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Saul Bellow. Foto: Eddie Adams |
Se Saul Bellow tivesse escrito
Jerusalém,
ida e volta antes de 1967, o livro teria pertencido ao antigo e
ultrapassado gênero de livros de viagem e gravuras. O que um escritor judeu,
intimamente comprometido com a causa de Israel e influente nos Estados Unidos, devia
descrever entre 1948 e 1967, não estava nas ideias e atitudes políticas dos
israelitas, mas na obra material e social que estes construíram com velocidade
e sucesso incomuns. Era preciso ver os
kibutzim, as novas técnicas
agrícolas e de irrigação, a educação dada aos imigrantes, os achados
arqueológicos, o florescimento coloquial e literário da língua hebraica e até
das danças. Assim eram os livros pedagógicos que Israel à Diáspora, repletos de
imagens quase elegíacas: a colheita num
kibutz, o sorriso de uma
sabra
e a marcialidade de um exército formado também por mulheres, mas que não parecia
estar educado unicamente para a guerra. Israel era uma fotografia.
Se Bellow tivesse escrito
Jerusalém,
ida e volta entre 1967 e 1973, seu tema principal não teria mais sido a
obra material, mas o despertar da guerra. Na verdade, Bellow visitou Israel em
1967 e contemplou a horrenda superlotação de cadáveres no Sinai: a embriaguez
que tomou conta de muitos israelenses depois da fulminante vitória, e a
conversão daquele país, que desde a sua fundação parecia uma utopia socialista,
num estado quase militar. Israel pareceu, durante alguns anos, a imagem do seu
exército.
Mas
Jerusalém, ida e volta foi
escrito em 1976, três anos depois da Guerra do Yom Kippur, que os futuros
historiadores certamente reconhecerão como um momento crucial na segunda metade
do século XX. O boicote ao petróleo, a crise energética e as suas derivações
ideológicas (as novas profecias sobre a decadência do Ocidente), a inflação
mundial e muitas outras “notícias” foram uma consequência direta dessa guerra
que lançou Israel na arena internacional, numa medida muito maior e mais
comprometida do que conhecera em toda a sua história. Em 1976, quando Bellow
visitou Jerusalém, Israel já não era apenas ou mesmo principalmente o seu
trabalho de construção ou o seu exército, mas sim um tecido muito complexo de
atitudes políticas em relação ao mundo, aos seus vizinhos, aos palestinos e a
si próprio: um laboratório humano.
Bellow conversa com professores,
intelectuais, jornalistas, ex-combatentes, profissionais liberais, barbeiros,
médicos, poetas e políticos judeus. A sua intenção é recolher uma impressão
pessoal (
A Personal Account é o subtítulo do livro) de como os
israelitas vivem no fio da navalha, para aprender diferentes pontos de vista
sobre a crise interna e internacional que enfrentam. Em Jerusalém, todos estão
atualizados, no centro da informação política internacional. As conversas sobre
jardins no deserto foram substituídas por opiniões sobre a última medida de
Kissinger, o editorial do
Le Monde ou a viagem de Anwar Sadat aos
Estados Unidos. O israelita tinha pensado em construir um mundo separado,
agarrando-se à única coisa que lhe tinha sido proibida durante milênios, a
terra, e agora descobre, paradoxalmente, que na era nuclear os guetos mudaram
de escala e existem entre nações. Nas palavras de um dos entrevistados de
Bellow, Israel é agora um “Estado gueto” seriamente ameaçado na sua própria
existência: ao mesmo tempo isolado e envolvido na vida internacional.
Jerusalém, ida e volta move-se
em vários níveis de observação: do cotidiano ao internacional. Bellow fica
surpreso com a normalidade que reflete a vida cotidiana do israelense, apesar
da tensão que suporta. A memória de uma bomba num mercado; um ataque terrorista
a um kibutz; as cenas televisivas da guerra civil no Líbano, alguns quilômetros
ao norte, onde milhares de vidas são sacrificadas por razões religiosas e
políticas semelhantes às que poderão eclodir em Israel no futuro. Tudo isso
impressiona Bellow quase ao ponto da paranoia: a mera visão de uma criança
andando de bicicleta despreocupadamente pelas ruas da cidade o impressiona:
para ele, todas as terras estão minadas.
Nenhum dos seus interlocutores
pratica a “
small talk”: todos estão seriamente preocupados com a
situação, mas sem chegar à irracionalidade e à histeria. Bellow, por outro
lado, não pode deixar de se abandonar ao torvelinho: o rastro da morte atingiu
todas as casas desde 1973; quem não perdeu um filho, perdeu marido ou irmão; novas
especialidades psiquiátricas nascem para reparar, na medida do possível (em
troca de quê?) essas perdas. A história parece suspensa e Bellow vê todos no
mesmo ato de sobreviver. “Não sei”, escreve ele, “como eles podem tolerar
isso”.
Esta desconcertante normalidade na
incerteza que os israelitas toleram preocupa mais Bellow quando considera as
mudanças que o cenário internacional sofreu desde 1973. Os sinais de
incompreensão entre Israel e os Estados Unidos parecem-lhe ser crescentes. O
pacto inicial começa a ruir, pelo menos em amplos setores da opinião pública estadunidense
que começaram a considerar de forma “realista” a relação de troca, o “
cost-benefit”
entre os dois países. Há quem defenda prazos peremptórios para que Israel seja
mais complacente com as propostas estadunidenses, para que de uma vez por todas
ponha “a sua casa em ordem” e aceite o seu caráter de satélite americano.
A estes sinais sinistros (que
Bellow talvez amplifica mais do que o necessário) acrescenta-se o descrédito
quase unânime de Israel aos olhos da opinião de esquerda no Ocidente. Os mesmos
intelectuais que apoiaram a criação do novo Estado em 1948 veem agora Israel
como um Estado neofascista. Para Bellow, esta situação é explicada pelo
desprezo dos intelectuais de então pelos antigos valores liberais e
humanitários, pelo feitiço das utopias e ideologias e pela incapacidade de
analisar os problemas empiricamente. A situação de Levante não isenta,
evidentemente, os israelitas de culpa, mas também não permite que sejam
tratados como galantes e vilões. Em qualquer caso, escreve Bellow, Israel
tornou-se um “resort de veraneio moral”, um local nevrálgico da sensibilidade
moral do Ocidente, porque neste sentido, nas palavras de Sartre, “é necessário
exigir mais dos judeus em Israel do que de outros povos”.
Bellow não teve tempo de
contemplar a desunião, a corrupção e os pequenos
watergates que o
Partido Trabalhista sofreu antes da sua derrota em Maio de 1977. Ele foi capaz
de incorporar em seu livro breves entrevistas com líderes que, aos seus olhos,
eram indignos em comparação com os Pais Fundadores. A segunda geração supera as
roupagens da primeira. Bellow fala com Rabin e a conversa os decepciona
mutuamente. Se Rabin acredita que o conflito entre árabes e judeus desaparecerá
quando estes se modernizarem, Bellow dá o exemplo do Líbano, para mostrar como
a modernidade leva ao dogmatismo político em vez da tolerância; se Rabin prevê
que tudo será resolvido pelas novas fontes de energia que o Ocidente
desenvolverá, Bellow pensa que o processo levará décadas, pelo menos; se Rabin
acredita que a animosidade da opinião internacional é uma questão de
importância secundária, Bellow pensa que Rabin é um provinciano.
À difícil situação de negociação
moral e política, de apoio sem indignidade que Israel procura com os Estados
Unidos; ao descrédito que sofre pela opinião internacional e pela falta de
líderes, Bellow acrescenta nuvens teóricas que obscurecem definitivamente o
panorama. Um editorialista israelita acredita que a guerra e a vitória de 1967
causaram danos irreparáveis a Israel: empurraram-no para o “autismo”,
tiraram-lhe a realidade. Da mentalidade sensata dos antigos sionistas que viam
Israel como um refúgio da perseguição milenar, Israel passou para a mentalidade
de libertação e resgate, para o desejo de redimir as terras. O efêmero poder os
intoxicou e a vingança da realidade seria ainda mais amarga. Outro israelita
melancólico acredita ver na nova situação a mão providencial, o castigo divino,
e como um novo Jeremias sustenta que “Israel pecou demasiado, corrompeu-se,
perdeu o seu capital moral e já não tem nada com que lutar”. Comovido, Bellow
lamenta o imaginário dos judeus da Diáspora que ainda acreditam que Israel
será, muito em breve, o restaurador da civilização sonhada pelos profetas. Ao
longo de sua jornada, ele deixa apenas duas pequenas brechas abertas à fé: a
atividade do Instituto Weitzman o encoraja um pouco e o talento político e
modernizador do prefeito de Jerusalém, Teddy Kollek, faz-lhe esperar que a
cidade santa não acabe como a Roma de Nero.
Bellow aceita — não poderia ser de
outra forma — a enorme complexidade política, social e económica do problema
palestiniano. O infortúnio de Israel foi nascer quando não havia mais
territórios vagos no mundo e a Palestina não era a exceção. Embora nunca o
diga, o escritor aceita implicitamente que o bem para Israel teve como origem o
mal para uma certa parte da população palestina, a parte deslocada. Aceita
também que a situação dos palestinos não pode permanecer a mesma por muito
tempo, inclusive por razões de segurança de Israel. Mas o mal cometido contra
os palestinos tem, para ele, vários fatores atenuantes: os palestinos venderam
as suas terras aos sionistas; os palestinos não demonstravam uma consciência
nacional particularmente definida, tal como parecem ter desenvolvido
ultimamente; os próprios países árabes parecem, por outro lado, pouco dispostos
a contribuir para a resolução do problema; em suma, para Bellow, o deslocamento
e a situação em que vivem os palestinos é um drama, mas menos grave e violento
do que outros que o mundo contempla em seu tempo e pelos quais a opinião
internacional mostra menos preocupação.
Bellow foi a Jerusalém para “ver
claramente”, como ele mesmo diz, e saiu mais confuso do que quando chegou.
Todas as teorias falham dada a acumulação de variáveis em jogo. No final, no
último estrato desse inferno latente, Bellow transcreve o discurso de homenagem
a um soldado sírio da guerra de 1973 que matou, sozinho, em combate, 28
israelitas. O orador erai o Ministro da Defesa sírio:
“Ele matou três deles com um
machado e os decapitou. Ou seja, em vez de usar uma arma, ele preferiu o
machado para degolá-los. Lutou cara a cara com um deles, jogou o machado no
chão e conseguiu quebrar o pescoço e devorar sua carne na frente dos
companheiros. Este é um caso único. Não preciso falar mais dele para lhe
entregar a Medalha da República. Qualquer soldado que repetir a façanha de
matar vinte e oito judeus receberá a Medalha e será honrado e apreciado por sua
bravura.”
O escritor pensa que algo muito
mais profundo do que os interesses comerciais ou políticos das grandes
potências é ventilado no Levante. Um ódio milenar. Israel é um pecado de origem
em terras árabes, um corpo estranho com o qual a coexistência e a comunicação
são impossíveis, um tumor que deve ser removido, um objetivo digno para uma
guerra santa. Diante desta situação, há judeus que decidem esquecer a lei e até
a política e confiar na força. Tendo em conta as últimas eleições pós-Levante,
constituem a maioria.
Em termos gerais, o livro é mais
uma reflexão pessoal do que um relatório objetivo. A normalidade que Bellow
percebe é provavelmente mais normal do que ele pensa. O inferno talvez seja
diferente para Dante e para seus habitantes. O desacordo de Israel com os
Estados Unidos parece mais remoto do que Bellow sugere, embora as coisas possam
mudar com a combinação de detonadores Carter-Beguin. Por outro lado, a sua
preocupação pela opinião pública internacional é inteiramente justificada: se,
como é verdade, o problema no Levante não se prestasse a tratamentos
maniqueístas, deveriam ser os próprios israelitas e os seus líderes políticos e
intelectuais a defender imaginativamente suas teses, mas são precisamente esses
líderes que faltam.
Bellow não pode ser — nem, de fato,
pretende ser — totalmente imparcial no que diz respeito ao problema palestino e
Israel. Todo judeu que enfrenta o problema deve explicar de antemão que está no
direito de ver a sua “parte” desse “todo” sem fingir que o “todo” é a sua
“parte”. Se Israel foi a única salvação para uma parte fundamental de um povo
em vias de extinção, o mal que resultou dessa salvação deve ser considerado
menor pelos sobreviventes. Os judeus defendem o seu direito histórico sobre
estas terras e o seu direito moral como uma espécie de compensação mínima que o
mundo cristão lhes devia após milênios de perseguição e do Holocausto. Os
árabes, por seu lado, ou os palestinos, no seu caso, recusam-se a pagar o preço
por um desastre que na verdade não causaram. Aqui a história e a moralidade são
incompatíveis e a única coisa sensata a fazer é estar consciente dos próprios
pressupostos e preconceitos, considerar a realidade tal como ela realmente se
apresenta e manobrá-la da forma menos inconveniente para ambas as frações.
A opinião de Bellow não pode ser
imparcial porque é a de um judeu europeu que não esqueceu a outra história
judaica deste século, a daquele outro corpo estrangeiro dentro da Europa que
foi completamente extirpado. A memória desse passado ilumina certas configurações
do presente. Às vezes, o escritor sugere, embora não os expresse, pensamentos
terríveis: talvez Israel não seja mais do que uma miragem, uma construção
febril e efêmera que os judeus tentaram opor à morte, como aquelas milhões de
árvores plantadas para resgatar simbolicamente o milhão crianças sacrificadas
por Hitler. O passado ressurge quando o presente o convoca. A história
aglomera-se, devolve e subtrai a realidade daquilo que parecia firme e
definitivo. Bellow está equivocado quando fala sobre o antigo ódio entre árabes
e judeus. É óbvio que, na história, o antissemitismo não foi árabe, mas sim cem
por cento cristão. Mas seus medos o levaram a isso. Israel pode ser — na
consciência dilacerada de um judeu europeu — apenas um segundo na outra
contabilidade que conta: o último e definitivo campo de concentração.
Jerusalém, ida e volta acaba
sendo um livro desolado. Como é possível que uma causa tão nobre como a
fundação de um Estado judeu tenha gerado tantos conflitos e dor? Após a Segunda
Guerra Mundial, Israel merecia ser a sociedade utópica sonhada pelos primeiros
sionistas. Mas a história não recompensa nem compensa: ela joga. Bellow tentou
iluminar a realidade e só encontrou paradoxos e trevas: daí o seu pessimismo.
Dada a falta de compreensão que é o sinal no Levante, os receios de Bellow não
parecem uma obsessão pessoal, mas sim um presságio justificado.
O olhar se funde com a realidade.
Pode-se explicar a atitude de tantos cientistas israelenses que optaram por
retornar à religião e abandonar uma responsabilidade que os homens não podem ou
não sabem assumir num responsável anterior. Em Deus.
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