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Iliá Répin. Tolstói em um campo arado, 1887 |
Que a literatura seja o método
mais fidedigno de retratar — e quiçá compreender — a essência humana, não é
novidade para mim e para tantos outros, embora a afirmação contenha, de fato,
pequena margem de subjetividade. Além de retratar e problematizar aspectos
cruciais de nosso agir enquanto indivíduos, não raro a literatura amplia o seu
raio de incidência e faz o mesmo diante de questões sociais, políticas,
religiosas etc. E escritores como Liev Tolstói fazem com que, por vezes, todos
esses elementos estejam em uma mesma obra.
De outro lado, embora enredos como
os de
Guerra e Paz ou
Anna Kariênina demonstrem com facilidade a
lógica desse argumento, como disse em meu texto sobre Tchekhov, o bom escritor deve
saber causar impacto em seu leitor mesmo com um texto curto. E o conto “De
quanta terra precisa um homem?”, escrito por Tolstói e publicado pela primeira
vez em 1886, nos mostra, mais uma vez, que isso é bem possível.
O conto começa introduzindo o
leitor a um diálogo entre duas irmãs, que discutem sobre as vantagens e
desvantagens da vida no campo e na cidade, onde residem cada uma delas,
respectivamente. A certa altura, o agricultor Pahom, personagem principal e
marido de uma das irmãs, que com ele reside na zona rural, garante que a vida
no campo é ótima e que não permite ao homem se preocupar com banalidades; a
única preocupação, para ele, é a falta de terra. Por isso, diz em alto e bom
tom: “Se eu tivesse bastante terra, não teria medo nem do Diabo em pessoa!”. Era
o início de seu próprio inferno.
Ouvindo essa afirmação, o diabo, que se torna
um personagem da narrativa, pensa consigo: “Eu lhe darei uma boa porção de
terra, e por meio dessa terra o colocarei sob meu poder”. Daí em diante, Pahom,
antes um mero funcionário, passa a adquirir a sua própria terra, como desejava.
Mas a primeira aquisição não gera a felicidade que esperava, e o camponês passa
a negociar mais e mais terras. Um conhecido diz que algumas terras estão sendo
vendidas para tal canto, outro diz que a melhor oportunidade está naquele lado,
e o ambicioso herói segue sua jornada de negócios. Se 1.000 rublos comprariam
apenas 1.300 hectares num canto, Pahom consegue dez vezes mais em outro etc.
Surge, então, uma chance de ouro.
Um certo proprietário — o diabo encarnado — garante a Pahom que não cobrará
nada para lhe entregar uma parte de suas terras, exigindo apenas uma coisa: que
o homem caminhe o máximo que conseguir, pois, até onde conseguir chegar, a
terra será sua, desde que retorne ao ponto de origem. A condição foi aceita. O
homem sem medo do diabo caminha, caminha e caminha.
E consegue retornar. Ao chegar no ponto de
partida, toda aquela imensa quantidade de terra pertencia a Pahom, entretanto,
o homem estava morto. Em sua última frase, Tolstói nos entrega um desfecho
alegórico, contendo sua lição: para enterrar Pahom, bastou um metro e oitenta
de terra.
Essa é claramente uma daquelas
obras em que o leitor perde muito de seu significado quando realiza uma leitura
dissociada da vida pessoal, do pensamento e das demais obras do autor. No livro
Uma Confissão (1882), por exemplo, Tolstói apresenta um prelúdio aos
seus ideais ascéticos e de renúncia aos bens materiais, temas que aparecem como
pano de fundo em mais de uma obra.
A título de nota biográfica,
tem-se que o célebre escritor russo, depois de publicar suas obras de maior
sucesso, passou por profundas crises de cunho moral, existencial, religioso
etc., sobre as quais seria quase que uma irresponsabilidade fazer apenas um
resumo, pois impactaram e muito alguns de seus textos posteriores.
De toda forma, o importante, aqui,
é compreender que essa concepção de vida ascética de um Tolstói “amadurecido”
impactou nitidamente o conto “De quanta terra precisa um homem?”, seja pela
exposição dos princípios que adotou a partir de seu confuso cristianismo (como
a renúncia a si próprio e aos bens materiais), ou pela simples crítica velada
(mas não tanto) aos grandes proprietários de terra.
Independente da chave que o leitor
utilize para interpretar a obra e da discordância que eventualmente nutra pela
cosmovisão do autor; seja pela ótica de uma crítica
normativa ou
imanente,
entendo que estamos diante de um grande texto de Tolstói, pois causa inquietude,
reflexão, mas, principalmente, porque cumpre com aquilo que considero um dos
maiores objetivos da boa literatura: denunciar os nossos vícios, pecados ou
exageros, para que possamos, lendo a obra, enxergar nela o nosso retrato ou do que efetivamente somos e do que podemos vir
a ser.
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