De Górki a Prokofiev, os criadores da “nova era” soviética

Olga Rozanova.



Vladimir Lênin pôs fim à Rússia Imperial, à família Romanov... e com uma forma de criar aquilo que a “nova era” chamava de “burguesa”. Do estado nascente, o dos sovietes, surgiram alguns sonhos que logo se tornariam pesadelos e, ao mesmo tempo, uma cultura revolucionária que se deixou levar pelos movimentos de vanguarda da época.
 
Nenhuma disciplina ficou de fora dos ventos renovados, carregados, pelo menos por alguns meses, de esperança e transgressão. Destacamos seis protagonistas, a maioria com finais trágicos, que viveram o período de forma criativa. Nomes, ao mesmo tempo, que deixaram suas marcas na cultura universal e que formularam uma nova ideia de Rússia.
 
Maksim Górki, autor de A mãe, deveria ter sido um ícone da revolta bolchevique, mas acabou por “suspeitar” como Lênin “manejava a alavanca da história”; Vladímir Maiakóvski emergiu como um poeta do sistema e um artista multifacetado essencial na sua explosão cultural; Kazimir Malévich, criador do suprematismo, defendeu uma “arte livre” com determinação radical; Vsévolod Meyerhold foi um animal teatral que fez do palco um paraíso para o proletariado; Sergei Prokofiev propôs aberturas; e  cine-olho de Dziga Vertov combinou inovação e propaganda até a chegada de Stálin e a imposição do realismo socialista.
 
Górki, um escritor sob a alavanca da história
(Alberto Ojeda)
 
Maksim Górki (Nijni Novgorod, 1868 — Moscou, 1936) foi um daqueles russos que não dormiu em paz nem com o czarismo nem com os soviéticos. Durante o regime de Nicolau II, ele se apresentou como um rebelde contra suas iniquidades. Tornou-se um dos fundadores do realismo socialista, que procurava atiçar o fervor revolucionário entre o povo. O reconhecido romance A mãe, de 1907, é um marco nesse processo de conscientização.
 
Com o triunfo da revolta bolchevique, Maksim Górki se tornaria um ícone intocável por seu trabalho de base literária para derrubar os Romanov. Manteve um relacionamento pessoal com Lênin. “Grandes amigos”, como o descreve Vitali Shentalinski a descreve em Escravos da liberdade.
 
Os dois se conheceram em 1905 e “surgiu imediatamente uma simpatia entre os dois rebeldes do Volga que ansiavam reconstruir a Rússia”. Já então, Górki era mais famoso e vivia com certa tranquilidade enquanto Lênin “estava apenas começando a se consolidar e a aspirar ao poder”.
 
Mas nessa altura começou a se estabelecer uma rotina entre eles: as questões do escritor, mais aberto à autocrítica, eram repreendidas pelo vozd do proletariado. Estas tensões intensificaram-se quando este último foi entronizado e recorreu a métodos autoritários. No jornal Nóvaya Zhizn, Górki afirmou que não via na revolução nada mais do que presságios de tragédia.
 
Em 1919, a comunicação entre os dois foi congelada. Quando Lênin completou 50 anos, o dramaturgo (O submundo, Os veranistas...), citado há muito com um preterido ao Prêmio Nobel de Literatura, fez um discurso no qual colocou o líder proletário no mesmo nível de Pedro, o Grande, mas também filtrou o medo instilado por ele.
 
“E de repente aparece uma figura de tal tamanho que, embora eu não seja nenhum covarde, garanto que me assusta quando olho para ela. É terrível ver como esta pessoa sublime manipula a alavanca da história como lhe agrada…”
 
Maksim Górki precisou deixar o país. Acabou na Itália fascista, de onde Stálin conseguiu resgatá-lo quando o convidou a voltar à pátria em 1932. Embora tenha alcançado certo equilíbrio, também não dormiu sossegado: dois anos mais tarde, por exemplo, foi colocado em prisão domiciliar. Ele morreu em 1936, em meio a suspeitas de que os agentes da NKVD não estavam alheios à sua morte.
 
Maiakóvski, de poeta famoso a suspeito
(Jaime Cedillo)
 
Vladímir Maiakóvski (Baghdati, 1893 — Moscou, 1930) contava apenas dezessete anos quando o mecenas de arte David Burliuk lhe ofereceu 50 copeques por dia para escrever. Pretendia tirá-lo da Academia de Pintura, Escultura e Arquitetura de Moscou, onde o havia ingressado quase sem ilusões.
 
O escritor, poeta, dramaturgo e artista gráfico, que havia passado pela prisão três vezes durante o czarismo devido às suas ideias revolucionárias, tornou-se uma das grandes estrelas da vanguarda cultural russa.
 
Foi o grande expoente do futurismo, movimento literário experimental que surgiu contra o acmeísmo, cujo principal promotor foi Nikolai Gumiliov, primeiro marido de Anna Akhmátova, e promoveu, em contraste com os propósitos simbolistas, uma arte compreensível. Ele também desafiou o kitsch dos simbolistas. Preferia escrever sobre o sórdido — os ratos, as zaragatas… — e sobre o cotidiano a partir de uma linguagem coloquial.
 
Autodidata e de origem humilde, o autor de “A nuvem de calças” escreveu para quase quatro dezenas jornais e sessenta revistas. Ele próprio fundou a Frente da Arte de Esquerda (LEF), revista na qual nomes como Boris Pasternak e Sergei Eisenstein escreveram e denunciaram o academicismo dos artistas e falta desses do compromisso político.
 
Vladímir Maiakóvski foi um dos criadores que mais fizeram pela propaganda do regime. Considerava-se um “poeta soldado da Revolução”, pregava o comunismo em toda a Rússia e entre as suas obras mais famosas está um poema épico escrito em 1924 com homenagem a Vladimir Lênin.
 
Foi colaborador da Cheka (Chrezvichainaia Komissiia), a primeira polícia secreta da União Soviética; fez reportagens sobre Nikolai Gumiliov, figura central do movimento acmeísta que seria fuzilado em 1921; escreveu sobre Óssip Mandelstam, sobre Górki… Lênin, com gostos mais tradicionais, nunca se entusiasmou com sua obra.
 
Quando o ditador morreu, o realismo socialista promovido por Stálin deixou-o de fora. Chegou mesmo a ser investigado pela Associação Russa de Escritores Proletários (RAPP) por ser “burguês” e “individualista”.
 
Atraente e arrogante, Maiakóvski era muito charmoso. Um desengano e não-aceitação de seu novo status o levaram a dar um tiro no coração com uma Browning espanhola modelo FN M1900 quando tinha apenas 36 anos.
 
Malévich, o poder do negro
(Luisa Espino)
 
Kazimir Malévich (Kiev, 1878 — São Petersburgo, 1935) foi o criador do suprematismo, a proposta mais radical entre os ismos das vanguardas do início do século XX. Baseado na abstração e numa economia total de meios, teve a sua materialização mais evidente no Quadrado Negro que apresentou em 1915 e que expôs, anos mais tarde, na Bienal de Veneza.
 
Publicou um manifesto, “Do Cubismo e Futurismo ao Suprematismo”, que resumiu todo seu ideário artístico: uma busca pela mudança da linguagem artística nos tempos modernos. As formas geométricas elementares e monocromáticas (círculos, quadrados, retângulos, cruzes) seriam a sua marca, que levaria ao extremo na série Branco sobre Branco (1917-1918). Ele coincide com Kandinsky em sua pesquisa sobre a abstração e os dois serão colegas de profissão na docência.
 
Nessa função de professor, além de pintor e teórico, foi um artista comprometido com a Revolução, atuante em comissões artísticas e nas comemorações do primeiro ano do levante. Em 1918 dirigiu um dos Estúdios Estatais de Oficinas Gratuitas em Petrogrado e desenhou os cenários para Vladímir Maiakóvski.
 
Por sugestão de El Lissitzky, ingressou na Escola de Arte de Vitebsk, um projeto político que tentava promover a arte livre para a Revolução e que Lênin inicialmente confiou a Marc Chagall, embora Malévich acabasse por dirigi-lo o fim em 1922.
 
A partir daí foi com alguns de seus discípulos para Petrogrado, onde trabalharia no Museu de Cultura Artística e exporia muitos de seus projetos na Bauhaus alemã, bem como na Rússia.
 
Os últimos anos foram catastróficos. Fecharam seu apartamento e ele foi arrastado para a prisão em 1930. Ele é o único entre os protagonistas da vanguarda russa que não deixará o país, embora permaneça imerso em um exílio interior, angustiado pela deriva coletivista e por sua própria miséria econômica.
 
As suas divergências com as políticas culturais de Stálin levaram-no a ser preso durante três meses sob a acusação de espionagem para a Polônia. Ao deixar o cárcere pinta Esportistas (1930-1931) e com esses manequins regressa à figuração, embora tenha se mantido fiel às formas geométricas e às cores puras.
 
Meyerhold, um agitado outubro teatral
(Javier López Rejas)
 
Duas décadas antes de ser torturado e fuzilado por Stálin, Vsévolod Meyerhold (Penza, 1874 — Moscou, 1940) liderava, apoiando a revolução bolchevique que Lênin tentava estabilizar em toda a imensa Rússia, uma das maiores transformações teatrais da história.
 
Empurrado e arrastado pelas vanguardas da época, como o construtivismo ou o futurismo, pelo seu trabalho no Teatro de Arte de Moscou com Konstantin Stanislavski, pela sua amizade com Anton Tchekhov (iniciada com a atuação de Tréplev em A Gaivota, em 1898) e devido ao seu profundo conhecimento da commedia dell’arte, do teatro espanhol dos séculos XVI e XVII (representou  Calderón de la Barca e Cervantes, entre outros) e das técnicas performáticas chinesas e japonesas, Meyerhold encontrou na insurreição de Lênin o terreno fértil para a “nova era”, também, e sobretudo, teatral (em 1920 só no exército havia 1.200 teatros e 911 companhias).
 
“Em seu temperamento anárquico de animal de teatro”, escreveu Juan Antonio Hormigón, “a revolução foi uma excelente possibilidade para mudar todo a cenografia e o vestuário de sua época”. O trabalho de Vsévolod Meyerhold não seria compreendido sem esta conjuntura, sempre vigiada pelo “comissário do povo para a instrução” Anatóli Lunatcharski, executor (dentro do T.E.O., seção teatral que seria mais tarde dirigida por Meyerhold) de uma ordem de Lênin segundo a qual os atores deveriam se tornar proletários e pela qual todos os trabalhadores do teatro foram mobilizados para “educar política, cultural e esteticamente os soldados”.
 
Meyerhold, entretanto, cuidava de seus negócios. A sua encenação já não recriava a ilusão da realidade, mas propunha outra realidade e tanto o seu teatro convencional como as suas leis da biomecânica convertiam o palco num lugar onde o corpo do ator é o verbo principal, fosse com Vladímir Maiakóvski (figura essencial na sua práxis, com quem partilhou o movimento Proletkult) com montagens como Mistério-bufo ou O corno magnífico, de Fernand Crommelynck, um marco do momento, com cenário de Liubov Popova, com a qual entraria na história daquele agitado Outubro Teatral.
 
Prokofiev, compor por cima do ruído
(A. Ojeda)
 
O ano da Revolução Russa foi particularmente fértil para Sergei Prokofiev (Sontsovka, 1891 — Moscou, 1953). A radical mutação sociopolítica que vivia o seu país não o impediu de recorrer ao papel pré-estabelecido.
 
Além do Concerto para Violino N.º 1 e da Sinfonia Clássica, o compositor produziu também as Sonatas para Piano N.º 3 e N.º 4, as Visões Fugitivas para Piano e também avançou no Concerto para Piano N.º 3. Rica colheita para o autor do famoso balé Romeu e Julieta para o Balé Kirov em Leningrado estreado em 1938 em Brno; e das óperas O Jogador, baseada na obra de Dostoiévski, e Guerra e paz, baseado no magistral romance de Liev Tolstói.
 
Mas essa hiperatividade, entretanto, chegaria a um beco sem saída. Depois de terminar a Cantata Sete, são sete, encontrou um enorme vazio de oportunidades em teatros e auditórios. Carregava a sensação de que não tinha nada para fazer. “O tempo pairava pesadamente em minhas mãos”, recordaria mais tarde.
 
Nestas circunstâncias, pediu autorização às autoridades para partir para os Estados Unidos, onde esperava impulsionar a sua carreira. No novo país não teve um começo fácil e alcançou apenas alguma visibilidade com 1921 com a ópera O Amor das Três Laranjas em Chicago.
 
Regressou então ao seu país em 1936, com Stálin no poder, que o acolheu com hospitalidade desde a chegada. Na época trabalhou em estreita colaboração com Serguei Eisenstein. Assinou as trilhas sonoras de Alexander Nevsky (1938) e Ivan, o Terrível (1944). Foi ungido com vários Prêmios Stálin pelas suas composições, mas o estigma de “formalista burguês” acabou por recair sobre ele. E várias de suas obras foram proibidas.
 
Ele morreu, por exemplo, sem ver a estreia de sua ópera O anjo de fogo. Concluída em 1923 com vista à estreia na Deutsche Oper alemã, não encontrou palco que se atrevesse a realizá-la, muito menos na sua terra natal, então pouco aberta às reflexões espiritualistas.
 
O cerco ao seu trabalho o levou a dificuldades econômicas. É curioso que Prokofiev tenha morrido no mesmo dia que Stálin, que tinha criticado as suas asperezas dissonantes de vanguarda. Cruel ironia.
 
Vertov, cine-olho para um novo homem
(Javier Yuste)
 
Denis Arkadievitch Kaufman (Białystok, Polônia, 1896 — Moscou, 1954), adotou o nome Dziga Vertov (pião em russo) aos 20 anos, influenciado pelo futurismo.
 
Estabelecendo-se em Moscou em 1918, onde havia chegado fugindo do implacável avanço alemão durante a Primeira Guerra Mundial, passou a fazer parte do Comitê de Cinema e acabou se juntando a Serguei Eisenstein (O Encouraçado Potemkin, 1925) e Vsevolod Pudovkin (A mãe, 1926) numa das principais figuras do cinema soviético, que introduziu uma revolução expressiva na teoria e na prática do cinema, pelo realismo das suas imagens e pela utilização das possibilidades criativas da montagem.
 
Dziga Vertov dirigiu cinejornais durante a guerra civil e logo começou a estudar sobre como refletir no cinema o novo homem nascido da revolução comunista. A sua teoria do cine-olho rejeita os elementos do cinema convencional — roteiro, cena, iluminação, atores profissionais... — e postula que a câmera tem a capacidade não só de documentar a realidade, mas também de revelar ao espectador um mundo desconhecido, de modo que torna “o invisível visível, o confuso claro, o oculto manifesto, visível o dissimulado”.
 
Considerado um pioneiro do documentário e precursor do cinema-verdade que surgiria 35 anos depois, Vertov começou a colocar em prática suas ideias cine-olho em 1924, quando coletou as atividades dos jovens de uma aldeia soviética.
 
No entanto, seu trabalho culminante será Um homem com uma câmera (1929), atualmente o nono melhor filme da história segundo a revista britânica Sight & Sound. Nele, a câmera é onipresente e onipotente e consegue registrar o próprio “homem com a câmera”. O filme reflete o dinamismo da cidade nos momentos de trabalho e lazer durante o dia, mas não há uma história fixa, surge como um curioso poema visual.
 
Vertov viu sua estrela começar a desaparecer após a ascensão de Stálin e a problemática estreia de Três canções para Lênin (1934). O filme foi censurado e Vertov foi relegado à edição de cinejornais.
 
“Abaixo os literatos apartidários!”
 
Em 1905, mais de uma década antes da Revolução, Lênin proferiu a palestra “A organização do partido e a literatura do partido”. “Abaixo os literatos apartidários! Abaixo os literatos super-homens! A atividade literária deve tornar-se uma parte da causa proletária geral”, exclamou. Era um preâmbulo para o que, em questões culturais, significaria o seu mandato.
 
O Estado entende que os criadores devem colocar o seu talento ao serviço da Revolução, ser “engenheiros da alma”. Quando Górki pede compaixão para com os seus colegas que começam a ser deportados, Lênin responde que “os intelectuais, lacaios do capital, não são os cérebros da nação, mas sim a merda”. Lênin utilizou as correntes vanguardistas — o futurismo, o construtivismo… — como propaganda do regime, mas não eram do seu gosto pessoal.
 
Nunca demonstrou, portanto, muito entusiasmo com a criação da Proletkult (contração da expressão “cultura proletária”), organização de associações culturais promovida pelo Narkompros (Comissariado do Povo para a Educação).
 
Aleksándr Bogdanov, um dos fundadores da Proletkult, quer substituir a “velha cultura burguesa” por uma “cultura proletária pura”, enquanto Lênin é a favor da “assimilação crítica da herança burguesa”, recuperando o que fosse valioso, e começa a suspeitar que os membros vanguardistas deste grupo têm o mal do individualismo típico da burguesia.
 
A Cheka persegue criadores ou críticos esquivos do regime. Sofreram a apreensão de suas publicações através do Glavlit (órgão de censura) e, em muitos casos, foram presos (como poeta Aleksandr Blok), expulsos sem roupas e sem livros (Ivan Búnin, Prêmio Nobel de Literatura em 1933, Górki...) ou assassinados, como Gumiliov. Entre os exilados estavam Marina Tsvetaeva, Kandinsky, Chagall, Igor Severyanin, Leonid Andreiev e Isaiah Berlin.
 
A educação é um instrumento de consciência social, razão pela qual Lênin centra as suas ações na alfabetização da classe trabalhadora. Inclusive oferecem escolas noturnas para adultos que trabalham.
 
O “Novo Homem Soviético” tinha que ser um cidadão culto e educado. Além disso, Lênin nega a necessidade de uma língua nacional única e defende, seguindo Karl Marx, o direito das nações à autodeterminação.


* Tradução para “De Gorki a Prokófiev, los creadores de la nueva era soviética”, publicado aqui, em El Cultural.

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