estilísticas e temáticas). Sua posição
política de esquerda não teve maior destaque em sua narrativa. Ele não cultivou
um estilo realista, mas preferiu a alegoria social. Exceto no início, não
esteve vinculado a nenhum grupo literário, preferindo a experimentação
individual. Sua produção como romancista foge aos padrões tradicionais
japoneses e como escritor cosmopolita suas obras são conhecidas em quase todos
os países do mundo. Dos anos 60 há nele uma virada para o teatro que se
acentuou até deslocar seu interesse pela narrativa. Nos anos seguintes, continuou
escrevendo romances cujos temas giram obsessivamente em torno do mesmo tema: a
busca pela identidade.
Em termos visuais, pode-se dizer
que sua trajetória como narrador descreveria uma curva cujo clímax seria dado
por suas obras dos anos 60. A fase experimental dos anos 50 constituiria a
trajetória ascendente da curva e dos romances dos anos 70, a trajetória
descendente. Com base nesta analogia plástica, dividimos a sua narrativa em
três períodos: o início da busca (1948-60); maturidade expressiva (1960–73); e
os anos de retiro (1973-1993).
Notas
1 Os dados utilizados foram retirados
das seguintes publicações: prefácio de Friends (Tomodachi) em
Contemporary Japanese
Literature. An
Anthology of Fiction, Film and Other Writing Since 1945; Kobo
Abe,
“The Frontier Within”,
tr. Andrew Horvat, Japan Quarterly, v. 7, n. 2-3, abr. jun. e jul. set.
1975; Nakamura Mitsuo, Novela Japonesa Contemporánea, Tóquio,
Kokusai Bunka Shinkokai, 1970; Kazuya Sakai, Japón: hacia una nueva
literatura, Ciudad de México, El Colegio del México, 1968; Kokusai Bunka Shinkokai,
Introduction to Contemporary Japanese
Literature 1936–1955, Universidade de Tóquio, 1959; Introduction to
Contemporary Japanese Literature, 1956–1970, Universidade de Tóquio,
1972; Nihonno bungaku (Literatura japonesa), v. 73, “Abe Kőbō Kokusaiteki
Sakka” (Abe Kobo, um autor internacional), Muramatsu Takashi, Tóquio, Chuokoron-Shinsha,
1968.
2 “Abe was a member of the Communist Party (he has since expelled) when
he wrote both novels (The Woman in the Dunes and The Face of Another),
but the reader is likely to think of Kafka or Beckett long before he thinks of
Mao or Stalin.” Edward Seidensticker, “The Japanese Novel and Disengagement”, Literature
and Politics in the 20th. Century, G. Mosse e W. Laqueur (org.), Nova York,
Harper and Row, 1967, p. 173. Ter sido membro do Partido Comunista talvez
explique o fato de que grande parte da obra de Abe tenha sido traduzida para o russo
e de que alguns dos mais importantes especialistas na sua obra apareçam na União
Soviética.
3 Em japonês existe duas maneiras de
ler os caracteres chineses:
on’yomi, à maneira chinesa; e
kun’ yomi,
à maneira japonesa. Os nomes, geralmente, são lidos nesta segunda forma mas
quando uma pessoa alcança fama, prefere-se o uso
on’yomi.
Kimifusa
(kun’yomi) e Kobo (on’yomi) são duas formas de ler o mesmo nome que consta de
dois caracteres.
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