Por Marta Ailouti
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Marquês de Sade. Desenho de Charles Amédée Philippe van Loo, 1760 |
Todos os dias, das sete às dez da noite e à luz de velas, trancado na
sua cela na Torre da Liberdade da Bastilha, onde fora preso em 1784 como
castigo pela sua depravação, o Marquês de Sade dedicava todos os seus esforços para
escrever o que muitos mais tarde descreveram como o “Evangelho do Mal”,
Os
120 dias de Sodoma ou a escola da libertinagem, uma história sobre quatro
nobres e ricos degenerados que planejavam uma orgia de quatro meses com 32
subordinados, muitos adolescentes e sequestrados entre as classes mais baixas.
“Quando chegava ao fim de uma página”, diz o escritor e editor Joel
Warner, “ele colava outra logo abaixo para criar um pergaminho cada vez mais
longo. Depois de vinte e duas noites, virou o documento e continuou a escrever.
O resultado, após trinta e sete dias de trabalho, foi um rolo composto por
trinta e três folhas de papel coladas de uma ponta à outra, com apenas dez
centímetros de largura e quase doze metros de comprimento. Ambos os lados
estavam cheios de palavras — 157 mil no total — a letra do texto era tão pequena
que era quase ilegível sem uma lupa.
Porém, ao contrário de seu primeiro romance,
Aline e Valcour,
escrito durante o mesmo período e publicado em 1793, aquele manuscrito não
sofreu o mesmo destino. Abandonado na sua cela pelo seu criador durante a sua
fuga, pouco antes da Revolução Francesa, “o marquês passaria o resto da vida
pensando que tinha sido destruído, perdido para sempre no saque e na demolição
da Bastilha”. Nada mais distante da realidade.
Um tesouro preso na Bastilha
Em 2014,
Os 120 dias de Sodoma fazia parte da coleção de Gérard
Lhéritier, um popular negociante de manuscritos francês, autor de um suposto
esquema de pirâmide. Mas como é que este texto chegou às mãos deste empresário,
acusado de afundar a indústria antiquária francesa? Em seu livro
The Curse of
the Marquis de Sade (em tradução livre,
A maldição do Marquês de Sade),
Joel Warner tece uma curiosa jornada que abrange as várias épocas e mãos que
guardaram este manuscrito, a vida turbulenta do Marquês de Sade — suas fugas da
lei, seus depravados gostos eróticos e sua suposta execução pública —, até
chegarmos a como aquele livro, cobiçado e desejado por muitos, foi parar nas
mãos do homem conhecido como o “rei dos manuscritos”.
“Ninguém, a menos que seja totalmente insensível, pode terminar
Os
120 dias de Sodoma sem sentir náuseas”, disse o filósofo francês Georges
Bataille em 1957. E, mesmo assim, aquele pequeno rolo de papel já havia passado
por diversas mãos interessadas. O primeiro a encontrá-lo, enfiado entre as
pedras da parede daquela que fora a cela do seu dono, e pouco depois da tomada
da Bastilha, foi um jovem revolucionário chamado Arnoux Saint-Maximin. “Sem
dúvida”, diz Warner em seu livro, “o manuscrito estava entre os bens mais
valiosos do prisioneiro, pois ele o havia escondido cuidadosamente. Ninguém o
notou durante os saques após o cerco, quando numerosos documentos foram jogados
no pátio da prisão e consumidos pelas chamas. Nem foi descoberto durante uma
recolha mais sistemática de documentos que o governo parisiense realizou após o
ataque.”
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Manuscrito de Os 120 dias de Sodoma. |
Essa descoberta inesperada libertou o manuscrito de sua própria prisão e
marcou o início de toda uma lenda. Adquirido de Arnoux por um homem rico, proprietário
de uma abadia cisterciense, chamado Charles-André de Beaumont que o legou ao
seu genro, Raimond de Villeneuve, e dele passou para o seu filho, Hélion de
Villeneuve-Trans, um bibliófilo cuja família guardaria o manuscrito por três
gerações até que no final do século XIX foi adquirido pelo psiquiatra Iwan
Bloch, considerado um dos fundadores da sexologia.
Precursor do surrealismo
Foi precisamente este médico alemão quem o publicou pela primeira vez em
1904, sob o pseudónimo de Dr. Eugène Dühren. “Cento e dezenove anos depois de
sua criação em uma cela”, acrescenta Warner, “a primeira edição veio a público.
Os 200 exemplares do romance, destinados à distribuição exclusiva por
assinatura a médicos, advogados, antropólogos e outros especialistas
científicos, tinham preços entre cento e cinquenta e trezentos e cinquenta
francos, dependendo da qualidade do papel. Eram artigos de luxo
destinados à elite.”
Em 29 de janeiro de 1929, o visconde Charles de Noailles e sua esposa, a
viscondessa Marie-Laure, adquiriram os direitos do manuscrito. Um ano depois, o
diretor Luis Buñuel mudou-se para a casa dos Noailles para trabalhar no roteiro
de seu próximo projeto. “Todas as noites — segundo Warner — Buñuel lia as
últimas passagens para seus mecenas. Em troca, ofereceram-lhe inspiração
criativa: Os 120 dias de Sodoma.” Apoiados pelos surrealistas, nesse
manuscrito, continua o escritor, eles “viram um precursor das experiências com
a escrita automática tão comuns entre os surrealistas, e nas obsessões
pornográficas de Sade perceberam as origens da celebração do desejo erótico
também relacionado ao movimento”.
Seja como for, aquele “Evangelho” em particular acabou nas mãos da filha
deles, Nathalie, que também ficou fascinada pelo seu conteúdo. Muitas vezes,
observa Warner, “Nathalie o tirava e desenrolava para examiná-lo quando
visitantes ilustres, como o escritor italiano Italo Calvino e o ex-surrealista
Louis Aragon, passavam por ali. Mas ela acabou mostrando para a pessoa errada.”
Em novembro de 1982, o arquivo havia desaparecido. Roubado pelo editor francês
Jean Grouet da casa Noailles, a quem a proprietária o emprestara
temporariamente, o arquivo foi vendido sem autorização a um homem chamado
Gérard Nordmann, um colecionador de livros eróticos há anos cobiçava a prenda e
dela não pretendia se desfazer.
Dos leilões aos tribunais
Após um longo processo judicial, em 1998 o Supremo Tribunal da Suíça
decidiu a favor de Nordmann, que infelizmente falecera seis anos antes,
acontecimento que levou o manuscrito a passar para as mãos dos seus
descendentes. O colecionador Gérard Lhériter fundara em 1990 a Aristophil, uma
empresa francesa que vendia ações de manuscritos a seus investidores. Colocado
em leilão em 2007, Os 120 dias de Sodoma foi adquirido por 7 milhões de
euros. “Seu preço o tornou um dos manuscritos mais valiosos do mundo,
comparável às cópias originais da Bíblia de Gutenberg, dos contos da Cantuária
e do First Folio de Shakespeare. O rolo com o manuscrito foi
instalado em seu novo local bem a tempo das celebrações nacionais do
bicentenário da morte de Sade, o mais recente passo na reavaliação do escritor,
antes banido, que levou alguns intelectuais autóctones a declarar que era a
versão francesa de Shakespeare.
Acusado de branqueamento de capitais e fraude organizada, graças a esta
prática duvidosa, Lhéritier veio a acumular, entre outros tesouros, vários
manifestos do surrealismo de André Breton, a última carta de Antoine de
Saint-Exupéry, um manuscrito de Albert Einstein ou o testamento de Luis XVI,
além da peça mais enigmática de Sade, “a história mais impura que já foi
criada”, nas palavras do próprio escritor.
Como parte da “maldição” que teria acompanhado o manuscrito desde a sua
criação, após a prisão do colecionador, “o escândalo subsequente traria à luz a
amarga vingança nos mais altos escalões do governo francês, vendas milionárias
de manuscritos arruinados por sabotagens e acordos econômicos duvidosos à
sombra do Casino de Monte Carlo, em Mônaco. O caso envolveria rixas entre
livreiros antigos e casas de leilão assediadas por roubos, e culminaria em
alegações de uma fraude multimilionária que se estendeu por uma década e por um
continente inteiro e cujos detalhes, se verdadeiros, o tornariam um dos maiores
crimes econômicos da história da França”. Esta é, até agora, a última
reviravolta na emocionante história deste manuscrito único e conflituoso, que o
Estado francês compraria em 2021, pagando, um a um, a percentagem do seu valor
aos 420 investidores de Aristophil, 4,55 milhões de euros.
* Este texto é a tradução livre de “Los 120 días de Sodoma: la
historia del manuscrito maldito del marqués de Sade”, publicado aqui, em El
Cultural.
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