Cinco poemas de “O Falcão à Chuva”, de Ted Hughes
Por Pedro Belo Clara
O FALCÃO À CHUVA
Afogo-me nas terras de cultivo, a
chuva nelas martelando,
Elevo os passos da terrena boca que me engole,
Do barro que me prende até ao tornozelo
Ao jeito dum túmulo obstinado, mas o falcão
Sem esforço nas alturas fixa o
olhar sereno.
As suas asas amparam toda a criação numa quietude sem peso,
Firme como alucinação no ar que voga.
Enquanto o vento golpeante mata as sebes persistentes,
As rajadas como polegares contra os
meus olhos, cortando a respiração, desordenando
[o coração,
E a chuva macera a minha cabeça até ao osso, o falcão permanece,
Uma força de vontade dura como diamante, qual estrela polar
Guiando a resistência do náufrago: e eu,
Sangrando, puxado, atordoado,
esperando os instantes finais,
Um mero pedaço sobre esta boca terrena, persistindo na direcção do mestre,
Fulcro da violência onde o falcão sereno permanece.
Talvez, a seu tempo, encontre-se com uma intempérie
Vinda da direcção errada, sofra com
a mudança do ar e seja arremessado,
Caindo das alturas, os sóbrios condados abatendo-se sobre ele,
O horizonte encurralando-o; o olho redondo e angelical
Esmagado, o seu sangue misturando-se com a lama.
O PENSAMENTO-RAPOSA
Imagino este momento na floresta da
meia-noite:
Algo mais está vivo
Além da solidão do relógio
E desta página branca onde os meus dedos se movem.
Nenhuma estrela cintila na janela:
Algo mais próximo,
Embora fundo na escuridão,
Entra nesta solidão:
Frio, tão delicado quanto a neve escura,
O nariz duma raposa tocando galho e folha;
Dois olhos denunciam movimento, que agora
E de novo agora, e agora, e agora
Deixa pegadas perfeitas na neve
Entre árvores, e prudente uma débil
Sombra retardada por um cepo e uma cova
Dum corpo audaz para chegar
Através de clareiras, um olho,
Um largo e fundo verdume,
Brilhante, concentrado,
Aproximando-se à sua maneira
Até que, com um súbito e agudo
fedor a raposa,
No negro buraco da cabeça a entrar se apressa.
Ainda não se vêem estrelas da janela; o relógio continua,
A página é impressa.
SETEMBRO
Sentamo-nos, já tarde, observando
a escuridão crescer lentamente:
Um relógio isto registar é coisa rara.
Quando os beijos se multiplicam e os braços se amparam, seguramente
Ninguém poderá dizer onde o tempo pára.
Solstício de verão: as folhas
permanecem grandes e paradas:
Por detrás do olhar uma estrela,
Debaixo da seda do pulso um mar, dizendo
Que o tempo não está em parte alguma.
Ficamos. As folhas não
cronometraram o verão a passar.
Nenhum relógio necessita agora
De dizer que possuímos somente o que podemos lembrar:
Minutos alvoraçando as nossas mentes
Como um desditoso Rei e sua Rainha
Quando as acéfalas multidões governam;
E sossegadamente suas coroas as árvores
Para as poças lançam.
RUIDOSOS EM CÍRCULO
A neve tombou como se em nome de
Venceslau.
A charneca espumava como um mar
Branco. Uma raposa faminta
Olhava fixamente a luz da estalagem.
À vermelha e gradeada cintilação
da turfa,
Rostos suando como pernis no forno,
Os agricultores rugindo sob as vigas mais baixas
Na sua véspera de Natal.
A boa companhia mantinha uma
gargalhada no ar,
Como se atirassem uma bola
Para superar o salto dum diabo que
A arremessara com a sua cauda,
Ou atingir o homem que por mais
tempo a tivera consigo.
Tanto eles gargalhavam
Que chegarias a pensar que se o não fizessem
Decerto deveriam chorar.
Assim a cerveja continuou a vir.
As suas bocas lançavam a larga
Cascata do riso, para que
O silêncio não bebesse sangue.
E os seus olhos aparafusados tão firmemente,
Enquanto as grandes barrigas se agitavam –
Oh, as suas carnes cairiam em poeira
Ao primeiro olhar sóbrio.
A aragem era nova como uma lâmina,
A charneca lembrava a lua,
Quando todos eles seguiram ruidosamente para suas casas,
Uma hora antes do amanhecer.
Aquelas imagens vivas das suas
mortes,
Melhores que se desenhadas com competência,
Cega e turbulentamente equilibradas,
Tiveram, gentilmente, a sua queda,
Enquanto o mundo debaixo dos seus
pés
Continuou a rodar
Alegre e para sempre, no negro silêncio
Sem fundo em que tombou.
INVESTIDA DE BAIONETA
De repente, acordou e corria —
inexperiente,
No seu caqui quente, de costura rude, o suor pesando,
Tropeçando através dum campo de torrões soltos em direcção a uma sebe verde
Ofuscada por fogo de espingarda, escutando
As balas batendo no ventre do ar —
Arrastou para si uma espingarda dormente como um braço esmagado;
A lágrima patriótica que transbordara do seu olho
Escorrendo como ferro fundido a partir do centro do peito, —
Perplexo, quase que estacou —
Em que relógio indiferente das estrelas e das nações
Era ele a mão que marcava aquele segundo? Corria
Como um homem que saltara no escuro,
Escutando entre o som das botas batendo no chão
A razão de ainda correr, o pé suspenso como
Estátua em meia passada. Então, os sulcos formados pelos tiros
Vomitaram uma lebre amarela que
rolou como chama,
Rastejando por uma eira, a sua silenciosa boca escancarada,
Os olhos esbugalhados.
Com a baioneta mergulhou na direcção da sebe verde.
Rei, honra, dignidade humana, etecetera
Tombaram como luxos num alarme gritante
Para fugir daquele ar azul, crepitante,
A sensível dinamite do seu terror.
Certos autores parecem fadados a ser
alvo dum conhecimento ou lembrança indirecta, isto é, por certos acontecimentos
que marcaram indelevelmente as suas vidas, mais do que pela obra que deixaram
escrita. Não é, de todo, um destino justo ou o rótulo (palavra detestável) adequado
a um trabalho válido por si só, por vezes digno de estudo e duma abordagem
pura, isenta de preconceitos.
Decerto Ted Hughes, sem grande
protesto, inserir-se-á nessa categoria, fruto da relação atribulada com a sua
primeira esposa, Sylvia Plath, autora duma obra por muitos admirada. Será raro
o leitor mais assíduo de Plath não olhar de soslaio à mera referência de Ted
Hughes, alimentando ainda mais um estranho ressentimento que parecem nutrir por
tal figura. Existe uma certa tendência, e não pouco fundamentada, para atribuir
a Hughes alguma responsabilidade pelo suicídio da escritora norte-americana, e
em idade tão precoce. Se, por um lado, a poetisa já tinha um histórico de
depressões, é um facto que as traições conjugais de Hughes não facilitaram a
situação. Ademais, existem suspeitas de maus tratos, físicos e emocionais,
alimentadas pelo suicídio (mais um) da mulher com quem Hughes manteve um caso
enquanto casado com Plath — acto esse que, tragicamente, também colheu a vida
da filha do poeta, com apenas quatro anos de idade.
Hughes, porém, ficou extremamente
abalado com a morte de Sylvia, chegando a confessar que a sua própria vida
terminara naquele dia. Após o sucedido, foi o marido enlutado quem se
responsabilizou pelo património da esposa, editando vários dos seus trabalhos,
tanto os inacabados como os dispersos, estes em antologias próprias — incluindo
Ariel, decerto a sua obra mais célebre.
Tragédias domésticas à parte, foquemo-nos
agora em Ted Hughes como poeta, aqui o aspecto mais importante a reter.
Nascido em agosto de 1930, numa comunidade rural do norte de Inglaterra, Hughes dedicou toda sua vida à poesia e à tradução, sendo também autor de livros infantis. Os primeiros anos de vida foram fulcrais na sua formação como homem e escritor: vários dos seus primeiros trabalhos inspiraram-se em histórias que escutou então e em locais que explorou. Desde cedo incentivado pelos seus professores a desenvolver o interesse pelo género, publica os primeiros poemas na revista da escola que frequentava. Decidiu-se por um curso em Língua Inglesa quando os tempos da faculdade lhe bateram à porta, mas, a meio do mesmo, mudou de rumo e optou pela via da Antropologia e Arqueologia.
Terminado o percurso académico, vivendo entre Londres e Cambridge, Hughes experimenta diversos ofícios, de jardineiro a empregado de limpeza no jardim zoológico da capital (veja-se como este trabalho lhe proporcionou a oportunidade de observar de perto vários animais e como isso se reflectiu na sua poesia). É nessa época que conhece Sylvia Plath, durante a festa de lançamento duma revista que, juntamente com um amigo poeta, decidiu criar. O projecto não passaria do primeiro número e o relacionamento, embora chegasse à fase do matrimónio, teve o fim que já conhecemos.
Seria em 1957, com a publicação do seu primeiro livro, só possível pela participação num concurso que venceu, que Ted Hughes conheceria a fama e a aclamação da crítica. O livro de que falamos, dedicado a Sylvia, que o dactilografou, é precisamente este que aqui trazemos em recortes: O Falcão à Chuva.
O impacto do primeiro contacto com a obra é indelével, e facilmente se percebe a sua originalidade e a maestria da técnica apresentada. Não se trata duma poesia fácil, mas extremamente madura, tanto na construção do verso como na escolha das palavras, inteligentemente conjugada com sons e ritmos. Observamos algumas inclinações naturalistas, muito comuns no conjunto da sua obra; o contraste da beleza do mundo natural e seus componentes com a violência que o mesmo comporta; reflexos do impacto que o acto da guerra teve em si, mesmo não o tendo experimentado em primeira mão; imagens perpassadas por um lirismo melancólico e sóbrio, outras compostas no rotineiro enfado da vida comum; exploração de referências histórias e até meras observações sobre assuntos variados e banais, compostas ao estilo dum quadro em movimento. No término da leitura, considerando a época, não se hesita em confirmar o carácter inovador deste trabalho, dono dum imaginário complexo, mas surpreendente.
Diga-se, porém, que, não obstante o impacto positivo que o seu primeiro trabalho editado, e logo o primeiro, teve no meio, muitos críticos optam por virar a atenção para Corvo, publicado em 1970 e reeditado inúmeras vezes ao longo da vida do autor. É, antes de mais, um livro divisor, já que muitos não apreciam as experiências aí tentadas. Trata-se dum palco onde a expressão poética simplifica-se, introduzindo-se num trilho algo apocalíptico em moldes cínicos, impregnados de amargura. Uma ruptura, portanto, com o traço habitual da sua poesia, dado a conhecer com a edição do primeiro livro.
A fase mais tardia do seu trabalho aborda, de facto, a questão do mito, e parece seguir a longuíssima tradição bárdica bretã. Ao mesmo tempo, investe em questões do foro da Psicologia, como o conceito dos arquétipos e os mistérios do inconsciente obscuro. Há, assim, um casamento entre um veio milenar e o modernismo, algo que já bem mais de trás deverá ter surgido, isto se considerarmos duas das suas maiores influências: Blake e T.S. Eliot. Este período fica também marcado por uma crescente preocupação ecológica.
Considerando as outras áreas do seu trabalho, é certo que no exercício da literatura infantil destaca-se com grande propriedade a obra O Homem de Ferro (esqueça-se a óbvia referência ao universo Marvel), de 1968, escrita como tentativa de confortar os seus filhos após o suicídio da mãe, Sylvia Plath. Apesar dos laivos de ficção científica que demonstra, sempre se aceitou tratar-se dum livro para um público mais jovem.
Curiosamente, será o seu último livro, Cartas de Aniversário, publicado meses antes de falecer, o merecedor do maior conjunto de prémios que nenhum outro, antes, lograra obter. A obra, de oitenta e oito poemas, refere-se a Sylvia Plath e ao seu relacionamento atribulado. Construiu, de certa forma, a oportunidade dos leitores verem a relação e a pessoa amada pelos olhos de Hughes, que durante décadas permanecera silencioso sobre o tema e o seu trágico desfecho.
Ted Hughes é um dos raros poetas que ainda em vida colheu os frutos do seu trabalho. Polémicas pessoais à parte, foi uma figura altamente respeitada no meio, tendo visto a sua obra aclamada e objecto de estudo nos círculos certos. Poeta laureado do Reino Unido desde 1984 até ao dia da sua morte, recebeu a prestigiosa Ordem de Mérito da Rainha Isabel II. Em finais de outubro 1998, enquanto combatia um cancro no cólon, sofre um ataque cardíaco fatal. Durante os serviços fúnebres, o poeta Seamus Heaney profere um discurso memorável: “o véu da poesia foi dilacerado”. Era a despedida dum dos poetas mais proeminentes de todo o século XX.
Notas
Versões de Pedro Belo Clara a partir dos originais editados em The Hawk in the Rain (Faber & Faber, 2019).
Ted Hughes. Foto: Jane Brown |
Elevo os passos da terrena boca que me engole,
Do barro que me prende até ao tornozelo
Ao jeito dum túmulo obstinado, mas o falcão
As suas asas amparam toda a criação numa quietude sem peso,
Firme como alucinação no ar que voga.
Enquanto o vento golpeante mata as sebes persistentes,
[o coração,
E a chuva macera a minha cabeça até ao osso, o falcão permanece,
Uma força de vontade dura como diamante, qual estrela polar
Guiando a resistência do náufrago: e eu,
Um mero pedaço sobre esta boca terrena, persistindo na direcção do mestre,
Fulcro da violência onde o falcão sereno permanece.
Talvez, a seu tempo, encontre-se com uma intempérie
Caindo das alturas, os sóbrios condados abatendo-se sobre ele,
O horizonte encurralando-o; o olho redondo e angelical
Esmagado, o seu sangue misturando-se com a lama.
Algo mais está vivo
Além da solidão do relógio
E desta página branca onde os meus dedos se movem.
Algo mais próximo,
Embora fundo na escuridão,
Entra nesta solidão:
O nariz duma raposa tocando galho e folha;
Dois olhos denunciam movimento, que agora
E de novo agora, e agora, e agora
Entre árvores, e prudente uma débil
Sombra retardada por um cepo e uma cova
Dum corpo audaz para chegar
Um largo e fundo verdume,
Brilhante, concentrado,
Aproximando-se à sua maneira
No negro buraco da cabeça a entrar se apressa.
Ainda não se vêem estrelas da janela; o relógio continua,
A página é impressa.
Um relógio isto registar é coisa rara.
Quando os beijos se multiplicam e os braços se amparam, seguramente
Ninguém poderá dizer onde o tempo pára.
Por detrás do olhar uma estrela,
Debaixo da seda do pulso um mar, dizendo
Que o tempo não está em parte alguma.
Nenhum relógio necessita agora
De dizer que possuímos somente o que podemos lembrar:
Minutos alvoraçando as nossas mentes
Quando as acéfalas multidões governam;
E sossegadamente suas coroas as árvores
Para as poças lançam.
A charneca espumava como um mar
Branco. Uma raposa faminta
Olhava fixamente a luz da estalagem.
Rostos suando como pernis no forno,
Os agricultores rugindo sob as vigas mais baixas
Na sua véspera de Natal.
Como se atirassem uma bola
Para superar o salto dum diabo que
A arremessara com a sua cauda,
Tanto eles gargalhavam
Que chegarias a pensar que se o não fizessem
Decerto deveriam chorar.
As suas bocas lançavam a larga
Cascata do riso, para que
O silêncio não bebesse sangue.
Enquanto as grandes barrigas se agitavam –
Oh, as suas carnes cairiam em poeira
Ao primeiro olhar sóbrio.
A charneca lembrava a lua,
Quando todos eles seguiram ruidosamente para suas casas,
Uma hora antes do amanhecer.
Melhores que se desenhadas com competência,
Cega e turbulentamente equilibradas,
Tiveram, gentilmente, a sua queda,
Continuou a rodar
Alegre e para sempre, no negro silêncio
Sem fundo em que tombou.
No seu caqui quente, de costura rude, o suor pesando,
Tropeçando através dum campo de torrões soltos em direcção a uma sebe verde
Ofuscada por fogo de espingarda, escutando
As balas batendo no ventre do ar —
Arrastou para si uma espingarda dormente como um braço esmagado;
A lágrima patriótica que transbordara do seu olho
Escorrendo como ferro fundido a partir do centro do peito, —
Em que relógio indiferente das estrelas e das nações
Era ele a mão que marcava aquele segundo? Corria
Como um homem que saltara no escuro,
Escutando entre o som das botas batendo no chão
A razão de ainda correr, o pé suspenso como
Estátua em meia passada. Então, os sulcos formados pelos tiros
Rastejando por uma eira, a sua silenciosa boca escancarada,
Os olhos esbugalhados.
Com a baioneta mergulhou na direcção da sebe verde.
Rei, honra, dignidade humana, etecetera
Tombaram como luxos num alarme gritante
Para fugir daquele ar azul, crepitante,
A sensível dinamite do seu terror.
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Nascido em agosto de 1930, numa comunidade rural do norte de Inglaterra, Hughes dedicou toda sua vida à poesia e à tradução, sendo também autor de livros infantis. Os primeiros anos de vida foram fulcrais na sua formação como homem e escritor: vários dos seus primeiros trabalhos inspiraram-se em histórias que escutou então e em locais que explorou. Desde cedo incentivado pelos seus professores a desenvolver o interesse pelo género, publica os primeiros poemas na revista da escola que frequentava. Decidiu-se por um curso em Língua Inglesa quando os tempos da faculdade lhe bateram à porta, mas, a meio do mesmo, mudou de rumo e optou pela via da Antropologia e Arqueologia.
Terminado o percurso académico, vivendo entre Londres e Cambridge, Hughes experimenta diversos ofícios, de jardineiro a empregado de limpeza no jardim zoológico da capital (veja-se como este trabalho lhe proporcionou a oportunidade de observar de perto vários animais e como isso se reflectiu na sua poesia). É nessa época que conhece Sylvia Plath, durante a festa de lançamento duma revista que, juntamente com um amigo poeta, decidiu criar. O projecto não passaria do primeiro número e o relacionamento, embora chegasse à fase do matrimónio, teve o fim que já conhecemos.
Seria em 1957, com a publicação do seu primeiro livro, só possível pela participação num concurso que venceu, que Ted Hughes conheceria a fama e a aclamação da crítica. O livro de que falamos, dedicado a Sylvia, que o dactilografou, é precisamente este que aqui trazemos em recortes: O Falcão à Chuva.
O impacto do primeiro contacto com a obra é indelével, e facilmente se percebe a sua originalidade e a maestria da técnica apresentada. Não se trata duma poesia fácil, mas extremamente madura, tanto na construção do verso como na escolha das palavras, inteligentemente conjugada com sons e ritmos. Observamos algumas inclinações naturalistas, muito comuns no conjunto da sua obra; o contraste da beleza do mundo natural e seus componentes com a violência que o mesmo comporta; reflexos do impacto que o acto da guerra teve em si, mesmo não o tendo experimentado em primeira mão; imagens perpassadas por um lirismo melancólico e sóbrio, outras compostas no rotineiro enfado da vida comum; exploração de referências histórias e até meras observações sobre assuntos variados e banais, compostas ao estilo dum quadro em movimento. No término da leitura, considerando a época, não se hesita em confirmar o carácter inovador deste trabalho, dono dum imaginário complexo, mas surpreendente.
Diga-se, porém, que, não obstante o impacto positivo que o seu primeiro trabalho editado, e logo o primeiro, teve no meio, muitos críticos optam por virar a atenção para Corvo, publicado em 1970 e reeditado inúmeras vezes ao longo da vida do autor. É, antes de mais, um livro divisor, já que muitos não apreciam as experiências aí tentadas. Trata-se dum palco onde a expressão poética simplifica-se, introduzindo-se num trilho algo apocalíptico em moldes cínicos, impregnados de amargura. Uma ruptura, portanto, com o traço habitual da sua poesia, dado a conhecer com a edição do primeiro livro.
A fase mais tardia do seu trabalho aborda, de facto, a questão do mito, e parece seguir a longuíssima tradição bárdica bretã. Ao mesmo tempo, investe em questões do foro da Psicologia, como o conceito dos arquétipos e os mistérios do inconsciente obscuro. Há, assim, um casamento entre um veio milenar e o modernismo, algo que já bem mais de trás deverá ter surgido, isto se considerarmos duas das suas maiores influências: Blake e T.S. Eliot. Este período fica também marcado por uma crescente preocupação ecológica.
Considerando as outras áreas do seu trabalho, é certo que no exercício da literatura infantil destaca-se com grande propriedade a obra O Homem de Ferro (esqueça-se a óbvia referência ao universo Marvel), de 1968, escrita como tentativa de confortar os seus filhos após o suicídio da mãe, Sylvia Plath. Apesar dos laivos de ficção científica que demonstra, sempre se aceitou tratar-se dum livro para um público mais jovem.
Curiosamente, será o seu último livro, Cartas de Aniversário, publicado meses antes de falecer, o merecedor do maior conjunto de prémios que nenhum outro, antes, lograra obter. A obra, de oitenta e oito poemas, refere-se a Sylvia Plath e ao seu relacionamento atribulado. Construiu, de certa forma, a oportunidade dos leitores verem a relação e a pessoa amada pelos olhos de Hughes, que durante décadas permanecera silencioso sobre o tema e o seu trágico desfecho.
Ted Hughes é um dos raros poetas que ainda em vida colheu os frutos do seu trabalho. Polémicas pessoais à parte, foi uma figura altamente respeitada no meio, tendo visto a sua obra aclamada e objecto de estudo nos círculos certos. Poeta laureado do Reino Unido desde 1984 até ao dia da sua morte, recebeu a prestigiosa Ordem de Mérito da Rainha Isabel II. Em finais de outubro 1998, enquanto combatia um cancro no cólon, sofre um ataque cardíaco fatal. Durante os serviços fúnebres, o poeta Seamus Heaney profere um discurso memorável: “o véu da poesia foi dilacerado”. Era a despedida dum dos poetas mais proeminentes de todo o século XX.
Versões de Pedro Belo Clara a partir dos originais editados em The Hawk in the Rain (Faber & Faber, 2019).
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