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Frame de O pecado, de Andrei Konchalovsky. |
Antigamente, quando existia
quantidades apreciáveis de um cinema religioso e voltado aos valores humanos,
com o seu próprio festival (em Valladolid), os seus prêmios, as suas
reivindicações e até as suas insinuações de censura governamental, apesar da
bênção ou
nihil obstat do bispado, os jovens , que havíamos perdido a fé
em grande parte graças ao cinema então descoberto ano após ano, não tínhamos
escrúpulos em deixar-nos ver saindo da sala de exibição de um filme santificante
de Bresson; a consumada arte de Bresson estava para nós acima dos seus padres
rurais e dos seus santos em comunhão com Deus, mas o formidável Ricardo Muñoz
Suay, homem de cinema, roteirista (de, entre outros,
O momento da verdade
de Francesco Rosi), bem como o incentivador e coprodutor de
Viridiana,
obra-prima de seu grande amigo Luis Buñuel, nos repreendia zombeteiramente,
como se quisesse apagar dos nossos oculozinhos de estudante as imagens
redentoras do cineasta francês, que para Ricardo, então comunista convicto,
representava o cinema em sua mais mefítica personificação sagrada.
Schrader: de seminarista a rato
de cinema
Lembrei-me, por uma associação de
ideias talvez ainda devedora daquelas cruzadas anti-cristãs e anti-bressonianas
de Muñoz Suay, de outro exemplo de radicalidade e sacerdócio que tem o cinema
como pano de fundo, neste caso indo ou não para o cinema. Nascido três meses
antes de mim, mas morando no estado de Michigan, Paul Schrader não pôde pisar
em nenhum lugar onde fossem projetados filmes até atingir a maioridade, época
em que o jovem, após deixar o seminário onde havia cursado obrigatoriamente sua
primary school, iniciou voluntariamente o ensino superior na Califórnia,
ao mesmo tempo que colocava um fim ao veto rigidamente imposto pelos seus pais,
praticantes de um credo extremo da religião calvinista, segundo a qual todos os
membros de todas as famílias estavam proibidos do entretenimento prejudicial
que vinha de Hollywood para os lares estadunidenses.
Eu, sem qualquer constrangimento
prévio em Alicante (que na época da minha adolescência chegou a contar com nove
salas de cinema, agora desaparecidas), e Paul Schrader em São Francisco e na
sua cidade natal, Grand Rapids, às escondidas, convertemo-nos à religião da
Sétima Arte, praticada por nós com certa radicalidade; a minha não é relevante
aqui, sendo pelo contrário uma bela e misteriosa página da história do cinema
contemporâneo, a mutação de Schrader seminarista ao Schrader
film buff,
como dizemos em inglês coloquial, o que, mais apegados à língua pátria,
chamamos de ratos de cinema; eu sou um deles e este excelente cineasta e
escritor de cinema, da maneira mais imponente e produtiva, porque soube
transmitir doutrina moral sem pregar desde quando começou o seu trabalho
cinematográfico em 1978 com
Vivendo na corda bamba.
Dessa fase paterno-sectária,
Schrader ficou com o gosto por uma liturgia nada católica, bastante seca e,
ouso dizer, jansenista, embora seja verdade que tal fixação obrigatória e as
suas dores permitam ao espectador ser imparcial para religiões, mas um
paroquiano da arte schraderiana, um jogo quase obsceno de enigmas ou
conspirações: qual foi a salvação de seu
Mishima (1984)? Será que a
filha fugitiva do pai calvinista que a procura nos lugares do vício em
Hardcore
(1978) gostava de pornografia? E
No coração da escuridão (2017) o
reverendo é mesmo tão reverendo?
Agora, depois de um período
irregular que nos fez desejar o roteirista de obras-primas como
Trágica
obsessão, de Brian de Palma,
Taxi Driver e
Rolling Thunder,
de Scorsese, e das obras de maior sucesso escritas e dirigidas por ele mesmo (
Hardcore:
no submundo do sexo), Schrader abordou o que parece ser uma trilogia da
alma contemplada através dos ofícios, os menos banais que se conhecem: o
ministério sagrado, do já citado
No coração da escuridão;
O contador
de cartas, situado no mundo do jogo e do cassino, e dos jardins, alguns com
caminho bifurcado, ou metafórico, no seu último até agora,
Master Gardner,
no qual uma meia hora de desequilibrado desenlace o priva de ser o grande
trabalho da maturidade deste mestre do cinema.
Se nos seus dois títulos
anteriores,
No coração da escuridão e
O contador de cartas,
a metáfora geral prestava uma homenagem excessivamente mimética ao cinema do
grande Bresson, aquele que Suay insultava e nós, nos nossos povoados e cidades
provincianas, colocávamos no altar-mor,
Master Gardner retrata dois
personagens que fazem o bem, mas foram ou ainda são potencialmente grandes ímpios;
ambos, Narvel Roth (Joel Egerton) e Norma Haverhill (uma muito inspirada
Sigourney Weaver), reprimem a confusão floral de seus alunos de jardinagem,
mostrando-se como punidores intolerantes naquele paraíso falso dos jardins de
Haverhill que a mulher, Norma, herdou e governa com mão firme enquanto esconde
em seu quarto, obedecida por seu subordinado Narvel, os surtos de libertinagem.
E nos canteiros, as flores primorosamente podadas cobrem a natureza podre desse
gentil mestre dos jardins com um passado cheio de culpa. É, portanto,
lamentável entrar nesse inferno de belos demônios de um veneno banal, o
submundo das drogas e seus traficantes, que embota um pouco a veia poética
desta história original.
Konchalovski, retratista do
pecado de Michelangelo
Uma massa arrancada de uma
montanha é o
mcguffin de
O pecado, uma das parábolas mais
sugestivas de Andrei Konchalovsky, por sua vez um dos cineastas mais
frontalmente políticos do Leste Europeu; muitos no seu país insultam-no por ser
muitas vezes, dizem, o rapsodo do regime, embora outros o salvem na mesma
ambiguidade. A verdade é que, seja ou não um publicitário disfarçado de
Vladimir Putin, o (relativo) sucesso de
Caros Camaradas (2020), a sua
poderosa crônica dos caprichos de um líder comunista confrontado com um
massacre de trabalhadores em greve levado a cabo na cidade russa de Novocherkassk,
nos tempos da URSS de Nikita Khrushchov, levou os distribuidores a também lançar
o seu anterior,
O pecado: uma brilhante coprodução ítalo-russa e um dos
melhores filmes que vi em 2019.
O pecado conta sem
grandiloquência os episódios históricos, tão novelescos, da construção do
túmulo do Papa Julio II, em que Michelangelo perde e ganha fama, uma vez que a
posteridade das massas é alcançada por outra obra de seu gênio, os afrescos da
Capela Sistina, mais acessível, mesmo nas suas alturas insondáveis, do que o
mausoléu papal, que oferece na natureza inacabada dos seus
Escravos
esculpidos a bênção enigmática do incompleto. Com modos cinematográficos por
vezes inspirados na
Trilogia (
Decameron,
Os contos de
Canterbury,
As mil e uma noites) de Pasolini, outro grande criador
motivado pelo conflito entre o dogma e a liberdade, entre a crença e a luxúria,
O pecado fala de um religioso corrupto e venal, em que embora o pecado
esteja tão difundido neste contexto e neste confronto entre as duas famílias,
os Della Rovere e os Medici, resulta difícil saber contra que deus ou que clã
se defende o grande escultor, pintor e arquiteto nascido perto de Arezzo.
Neste episódio crucial da história
da arte, Michelangelo Buonarroti peca com o orgulho, a luxúria (apenas mostrada
no seu aspecto sodomita pelo cineasta russo), a duplicidade e o engano aos
papas, ou o pecado escondido na sua massa de mármore é apenas um exemplo
emocionante de
húbris? A de Buonarroti, muito bem defendida nas telas
pelo ator Alberto Testone, e pelo próprio Andrei Konchalovsky, aqui autor de
uma cinebiografia que atrai o espectador sem as concessões do habitual
melodrama biográfico.
Pálmason e a frialdade da religião
É curioso que os três visionários
que protagonizam os três filmes religiosos de que falo aqui sejam tão
redentores e tão hostis, e até mesmo tão fisicamente rudes, dois deles (Testone
e o para mim desconhecido ator islandês de
Terra de Deus). Este terceiro
filme que comentamos e que representará a Islândia no próximo Oscar é tão
cativante quanto sombrio; o jardim fértil e a pedra de mármore são seguidos da
neve infinita, enquanto o diretor Hlynur Pálmason narra a longa jornada de um eclesiástico
que atravessa a Islândia para carregar o modelo de uma igreja que deseja
construir nas geleiras da ilha. Não há enredo propriamente dito em
Terra de Deus;
apenas um enfrentamento difícil de ler e uma paisagem limpa e tranquila: talvez
o mandamento de uma religião que não proíbe e é apenas dura e gélida.
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