A desesperança e os malditos dias revolucionários de Ivan Búnin

Por Marcelo Jungle



 
Entre os estereótipos que lhe foram atribuídos, o escritor russo Ivan Búnin (1870-1953) ganhou fama como o autor da Rússia esquecida. No entanto, ele é muito mais do que um simples tipógrafo do passado. Búnin é também o registrador da alma e do amor. Seus contos falam geralmente sobre desespero e mal-entendidos em relacionamentos, cujo cenário é a inevitável decepção ou separação forçada, seja pela morte, seja por um marido traído ou uma mãe ciumenta, pelo suicídio ou abandono. Uma superfície que esconde aspectos profundos da vida e dos destinos das pessoas, afetadas por decisões com consequências duradouras. Não há expectativa de encontrar felicidade para quem lê seus contos. Mas aprenderá muito sobre a vida interior.
 
Dias Malditos, seu diário relativo aos anos de 1918 e 1919, chega ao Brasil 87 anos após sua publicação. Traduzido pela pesquisadora Márcia Vinha (que também assina o excelente posfácio) e lançado pela Editora Carambaia, o leitor brasileiro terá a oportunidade de acompanhar as reflexões e pensamentos que o autor fez sobre e durante a Revolução Russa. Obra de genuína importância histórica, perdura no tempo como um clássico incontestável e é composição única na carreira do escritor.
 
Marcia Vinha destaca a importância da obra e seu autor na Rússia atual. Ela aponta que o país recebeu Dias Malditos somente em 1989, graças à Perestroika e ao pesquisador Roman Timenchik, professor emérito da Universidade Hebraica de Jerusalém. Para ele, “a obra é um patrimônio cultural por retratar o povo na contramão do que exigia a tradição literária soviética, a qual o concebia como herói, como parte de uma contínua propaganda política (…). Com mais de quarenta edições em menos de uma década, a influência de Dias Malditos na formação política e humanística do pensamento russo atual é única.”
 
Como o Diário de um Escritor de Fiódor Dostoiévski, é diário e, ao mesmo tempo, possui traços de ficção, assim como é ensaio e reflexão política. Búnin, entretanto, gostava de afirmar ter se mantido longe de temas políticos. Em essência, o texto oferece um mergulho na alma atormentada daqueles que experimentaram o final da Primeira Guerra e o concomitante início da Revolução. Além disso, Búnin proporciona uma visão intensa e bem pessoal do impacto que tais acontecimentos provocaram no seu próprio cotidiano e na sua vida, definitivamente.
 
No entanto, embora se destaque do restante de sua obra, Dias Malditos traz as suas características marcantes. Existe uma convergência bastante perceptível disso assentada no caráter universal da obra de Búnin, o que o afasta da mera disputa política através da literatura e não o desvia de sua posição de não-engajamento. Além disso, a ausência de esperanças utópicas e de confiança no que está por vir são traços que a unem ao restante do que escreveu o autor.
 
Uma referência é sua franqueza em rejeitar a visão romântica que parte da literatura russa (com exceções) atribuía aos camponeses. Dostoiévski, chegou a lhes conferir uma missão messiânica, destinada a conduzir a Rússia em direção a uma estranha utopia cristã, o que contrastava com outros pensamentos por ele mesmo defendidos em sua obra.  Búnin não acreditava em nada disso:
 
“Há doze anos publiquei meu romance A Aldeia. Esta foi a primeira de uma série de obras que retratavam o personagem russo sem adornos, a alma russa, sua complexidade peculiar, suas profundezas, tanto claras quanto sombrias, embora quase invariavelmente trágicas.”
 
Este romance (traduzido no Brasil por Osvaldo Peralva, autor do brilhante O Retrato, relato de sua trajetória e decepção com o comunismo) é uma ode à sinceridade e causou reações virulentas na crítica apaixonada pela ideia do camponês santificado. Para Búnin, o povo nem sempre é inocente, o que ficará bem claro em Dias Malditos.
 
Mas não é somente a questão sociológica que o tornou um escritor bem conhecido na Rússia antes dos acontecimentos acima. Suas histórias tratam de assuntos atemporais e sem fronteiras. Aconteceram há muito tempo, mas ainda acontecem no século XXI. Afinal, não há motivo para a humanidade ter se livrado dos elementos trágicos e sombrios que a perseguem. Seus personagens carregam grandes silêncios interiormente. Em Dias Malditos esta perspectiva também se encontra, porém, associada a fatos e pessoas vivas.
Ele era um homem de letras profundamente russo e, ao mesmo tempo, um escritor universal. Aquilo que se conhece por alma russa também transita pelas páginas de seus livros. Mas não se deixava etiquetar:
 
“Os críticos correram para me marcar com rótulos, para estabelecer os parâmetros do meu talento de uma vez por todas… Na opinião deles, nunca houve um escritor mais quieto e fixo em seus pontos de vista do que eu… Eu era a ‘cantora do outono, da tristeza, dos ninhos dos nobres’… Mais tarde, eles me atribuíram etiquetas diametralmente opostas. Primeiro fui um ‘Decadente’, depois um ‘Parnasiano’ e um ‘mestre frio’… Eu era um simbolista, um místico, um realista, um neorrealista, um buscador de deus, um naturalista, e Deus sabe o que mais. Os críticos me encheram de tantos rótulos que me senti como uma mala que viajou o mundo… A verdade, porém, era que eu estava muito longe de estar fixo em meus pontos de vista e que estava vivendo uma vida cem vezes mais complicada e mais penetrante do que qualquer coisa que eu já havia publicado.”
 
Dias Malditos foi sendo composto de tudo que via, lia e ouvia nas ruas de Moscou e Odessa no período que se seguiu à tomada de poder pelos bolcheviques. Num mosaico de notícias de jornais, relatos pessoais, discursos oficiais e rumores, o escritor evoca grandes figuras literárias, artísticas e políticas de seu tempo.
 
A primeira frase do livro já anuncia o que se pode esperar da leitura: “Acabou esse ano odiento” (1.º de janeiro de 1918). Estupefação, inconformismo e incredulidade pontuam os registros marcados pela urgência, que transportam o leitor para o centro dos acontecimentos. Tudo ali era muito veloz e se transformava constantemente, algo muito diferente dos ambientes em que suas histórias acontecem.
 
A vida de Búnin exemplifica a complexidade e os desafios enfrentados por muitos intelectuais russos durante o período revolucionário e pós-revolucionário. Posteriormente representou para a intelligentsia emigrada russa uma posição similar àquela que Maksim Górki assumiu na União Soviética e perante a revolução. Os dois escritores chegaram a protagonizar uma disputa, em boa parte incentivada por autoridades soviéticas. Ao receber o prêmio Nobel em 1933, é de se pensar que Búnin poderia se sentir vencedor dessa história. No entanto, não foi isso o que aconteceu. Apesar de um certo sucesso à época, logo foi esquecido e se transformou apenas no primeiro russo a ganhar o prêmio Nobel de literatura, epíteto que até hoje o persegue.
 
Górki, no entanto, restou consagrado pela intelectualidade ocidental. Voltou à União Soviética, gozava da intimidade de Stálin e levava uma vida confortável de homem rico e influente. Os papéis, entre o aristocrata e o reformador, foram trocados pela realidade. Em seus últimos dias, o próprio Stálin o visitava no hospital, onde obteve atendimento dos melhores médicos do país. Sempre foi um homem da revolução e também do regime. Não se poderia simplesmente fuzilá-lo.
 
Búnin viveu como um russo expatriado; escrevia e publicava na sua língua; era pouco conhecido nos países europeus, apesar do Prêmio Nobel. Dependia economicamente da esposa. Morreu pobre.
 
Seus talentos, de qualquer maneira, são incomparáveis. Górki tornou-se um autor confinado nas suas convicções políticas e Búnin é um clássico. Carpeaux escreve que “dentre os grandes escritores russos, ele é o último, o mais realista e o mais clássico”.
 
O paralelo entre os destinos de cada autor, por outro lado, pode resolver a questão em torno de uma suposta reação exagerada de Búnin à revolução bolchevique. Segundo tal opinião, suas impressões seriam típicas de um aristocrata, assustado e raivoso com a reação do povo a anos de opressão. Em Dias Malditos, muito mais do que o reacionário aristocrata, o que se vê é a indignação em testemunhar a maldade predominante.
 
Alexandr Soljenitsyn advertiu que a mentira de todas as revoluções do mundo é que elas extirpam apenas os portadores do mal que lhes são contemporâneos (e, em sua ânsia, não distinguem os portadores do bem). E assim, o próprio mal é herdado e ampliado.
 
É contra esse mal que as pessoas comuns se revoltam, arrancadas da engrenagem revolucionária e correndo o risco de por ela serem esmagadas. E isso se aplica a aristocratas, burgueses, operários, camponeses e qualquer um que se ponha no caminho da “transformação”.



O livro de Búnin contém diversos relatos que comprovam isso. O movimento de fevereiro de 1917 começou como uma reação popular a um estado de coisas seculares, logo arrebatado por políticos de diversos matizes, culminando com os bolcheviques usurpando toda a mobilização em outubro do mesmo ano. Presenciar este duplo confisco e suas consequências, certamente deve ter provocado reações bastante emocionais em Búnin, ainda que não faça elogios ao movimento original. Escreve ele:
 
“Como são iguais todas essas revoluções! Na época da Revolução Francesa, também foi criada uma montanha inteira de novas divisões administrativas, de imediato jorraram fluxos inteiros de decretos, circulares, um sem-número de uniões, comissários — por que, necessariamente, ‘comissários’? —, os partidos se multiplicaram feito praga, todo mundo ‘enchia o bucho devorando uns aos outros’, formou-se uma língua completamente específica, ‘em que se constituiria puramente numa balbúrdia de grandiloquentíssimas exclamações com os xingamentos mais chulos, devidamente endereçados aos restos das sombras imundas dessa tirania agonizante...’. Tudo isso se repete, antes de mais nada, porque um dos traços característicos da revolução é a sede alucinada de jogo, de histrionice, de pose e de teatro de feira. É o primata despertando no homem.’
 
 Os sentimentos bastante singelos que expõe em relação às notícias que vai reproduzindo, revelam sua condição de mero espectador dos fatos. Não é o perfil típico de um engajamento político-intelectual, sobretudo em um país como a Rússia. Naquele período, muitos escritores e artistas explicitamente expressavam seu apoio ao poder, elevando sua colaboração ativa com a máquina propagandista à categoria de uma missão divina (ou de sobrevivência).
 
Ivan Búnin odiava esse comportamento. Há em Dias Malditos várias referências a escritores bastante conhecidos. Sobre Vladímir Maiakóvski, a quem encontra num banquete, escreve:
 
“Eu me sentava com Górki e o artista plástico finlandês Gallen. E Maiakóvski já começou vindo até nós sem nenhum convite, pôs a cadeira entre nós e começou a comer de nossos pratos e a beber de nossas taças. E Gallen, de olhos arregalados, olhando-o como provavelmente olharia um cavalo se o visse entrando naquele salão durante o banquete. E Górki às gargalhadas. Eu saí de perto. Maiakóvski percebeu. — Você me odeia muito, não? — ele me perguntou alegre. Eu, sem vergonha alguma, respondi que não, pois aquilo seria muita honra para ele. Ele já estava abrindo aquela bocarra de cocho para me perguntar algo mais, mas aí o ministro das Relações Exteriores se levantou para fazer um brinde e Maiakóvski correu para ele, lá para o meio da mesa.”
 
Ao retratar esse tipo de atitude, claramente quer se aludir à falta de educação e bom gosto como inerente aos apoiadores do regime. Porém, expõe também a truculência revolucionária, que se manifesta em todo e qualquer lugar. Demonstra assim, embora deixe claro o lado pelo qual torce, seu inconformismo com a possibilidade de, em nome de uma ideia, aceitar-se a violência, a injustiça e a anarquia. Os valores que se opõem a isso, para ele, estão acima de qualquer enfrentamento entre facções, de ódio ou violência política e ressentimentos entre classes.
 
Este é o relato de um homem obrigado a conviver com o mal e com sua face aterrorizante, a ameaça. Não há que se exigir deste homem a abstração baseada na razão, própria das distanciadas análises e teses produzidas muito tempo depois dos fatos. Antes de tudo, é um relato movido pela emoção de quem vê o mundo desmoronar ao redor e não acredita em nenhum tipo de utopia. De quem vê, em nome da liberdade, a própria liberdade se extinguir rapidamente.
 
A dificuldade deve ter sido ainda maior para uma pessoa que, antes desses fatos, vivia desesperançada pelos rumos que a vida (em particular, a vida russa) tomava. Incluo aí as típicas resistências à própria incompreensão da transformação exterior, vista como a dificuldade em aceitar transições profundas do meio, tanto em sentido físico, quanto moral. Para contemplar essa condição, veja-se o movimento contrário acontecido na própria Rússia, 70 anos depois, com a queda do regime soviético. Para isso, o belo livro de Svetlana Aleksiévitch, O fim do homem soviético, é perfeito.
 
Hoje é difícil entender esse sentimento, que será considerado um anacronismo. Vivemos numa época em que a desilusão é uma condição idealizada e uma qualidade muito apreciada, sobretudo num ambiente artificial de constantes atualidades. Ultrajado e despojado de tudo, o que restou a Búnin foi observar e analisar. No velho estilo dos breviários, as notas que compõem este livro funcionam como uma ferramenta para o desespero de quem reage ao insuportável da realidade e também ao ódio que lhe despertava diariamente a Revolução e seus revolucionários.
 
Para completar o quadro de amargura, havia também a espera.
 
Existem diversas menções à chegada dos alemães, que afinal nunca chegaram (em outros momentos, seria o exército branco que representaria esta ilusão). É uma expectativa reiterada nas anotações e era a que estava à mão naquele momento. Os inimigos chegariam como libertadores. Os bolcheviques eram novatos no jogo de interesses das potências europeias e não se encaixavam nas alianças do Império czarista. Assim, além de divulgarem informações sigilosas com o intuito de destruir a imagem dos aliados, não sentiram pesar em assinar o humilhante Tratado de Brest-Litovski. Aliás, historiadores modernos defendem ter sido o próprio exército alemão quem enviou Lênin de volta a Petrogrado para minar o esforço de guerra russo e garantir assim o incremento de seu poderio bélico na frente oeste. Por óbvio, conquistado o objetivo, não tinham interesse em terminar com seu governo.
 
Tais expectativas são as mesmas dos grandes romances de espera de Buzzati e Coetzee: algo que se faz existir apenas como ideia, mas que domina vidas e o tempo.
 
Havia, como derradeiro esforço, a literatura para vir em socorro:
 
“A vida é uma espera incessante (como durante todo o último inverno, aqui em Odessa, e todo o inverno anterior, em Moscou, quando todos esperavam os alemães na expectativa de serem salvos por eles). E essa espera por algo que já, já está chegando e que vai decidir tudo é ininterrupta e invariavelmente inútil e, claro, não vai passar assim, não, sem aleijar nossa alma, mesmo se sobrevivermos. E, diante disso tudo, o que seria se não houvesse a espera, ou seja, a esperança?”
 
Mas a literatura não sobreviveria naquele mundo. Era preciso, portanto, ir embora. Para longe. E assim, foi com sua esposa Vera e, como seus personagens, carregando grandes silêncios.
 
Para um russo com alma do século XIX não há nada mais difícil do que seguir para o estrangeiro e deixar para trás aquela vida, tal qual retratado no conto “Hora Tardia”, de 1938:
 
“‘Ah! Como já faz tempo que eu estive lá’, disse comigo. Desde meus dezenove anos. Então, morava na Rússia, sentia-a como minha, tinha plena liberdade de transitar aonde quer que fosse, e percorrer, fossem trezentas verstas, não era tarefa difícil. E eu nunca ia, sempre adiava. E anos, decênios correram e passaram. Já é impossível adiar mais: ou é agora, ou nunca. É necessário aproveitar esta única e última ocasião, uma vez que a hora é tardia e ninguém me encontrará.”
 
Isso deveria lhe despertar pensamentos terríveis, como este:
 
“Ah, esses sonhos com a morte! Que lugar enorme a morte ocupa em nossa tão absolutamente minúscula existência! Já não há o que dizer sobre esses anos: dia e noite, vivemos numa orgia de morte. E tudo em nome de um ‘futuro brilhante’ que, parece, deveria nascer justamente dessas trevas diabólicas.”
 
Uma obra primordial para dias malditos.

______
Dias malditos
Ivan Búnin 
Márcia Vinha (Trad.)
Carambaia, 2023
212 p.

Bibliografia
 
ALEKSIÉVITCH, Svetlana. O fim do homem soviético. Trad. Lucas Simone. São Paulo: Companhia das Letras, 2016.
BÚNIN, Ivan. Alamedas Escuras. Trad. Nina Guerra e Felipe Guerra. Alfragide: Publicações Dom Quixote, 2020.
BÚNIN, Ivan. Contos escolhidos. Trad. Márcia Pileggi Vinha. Barueri: Manole, 2014.
BÚNIN, Ivan. Dias malditos. Trad. Márcia Vinha. São Paulo: Carambaia, 2023.
BÚNIN, Ivan. The Village. Trad. Isabel Florence Hapgood. EUA: Project Gutenberg (ebook), 2019.
CARPEAUX, Otto Maria. A literatura russa através dos contos: Ensaio Crítico. Curitiba: Karpfen, 2020. v. 2.
CARPEAUX, Otto Maria. Para compreender Tolstoi e outros. Curitiba: Karpfen, 2021. v. 2.
FIGES, Orlando. A tragédia de um povo: a revolução russa 1891-1924. Trad. Valéria Rodrigues. Rio de Janeiro: Record, 1999.
 
 

Comentários

AS MAIS LIDAS DA SEMANA

A poesia de Antonio Cicero

Boletim Letras 360º #610

Boletim Letras 360º #601

Seis poemas de Rabindranath Tagore

16 + 2 romances de formação que devemos ler

Mortes de intelectual