Ricardo Piglia e o que fazer com desprolixidade do real

Por Flavio Lo Presti

Ricardo Piglia. Foto: Divulgação de 327 Cuadernos.


 
Quando Ricardo Piglia escreveu Respiração artificial era um jovem desencantado, num contexto assustador. Ele havia abandonado a revista Los Libros, ganhava a vida ministrando cursos particulares e tentava pensar numa questão que aparece obsessivamente na textura do romance: como narrar acontecimentos reais? Ao seu redor, Rodolfo Walsh e Haroldo Conti haviam desaparecido, e um aparato de censura tão difuso quanto ameaçador, filtrava as produções culturais, obrigando as pessoas a escreverem sem assinatura, ou com nomes falsos. Essa experiência se combina com uma sensação registrada literalmente no romance ora citado: a de escrever “porcaria”, o fracasso diante do mandato (não destinado por ninguém além dele mesmo) de ser escritor.
 
Com essa sensação, uma imagem começou a se transformar no germe do romance que foi inicialmente intitulado com um verso de Jorge Luis Borges, A prolixidade do real: a de um homem que, como o próprio Piglia, se tornou historiador e tenta passar o arquivo de um herói marginal (inspirado no secretário de Rosas, Enrique Lafuente) para seu sobrinho.
 
Existia aí uma combinação de história familiar e trajetória crítica. Piglia era um leitor intenso do formalismo russo (algo atestado por sua atividade como editor do selo Tiempo Contemporáneo) e uma frase “enigmática” do crítico Iuri Tyniánov reolhida em Respiração artificial “adorna” essa decisão do enredo: “a literatura passa de tio para sobrinho (e não de pais para filhos).
 
É claro que havia uma posição “indecisa” de Piglia no campo intelectual argentino na década de 1970. Além de seus livros de ficção (havia publicado dois volumes de contos), ele era um agente cultural multifacetado: editor, tradutor e crítico, tinha um ar de agente duplo que seus “rivais” literários continuaram a reprová-lo durante décadas, e isso (se olharmos as confissões de Emilio Renzi nos Diários) o colocava em posição de exigir gestos externos de permissão: é notável nesse sentido a cena em que Renzi lê uma discussão sobre Hernández e Martín Fierro em O arco-íris da gravidade, de Thomas Pynchon, e se sente “confirmada” em sua decisão de incorporar uma conversa literária no romance que está escrevendo.
 
A relutância em relação aos “procedimentos” de Piglia parece estranha, por outro lado, se considerarmos que Borges é o centro do cânone literário argentino. Em entrevistas, em seus ensaios sui generis, Piglia se encarregou de desmantelar aquela reivindicação efetiva e potencial de sua ficção, prenhe de crítica: o estopim do Boom parecia solicitar aos escritores argentinos que adotassem a narração direta dos acontecimentos sob alguma variante do realismo clássico. Mais tarde, um ar francês exigia uma escrita, na direção que Luis Gusman, Néstor Sánchez, Osvaldo Lamborghini pareciam tomar. Omnicompreensivo como crítico (escreveu o prólogo de El frasquito de Guzmán), Piglia pensou em outro caminho para sua ficção.
 
“Uma crítica materialista baseia-se no controle que, num campo que à primeira vista é tão espiritual, deve exercer a experiência concreta para evitar o risco da especulação idealista.” Este trecho do artigo “Notas sobre Brecht” (publicado na edição de março de 1975 de Los Libros) pode nos ajudar a pensar sobre a experiência do próprio Piglia no momento da escrita do romance: uma percentagem muito elevada das páginas do terceiro volume de Os Diários de Emilio Renzi dedica-se a considerar o que fazer com o dinheiro, como e de quem obtê-lo. Uma obsessão que parece ser um eco do inimaginável pesadelo artliano de sobrevivência.



Publicar na Pomaire, que fez a primeira edição de Respiração artificial, com um adiantamento de US$ 3 mil ou pedir US$ 5 mil? As dificuldades financeiras do jovem Piglia são inimagináveis ​​para o homem que na última década dava aulas muito disputadas ou falava de Borges na TV Pública, mas parecem ser a condição concreta (à margem da teoria) da facilidade com que se desprendeu de toda ilusão glorificante: um escritor era fundamentalmente um sujeito que tinha que comer.
 
Essas dificuldades fazem parte do clima do romance, desse clima que o torna fascinante para o jovem leitor, como foi o caso de Sobre heróis e tumbas (independentemente das diferenças de qualidade na escrita). Na verdade, Piglia tematiza a série literária em que coloca seu quase irônico Emilio Renzi relembrando seu parentesco com uma galeria de jovens estetas prestes a perder suas ilusões (Stephen Dedalus de James Joyce, Quentin Compson em William Faulkner e Jorge Malabia em Juan Carlos Onetti).
 
Mas também esta situação, somada à vocação de encontrar comprador no mercado (como diz a famosa citação de Walter Benjamin), também poderia explicar a opção por uma legibilidade que supere a montagem de materiais heterogêneo. A ficção paranoica de Pynchon, a estrutura da narrativa policialesca (um detalhe silenciado no cerne do texto), a prosa de Thomas Bernhard, a disposição de questionar a propriedade intelectual (“citações” disfarçadas, não declaradas de Joyce, de Walsh e Musil) que parece uma Leitura brechtiana dos jogos de Borges, um certo trabalho sobre a unidade dos opostos que se cruza com a figura do duplo.
 
Todo este coquetel sustenta uma história fácil de reconstruir: um homem maduro mas invicto quer compreender o país sinistro que o rodeia e deixa os seus trabalhos de investigação ao sobrinho antes de desaparecer. Quase todo o romance parece um grande McGuffin (a forma como Alfred Hitchcock chamou a estratégia do terror) para não ver que Piglia estava contando que na Argentina os moradores do bairro, os professores de história, desapareciam.
 
Talvez a sua melancolia — esse mundo de homens solitários, poloneses exilados que viram Joyce em Zurique e descobriram que Kafka conheceu Hitler e agora vivem em Concórdia a beberem gin, condes russos que andam como bonecos partidos, poetas provincianos que discutem em bares sobre Borges e se a obra de Arlt envelheceu — ficou desafinado, soa numa frequência que já não é a do século XXI.
 
No terceiro volume dos Diários, o próprio Renzi nos conta que o mundo em que o romance foi escrito não existe mais: “Terminou uma época em que uma realidade melhor era possível, uma época em que ele e seus amigos viviam numa sociedade paralela, um mundo próprio, estranho à corrente dominante da cultura argentina. (…) Agora éramos todos figurinhas num cenário de pobreza e tínhamos que jogar o jogo que dominava o mundo.” Quatro décadas depois, este diagnóstico sobre a sua própria derrota, sobre a pobreza do presente e a morte do mundo em que nasceu não parece afetar a validade literária de Respiração artificial.

Talvez a sua lição mais atual ainda esteja ligada à questão da forma como os acontecimentos são narrados. A resposta de Piglia, a de um caleidoscópio montado sobre o vazio, ficou flutuando como uma nova perplexidade: “Não sei como consegui escrever um romance sem ter enredo”.


______
Respiração artificial
Ricardo Piglia
Holoisa Jahn (Trad.)
Companhia das Letras, 2010
200 p. 


* Este texto é a tradução livre de Ricardo Piglia y qué hacer ante la desprolijidad de lo real, publicado aqui em Revista Ñ.
  

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