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Mostrando postagens de janeiro, 2024

“Pobres criaturas”: ânsias de liberdade (e sexo)

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Por Ernesto Diezmartínez Perto da última parte de Pobres criaturas (Reino Unido, Estados Unidos, Irlanda, 2023), sétimo longa-metragem da bandeira da rara onda grega Yorgos Lanthimos, o advogado bon vivant Duncan Wedderburn (Mark Ruffalo) reivindica sua amante Bella Baxter (Emma Stone) em processo de emancipação que desde algum tempo se torna leitora, deixou de ser engraçada e não fala mais da inusual maneira que fazia antes. Bella levanta os olhos de um livro de Emerson e, tal como uma Diógenes feminina, pede que Duncan se afaste porque está bloqueando a luz do sol.   Quando chegamos a este momento do filme vencedor do Leão de Ouro 2023 em Veneza, a história, livremente inspirada no romance de mesmo título do escritor escocês Alasdair Gray (1934-2019), o filme se transformou de uma espécie de versão feminista de Frankenstein ou o Prometeu moderno (1818) em uma alegre e transbordante apropriação sexual das Aventuras de Alice no país das maravilhas (1865). Na verdade, Pobres criatu

Klaus Mann

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Por Christopher Domínguez Michael Klaus Mann. Foto: Annemarie Schwarzenbach Klaus Mann, o filho mais velho de Thomas Mann, suicidou-se em Cannes, em 21 de maio de 1949, colocando o fim a uma vida sufocante iniciada em 1906. Ele deixou um artigo testamentário, publicado um mês depois na revista estadunidense Tomorrow . Do além-túmulo, Klaus exigia “uma onda de suicídios em que caíssem os espíritos mais proeminentes e célebres, [que] arrancaria as pessoas de sua letargia, para que compreendessem a gravidade mortal da provação que o homem causou sobre ele mesmo por sua tolice e egoísmo.”   Um quarto de século antes de Passolini, Klaus Mann foi vítima de uma “morte política”, sendo, de forma brutal ou negligente, o “morto pela sociedade”, como diria Artaud. O primeiro a rejeitar esta leitura foi Thomas, seu pai: “Não há dúvida de que foram motivos pessoais que o levaram à morte, e que não morreu para se apresentar teatralmente como uma vítima do seu tempo. Embora fosse, e muito.”   O que m

Colm Tóibín, orgulho e preconceitos

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Por Alejandro Luque Colm Tóibín. Foto: Suzie Howell    Pátria, família, religião e sexo são os territórios por onde transita o escritor irlandês Colm Tóibín, que muito cedo descobriu que a Irlanda não era apenas uma referência geográfica, mas uma forma de ser.   A cena se passa em Estocolmo, numa noite de primavera. Um jovem escritor espanhol que promove um dos seus romances traduzido para o sueco é convidado para um jantar com autoridades e acadêmicos no suntuoso salão Blå da Câmara Municipal, aquela Sala Azul que à primeira vista não tem nada de azul. Senta-se ao lado dele um certo escritor irlandês de quem ouviu falar vagamente, e eles imediatamente se simpatizam. Seu acento inglês lhe parece terrível, mal consegue entendê-lo em meio ao barulho das conversas, brindes e tilintar de talheres. Felizmente, descobre que o sujeito se defende perfeitamente em espanhol, é esperto e engraçado. A certa altura, embriagados pelo vinho dinamarquês, os dois autores levantam-se ao mesmo tempo par

Cinco poemas de “O Falcão à Chuva”, de Ted Hughes

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Por Pedro Belo Clara Ted Hughes. Foto: Jane Brown   O FALCÃO À CHUVA   Afogo-me nas terras de cultivo, a chuva nelas martelando, Elevo os passos da terrena boca que me engole, Do barro que me prende até ao tornozelo Ao jeito dum túmulo obstinado, mas o falcão     Sem esforço nas alturas fixa o olhar sereno.   As suas asas amparam toda a criação numa quietude sem peso, Firme como alucinação no ar que voga. Enquanto o vento golpeante mata as sebes persistentes,   As rajadas como polegares contra os meus olhos, cortando a respiração, desordenando          [o coração, E a chuva macera a minha cabeça até ao osso, o falcão permanece, Uma força de vontade dura como diamante, qual estrela polar Guiando a resistência do náufrago: e eu,   Sangrando, puxado, atordoado, esperando os instantes finais, Um mero pedaço sobre esta boca terrena, persistindo na direcção do mestre, Fulcro da violência onde o falcão sereno permanece. Talvez, a seu tempo, encontre-se com uma intempérie   Vinda da direc

Boletim Letras 360º #568

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DO EDITOR   Olá, leitores! O blog regressou sua programação normal nesta semana. E além das publicações diárias, este boletim volta com as seções já conhecidas.   Durante a semana, foi anunciada em nossas redes a chamada para novos colunistas.   O Letras procura bons leitores que escrevam sobre livros (ficção, poesia, teatro), filmes ou assuntos intrinsecamente ligados ao universo literário.   Se você possui este perfil e quer se juntar a este projeto, atenção para as informações a seguir:   - você precisa enviar através do e-mail blogletras@yahoo.com.br até o dia 16 de fevereiro de 2024, um resumo biográfico e três textos inéditos;   - para saber como organizar os seus textos e mesmo conhecer um pouco da linha editorial do Letras , é importante acessar e ler as informações disponíveis aqui ;   - se restar qualquer dúvida, basta escrever para o e-mail referido ou nos procurar na DM das nossas redes sociais: no Twitter, Facebook ou Instagram.   Sua inscrição é muito bem-vinda!    Jo

De quanta terra precisa um homem?

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Por Guilherme França Iliá Répin. Tolstói em um campo arado, 1887   Que a literatura seja o método mais fidedigno de retratar — e quiçá compreender — a essência humana, não é novidade para mim e para tantos outros, embora a afirmação contenha, de fato, pequena margem de subjetividade. Além de retratar e problematizar aspectos cruciais de nosso agir enquanto indivíduos, não raro a literatura amplia o seu raio de incidência e faz o mesmo diante de questões sociais, políticas, religiosas etc. E escritores como Liev Tolstói fazem com que, por vezes, todos esses elementos estejam em uma mesma obra.   De outro lado, embora enredos como os de Guerra e Paz ou Anna Kariênina demonstrem com facilidade a lógica desse argumento, como disse em meu texto sobre Tchekhov, o bom escritor deve saber causar impacto em seu leitor mesmo com um texto curto. E o conto “De quanta terra precisa um homem?”, escrito por Tolstói e publicado pela primeira vez em 1886, nos mostra, mais uma vez, que isso é bem pos