Seis poemas de Adam Zagajewski

Por Pedro Belo Clara


Adam Zagajewski. Foto:  Tomasz Wiech


 

NÃO DEIXES QUE O LÚCIDO MOMENTO SE DISSOLVA
 
Não deixes que o lúcido momento se dissolva
Que o radiante pensamento perdure na quietude
embora a página esteja quase cheia e a chama trémula
Não atingimos ainda o nível de nós próprios
O conhecimento cresce lentamente como um dente do siso
A estatura de um homem tem ainda uma incisura
lá no alto numa porta branca
De longe chega a voz alegre de um trompete
e uma canção enrolada como um gato
O que passa não cai no vazio
Um fogueiro alimenta com carvão o fogo
Não deixes que o lúcido momento se dissolva
numa substância dura e seca
Tens a obrigação de gravar a verdade
 
 
 
NA BELEZA CRIADA PELOS OUTROS
 
Só na beleza criada pelos outros
existe consolação, na música
e nos poemas dos outros
Só os outros nos podem salvar,
mesmo que a solidão tenha o sabor
do ópio. Não são o inferno, os outros,
se os espreitarmos de manhã, quando
têm a testa limpa, lavada pelos sonhos.
Por isso cismo muito sobre a palavra
que hei-de usar, «ele» ou «tu». Cada «ele»
é uma traição a qualquer «tu», mas,
em troca, um poema de alguém fielmente
oferece uma fresca, moderada conversa.
 
 
 
EM MAIO
 
Enquanto passeava pelo bosque, ao alvorecer, em Maio,
perguntava onde é que estais, almas dos mortos, vós jovens
desaparecidos, onde estais, vós completamente
transformados?
Um grande silêncio reinava no bosque
e ouvia as folhas verdes a sonharem,
ouvia os sonhos da casca das árvores, das quais hão-de surgir
barcos, navios e velas.
A seguir, devagarinho, começaram a falar para fora
os pássaros, os pintassilgos, os tordos e os melros escondidos
nas varandas dos ramos; cada um deles falava à sua maneira,
com a sua própria voz, não pedindo nada, sem
amargura e sem arrependimento.
E percebi que estais no canto,
inapreensíveis como a música, indiferentes como
notas musicais, tão distantes
como nós de nós próprios.
 
 
 
O EU
 
É pequeno e invisível como os grilos
em Agosto. Gosta de fantasiar e mascarar,
como todos os anões. Mora entre
blocos de granito, entre verdades
prestáveis. Cabe até sob um
penso, sob uma venda. Não o encontrarão
os funcionários da alfândega nem os seus belos cães. Entre
hinos, entre alianças, esconde-se o eu.
Acampa nas Montanhas Rochosas do crânio.
Eterno fugitivo. Ele é eu próprio e eu
estou nele com a temerosa esperança de que finalmente
tenha encontrado um verdadeiro amigo. Mas ele
é solitário, tão desconfiado, não
aceita ninguém, nem a mim.
Adere aos acontecimentos históricos
como a água ao copo.
Poder-se-ia encher com ele uma jarra do neolítico.
É insaciável, quer fluir
por aquedutos, tem sede de vasos cada vez mais novos.
Quer saborear um espaço sem paredes,
difundir-se, difundir. Depois desaparece,
como o desejo, e no silêncio duma noite
de Agosto a única coisa que se consegue ouvir é a paciente
conversa dos grilos com as estrelas.
 
 
 
ANTIGAMENTE
 
Antigamente conseguíamos acreditar nas coisas
invisíveis, nas sombras e nas sombras delas,
numa luz escura e rósea como uma pálpebra.
Ah, as mandíbulas da máquina fotográfica
mordem as imagens. Conseguimos acreditar agora
só no antigamente, exactamente como o pobre
antigamente acreditava em nós, netos e bisnetos,
sonhando que um dia viríamos a sair da armadilha que
em cada geração encenam Danton
e Robespierre, Beria e outros ambiciosos
discípulos. Uma vez que não há refúgio,
há refúgio. Porque as coisas invisíveis
também existem, com sons
que ninguém ouve. Não há
consolação e há consolação, sob o
cotovelo do desejo, lá onde cresceriam
pérolas, se as lágrimas fossem dotadas de memória.
E contudo o patinador não perde o equilíbrio,
saindo às arrecuas do precipício. Contudo
tanto a alvorada como o leiteiro se levantam cedo
e correm na neve, deixando brancas pegadas,
que se enchem de água. Um pequeno pássaro bebe essa água
e canta e mais uma vez
salva a desordem das coisas e a ti e a mim
e ao próprio canto.
 
 
CONVERSA COM FRIEDRICH NIETZSCHE
 
Excelentíssimo Senhor Friedrich
tenho a impressão de estar a ver agora o senhor,
no terraço do sanatório, ao amanhecer,
com o nevoeiro a cair e o canto a rebentar
nas gargantas dos pássaros.
 
Não muito alto, a cabeça como um projétil,
o senhor está a escrever um novo livro
e uma estranha energia flui de si:
parece que vejo os seus pensamentos como se fossem
grandes exércitos em parada.
 
O senhor sabe que morreu a morena Anne Frank
e os seus colegas de escola e amigos, rapazes e raparigas,
os coetâneos, e as amigas dos seus amigos
e os seus primos.
 
Quero perguntar-lhe o que é que são as palavras, o que é
a claridade, porque é que as palavras continuam a queimar
passados cem anos, embora a terra
seja tão pesada.
 
É óbvio que não existe nexo entre a iluminação
e a obscura dor da crueldade.
Existem pelo menos dois reinos,
mas é possível que haja ainda mais.
 
No caso, porém, de não haver Deus e de nenhuma força
estabelecer conexões entre elementos antagónicos,
o que é que são então as palavras e qual é a origem
da sua luz interior?
 
E qual a origem da alegria? E qual o destino do nada?
Qual a morada do perdão?
Porque é que os sonhos pequenos se dissipam ao chegar o dia
enquanto os grandes continuam a crescer?
 
 
Ligações a esta post:
>>> Pedro Belo Clara apresentou uma primeira seleção de poemas Adam Zagajewski e nota biográfica 
 

* Traduções de Marco Bruno, com revisão de Jorge Sousa Braga, em Sombras de Sombras (Edições Tinta da China, Novembro de 2017.)

Comentários

AS MAIS LIDAS DA SEMANA

A poesia de Antonio Cicero

Boletim Letras 360º #610

Boletim Letras 360º #601

Seis poemas de Rabindranath Tagore

Mortes de intelectual

16 + 2 romances de formação que devemos ler