Kobo Abe: vida e obra

Por Guillermo Quartucci


Kobo Abe. Foto: The Asahi Shimbun


Kobo Abe foi um desses escritores que se recusam a fornecer qualquer informação sobre sua vida além daquela que está implicitamente contida em sua obra. Talvez a mesma rejeição que sente pelo romance autobiográfico e pela atitude de complacência perante o sentimentalismo para com o sofrimento de alguns escritores japoneses, que disso se utilizam como tema dos seus romances, seja o que o leva a ser muito parcimonioso quando se trata de falar sobre si mesmo. De qualquer maneira, pode ser interessante reunir as poucas informações que temos sobre a sua vida e tentar, com elas, moldar algo que se assemelhe a uma biografia.1
 
Kobo Abe nasceu em Tóquio em 1924, mas passou a primeira infância em Kyushu, embora por sua família ser de Hokkaido (perto da cidade de Asahikawa), segundo o costume japonês, é onde ele está registrado. Ele próprio observa: “Como o local de registro, o local de nascimento e o local onde cresci são diferentes, tornei-me muito reservado quando se trata do meu passado. O que posso responder quando me perguntam onde nasci?”
 
“Essencialmente, sou uma pessoa sem terra natal. Graças a esse fato, é muito difícil para mim escrever uma lista ainda que abreviada de datas importantes da minha vida. O sentimento de desenraizamento que está na base das minhas emoções pode ser atribuído às mesmas razões.”
 
E continua:
 
“Pouco depois fui levado para a cidade de Hoten (Mukden, hoje Shenyang), na Manchúria, e lá morei até ingressar na escola preparatória Seijo, no Japão, no 15º ano de Showa (1940). Na Manchúria, talvez, adquiri a habilidade de descrever paisagens desoladas.”
 
Desta breve informação emergem pelo menos três aspectos importantes relacionados com a vida e a obra desse escritor: o desenraizamento, a visão do deserto e a ideologia progressista. Comecemos analisando este último ponto, que não é tão claro quanto os outros dois.
 
Os japoneses idealistas emigraram para a Manchúria, então colónia do Império, que queriam escapar à atmosfera política cada vez mais opressiva do arquipélago (estes eram os anos de gestação da guerra) e, no processo, experimentar outras formas de coexistência e formas de pensar. O pai de Kobo Abe, que era médico, talvez pertencesse a esta categoria de japoneses e incutiu no filho ideias que mais tarde o levariam ao marxismo da sua juventude. É preciso ter em conta que naqueles anos os partidos e a literatura de esquerda eram absolutamente proibidos no Japão, pelo que a única forma de manter viva essa ideologia era, muitas vezes, na intimidade familiar. Além disso, muitos japoneses que conheceram a Manchúria falaram de um sentimento de liberdade que não existia na cerrada, superpovoada e claustrofóbica terra natal.
 
Quanto à visão do deserto, que tantas vezes aparece nas obras de Abe, é natural que os anos de infância passados ​​na imensidão desolada do continente tenham exercido grande influência no imaginário e no estilo sóbrio do autor. Numa terra como o Japão, onde uma natureza pródiga tem tradicionalmente fomentado delicados sentimentos de comunhão e meditativo, que na literatura se traduziram numa tendência muito marcada para o intimista, as paisagens desérticas e o estilo despojado de Abe podem aparecer, à primeira vista, como um fato completamente anômalo. Relacionado a isso, Yukio Mishima comentou certa vez que seria muito difícil encontrar, nos mil anos de ficção japonesa, outro escritor que tenha reduzido, como Abe, de forma tão drástica, sua tradicionalmente elevada “umidade” (ele se refere a um gosto quase mórbido para o sentimental).
 
Quanto à falta de raízes, no Japão Kobo Abe é visto como um autor cosmopolita e sem raízes, pouco japonês, condição da qual sempre se orgulhou, já que se considerava “uma pessoa sem pátria”, livre dos sentimentalismos nostálgicos do passado.
 
No seu ensaio A fronteira interior (Uchi naru henkyo, 1974), onde trata dos judeus mas sem se ocupar especificamente da questão judaica, Abe expressa mais claramente do que em qualquer obra de ficção, as vantagens do exílio e da falta de raízes. Além disso, nega a autoridade e a lei com base nos laços da terra. O desenraizamento, que causa angústia e perda de identidade, é, no entanto, o destino do homem moderno e é aí que reside a sua fonte de energia. Como aponta no parágrafo final do ensaio: “Embora a praça ainda esteja mergulhada na escuridão, é muito cedo para perder a fé. Afinal, o exilado não vive só de luz.”
 
Depois da passagem pela Manchúria e do regresso ao Japão, em plena guerra, encontramos o escritor, inesperadamente, em Tóquio, em 1948, onde acabava de receber o seu novo título de doutor em medicina. Ele próprio comenta este acontecimento com certo humor: “Estudei medicina na Universidade de Tóquio, mas dizem que não era um aluno aplicado. Os professores me diziam que se eu prometesse não exercer a profissão, me permitiriam me formar.”
 
E cumpriu com a sua promessa porque nesse mesmo ano publicou o seu primeiro romance, uma espécie de biografia espiritual que se passa na Manchúria, intitulado O sinal no fim da rua (Owarishi michi no shirubeni). O que estava começando era uma carreira literária. Em qualquer caso, a medicina, juntamente com a matemática e a entomologia, seus hobbies desde a adolescência, serviriam para moldar um estilo muito peculiar onde se combinam a precisão do cirurgião, a paixão pelo rigor e as simetrias do matemático; e a obsessão quase maníaca por classificação do entomologista.
 
A cidade de Tóquio, além de constituir um ambiente totalmente diferente da Manchúria da sua infância, marcaria definitivamente o seu caráter e a sua obra com o selo cosmopolita da vida urbana. Em romances como A mulher das dunas é onde a síntese deserto-cidade, apesar de não estar presente, atinge a sua plenitude, tornando-se uma espécie de metáfora do deserto espiritual da vida metropolitana.
 
É também em Tóquio que Abe estreia as suas primeiras armas de escritor, com a publicação, em edição mimeografada, de uma coletânea reunindo poemas e um capítulo de O sinal no fim da rua, que o colocou em contato com o ambiente literário do pós-guerra. Com algum receio se aproxima do grupo liberal de apres-guerre, que apresentou alguns de seus contos na revista Kindai bungaku. Mas a sua simpatia está do lado dos setores marxistas, o que o leva a se juntar às fileiras do Partido Comunista, do qual foi expulso alguns anos depois, segundo a versão de Edward Seidensticker.2 Como escritor, porém, nunca apresentará, diretamente, questões sociais, mas sim na forma de metáfora.
 
Já neste período inicial de sua carreira, seu nome começou a ficar conhecido no mundo literário, embora ainda se fale em Abe Kimifusa, em vez de Kobo Abe.3
 
A partir daí, e durante três décadas, daria forma a um dos estilos mais singulares e discutidos no Japão, cuja rigorosa coerência se estabeleceria a partir de um tema complexo e recorrente que permeia toda a sua obra: a procura da identidade.
 
Os anos da ocupação nos mostram um Abe ainda ligado a um modelo europeu de literatura, que oscila entre o existencialismo e o expressionismo, e que, para o Japão da época, poderia muito bem ser considerado “vanguardista”. Seu primeiro romance, O sinal no fim da rua, reflete sua experiência na Manchúria, em um tom bastante existencialista. Os críticos e o próprio Abe reconhecem os valores limitados desta obra, que, no entanto, contém as sementes de muitos problemas que ele desenvolveria mais tarde.
 
Em 1949 publicou Dendrocacalia, conto que trata de uma metamorfose. Em 1951 recebeu o Segundo Prêmio de Literatura do Pós-guerra por O casulo vermelho (Akai mayu), cujo tema é outra vez uma metamorfose. Mas sua consagração veio alguns meses depois, quando recebeu o prêmio Akutagawa por O crime de S. Karuma (Kabe S. Karuma-shi no hanzai). Este romance começa quando o protagonista, ao acordar certa manhã, percebe que perdeu o nome. Esquecido completamente, procura desesperadamente um cartão pessoal (o aliado indispensável da identidade japonesa), sua credencial de trabalho, o nome estampado na farda, mas tudo é inútil. O nome não aparece. É o começo do pesadelo.
 
Os críticos receberam a notícia de que um romance tão excêntrico havia sido premiado com surpresa e até indignação. Como estes eram anos em que o “moderno”, isto é, o “ocidental”, estava na moda no Japão, muitos disseram ironicamente que até o prêmio Akutagawa tinha se rendido à “modernização”. O famoso crítico Shugo Honda escreveu: “De acordo com as características do prêmio Akutagawa, o fato de ter sido atribuído a uma obra de Kobo Abe deve ter surpreendido até mesmo o autor”. O escritor Koji Uno tratou o romance como “incompreensível e tedioso”. Mas a verdade é que o escritor começava a ser tido em conta no mundo das letras, independentemente da sua relação com Jun Ishikawa, que se disse ter sido o seu iniciador na literatura “vanguardista”. Com a acentuada propensão dos japoneses para rotular de uma vez por todas, Kobo Abe tornou-se, a partir de então, o escritor de vanguarda. No contexto do Japão daquela época, realmente era.
 
Os anos desde o fim da ocupação até Ampo (1952-60) foram anos de continuação da busca e decantação do estilo. Os numerosos contos e romances desta época insistem nos mesmos temas: metamorfose, perda de identidade, alienação, angústia existencial, desenraizamento. A maioria delas são narrativas muito engenhosas, brilhantemente resolvidas do ponto de vista estilístico, cujos temas servirão, anos depois, para algumas das obras teatrais do próprio Abe.
 
Em 1957 publicou o romance As feras voltam para casa (Kemonotachi wa kokyō o mezasu), novamente com o tema do desenraizamento no cenário inóspito do deserto da Manchúria. Esta obra parece marcar o fim de uma fase, já que a seguinte, o romance Quarta era glaciar intermédia, juntamente com Aqui está o fantasma (Yürei wa kokoni ira, 1958), uma peça teatral paródico-humorística, são o início da transição para o que chamamos de “período de maturidade expressiva”, que coincide com os anos de grande crescimento económico do Japão (1960-73).
 
Este período de maturidade expressiva mostra dois aspectos muito importantes da carreira literária de Kobo Abe: por um lado, uma abertura a novos meios de expressão, como o rádio, a televisão, o cinema e, especialmente, o teatro; por outro, uma mudança no seu estilo narrativo, ligada a uma nova abordagem dos temas habituais.
 
Embora a adaptação cinematográfica dos seus próprios romances e os roteiros para o rádio e a televisão constituam uma notável intenção de procura de novas formas, é no teatro que Abe encontrará o meio mais adequado para desenvolver as suas experiências e a sua visão particular da realidade, como se os mecanismos cênicos constituíssem para ele o instrumento perfeito para mostrar o que propõe.
 
Um de seus primeiros trabalhos foi Casa de escravos (Doreigari), obra que contém certos elementos marxistas, produzida pelo Teatro de Atores, em 1962. Amigos (Tomodachi, 1967) tem muitos pontos de contato com o teatro do absurdo europeu. Mais tarde, ele adaptou alguns dos seus primeiros contos para o palco, por exemplo, O homem que se transformou num pau (Bo ni natta otoko), baseado em O pau (Bo, 1955) e representada pela primeira vez em novembro de 1969, em Tóquio. Desde então a sua atividade teatral se expande, não só como escritor de peças, mas também como encenador (a partir de 1972) e até autor de música, com a colaboração da sua esposa Machi na cenografia. No papel de homem de teatro o encontramos, em maio de 1979, em turnê, com sua companhia, pelos Estados Unidos, que culminou no Teatro Experimental La MaMa, em Nova York. A peça representada foi O pequeno elefante morto (Kozó wa shinda) e teve ótima recepção de crítica, que elogiou a audácia da encenação e a acuidade de um texto que vai além das palavras.
 
Apesar da sua crescente aposta no teatro, a década de 1960 marca o momento mais alto da sua narrativa, sobretudo através dos três grandes romances: A mulher das dunas (1962), O rosto de um outro (1964) e O mapa queimado (1967). Há neles uma notável consolidação do seu estilo, que se torna mais pessoal e muito mais próximo do ideal objetivo, quase jornalístico, a que o nosso autor parece aspirar.
 
Quanto aos temas, o protagonista de A mulher das dunas, um entomologista, se perde num buraco de areia no deserto; o cientista de O rosto de um outro perde a face durante um experimento de laboratório; e o detetive particular de O mapa queimado se perde tentando encontrar um homem desaparecido. O que os três perdem, na verdade, é a identidade. Ou, talvez, eles nunca a tiveram.
 
Depois de O mapa queimado, levará alguns anos até que Abe produza outros novamente romances. É precisamente em 1973, ano do shock do petróleo, que surge O homem-caixa, uma história sufocante onde todas as certezas que a percepção costuma proporcionar se desvanecem nesse labirinto simbólico que é a megalópole industrial. Encontro secreto (1977), um dos seus últimos romances, que se passa quase inteiramente dentro dos muros de um hospital, continua na mesma linha do anterior. Aparentemente há uma regressão ao primeiro período, uma espécie de paráfrase do seu estilo e temas, levados às últimas consequências, o que sugere um período de “maneirismo” decadente e o seu inevitável declínio como narrador. Mas se nos atermos às declarações do próprio Abe, por ocasião da estreia em Tóquio, em junho de 1979, de O pequeno elefante está morto, esta obra constitui o fim de uma etapa e o início de outra, cujos objetivos ele não especifica.
 
Em síntese, Kobo Abe é um autor cuja obra, que abrange todo o período do pós-guerra, e manteve uma coerência rigorosa nas suas pesquisas literárias (estilísticas e temáticas). Sua posição política de esquerda não teve maior destaque em sua narrativa. Ele não cultivou um estilo realista, mas preferiu a alegoria social. Exceto no início, não esteve vinculado a nenhum grupo literário, preferindo a experimentação individual. Sua produção como romancista foge aos padrões tradicionais japoneses e como escritor cosmopolita suas obras são conhecidas em quase todos os países do mundo. Dos anos 60 há nele uma virada para o teatro que se acentuou até deslocar seu interesse pela narrativa. Nos anos seguintes, continuou escrevendo romances cujos temas giram obsessivamente em torno do mesmo tema: a busca pela identidade.
 
Em termos visuais, pode-se dizer que sua trajetória como narrador descreveria uma curva cujo clímax seria dado por suas obras dos anos 60. A fase experimental dos anos 50 constituiria a trajetória ascendente da curva e dos romances dos anos 70, a trajetória descendente. Com base nesta analogia plástica, dividimos a sua narrativa em três períodos: o início da busca (1948-60); maturidade expressiva (1960–73); e os anos de retiro (1973-1993).
 
Notas
 
1 Os dados utilizados foram retirados das seguintes publicações: prefácio de Friends (Tomodachi) em Contemporary Japanese Literature.  An Anthology of Fiction, Film and Other Writing Since 1945; Kobo Abe, “The Frontier Within”, tr. Andrew Horvat, Japan Quarterly, v. 7, n. 2-3, abr. jun. e jul. set. 1975; Nakamura Mitsuo, Novela Japonesa Contemporánea, Tóquio, Kokusai Bunka Shinkokai, 1970; Kazuya Sakai, Japón: hacia una nueva literatura, Ciudad de México, El Colegio del México, 1968; Kokusai Bunka Shinkokai,  Introduction to Contemporary Japanese Literature 1936–1955, Universidade de Tóquio, 1959; Introduction to Contemporary Japanese Literature, 1956–1970, Universidade de Tóquio, 1972; Nihonno bungaku (Literatura japonesa), v. 73, “Abe Kőbō Kokusaiteki Sakka” (Abe Kobo, um autor internacional), Muramatsu Takashi, Tóquio, Chuokoron-Shinsha, 1968.
 
2 “Abe was a member of the Communist Party (he has since expelled) when he wrote both novels (The Woman in the Dunes and The Face of Another), but the reader is likely to think of Kafka or Beckett long before he thinks of Mao or Stalin.” Edward Seidensticker, “The Japanese Novel and Disengagement”, Literature and Politics in the 20th. Century, G. Mosse e W. Laqueur (org.), Nova York, Harper and Row, 1967, p. 173. Ter sido membro do Partido Comunista talvez explique o fato de que grande parte da obra de Abe tenha sido traduzida para o russo e de que alguns dos mais importantes especialistas na sua obra apareçam na União Soviética.
 
3 Em japonês existe duas maneiras de ler os caracteres chineses: on’yomi, à maneira chinesa; e kun’ yomi, à maneira japonesa. Os nomes, geralmente, são lidos nesta segunda forma mas quando uma pessoa alcança fama, prefere-se o uso on’yomi. Kimifusa (kun’yomi) e Kobo (on’yomi) são duas formas de ler o mesmo nome que consta de dois caracteres.

 
* Este texto é o capítulo de Abe Kobo y la narrativa japonesa de pós-guerra. Jornadas El Colegio de México (1982, p. 42-55). Tradução livre.

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