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Lima Barreto reimaginado com o fardão da Academia Brasileira de Letras. Projeto de Arte Urbana Negro Muro. |
Todos têm um plano para o Brasil.
Não importa se estamos no táxi, no trabalho, na missa ou no botequim, há sempre
alguém falando, quiçá gritando, sobre os problemas que acometem as
instituições, a política, a educação, a economia e todo o aparato de poder
existente num país de dimensões continentais como o nosso.
Nesses discursos, não é raro
perceber um tom saudosista ou, então, revolucionário por parte do interlocutor,
que assolapado pela
ideia que tem de seu país, provavelmente fala não
apenas em seu nome, mas também daqueles que talvez não se recorde mais ou que
não se sabe nada sobre a vida e história.
Como sempre, parece-me que além da
história real dos efeitos de algumas revoluções, a literatura também já deu
conta de retratar esse movimento pelo qual um entusiasta de certas ideias acaba
esmigalhado por elas quando postas em prática. E por essas bandas, quem foi
capaz de realizar tal descrição de forma genial foi o autor Lima Barreto
(1881-1922) em sua obra
Triste fim de Policarpo Quaresma, publicada em
1915.
Tendo em vista que a obra sempre
foi objeto de estudo nas escolas e possui um lugar privilegiado nas listas de
leituras cobradas para os vestibulares país afora, parto do pressuposto que a
descrição pormenorizada de seu enredo é desnecessária.
De todo modo, a fim de recordar os
traços essenciais da narrativa, tem-se que Policarpo Quaresma,
protagonista, é um funcionário público, com uma personalidade reservada,
profundamente patriota e apaixonado pelos livros. Aliás, em mais de uma
oportunidade, essa sua “mania de leitura”, como descreve um dos personagens, é
duramente criticada por vizinhos, colegas de trabalho e conhecidos.
Por nutrir tamanho afeto por seu
país, Policarpo não se conforma com o fato de que seus compatriotas tenham abandonado
completamente, de forma tão fácil, aqueles aspectos cruciais que, na sua visão,
formam a própria identidade da nação que tanto respeita. Esses aspectos passam
pelo idioma, pela agricultura, pela política, enfim, nada escapa aos olhos
críticos de Quaresma, que desde cedo ama o “seu” Brasil:
“Logo aos 18 anos quis fazer-se
militar; mas a junta de saúde julgou-o incapaz. Desgostou-se, sofreu, mas não
maldisse a Pátria. O ministério era liberal, ele se fez conservador e continuou
mais do que nunca a amar a ‘terra que o viu nascer’. Impossibilitado de
evoluir-se sob os dourados do Exército, procurou a administração e dos seus
ramos escolheu o militar.
Era onde estava bem. No meio de
soldados, de canhões, de veteranos, de papelada inçada de quilos de pólvora, de
nomes de fuzis e termos técnicos de artilharia, aspirava diariamente aquele
hálito de guerra, de bravura, de vitória, de triunfo, que é bem o hálito da
Pátria.
Durante os lazeres burocráticos,
estudou, mas estudou a Pátria, nas suas riquezas naturais, na sua história, na
sua geografia, na sua literatura e na sua política. Quaresma sabia as espécies
de minerais, vegetais e animais que o Brasil continha; sabia o valor do ouro,
dos diamantes exportados por Minas, as guerras holandesas, as batalhas do
Paraguai, as nascentes e o curso de todos os rios.” (p. 211).
No entanto, o desenrolar da
narrativa nos mostra que o amor pelo país de origem e o desejo de ver as próprias
ideias criarem vida não são suficientes para enfrentar todo um arsenal de burocracias,
gracejos, negociações, violência e chantagens. A completa indiferença do Estado
— na pessoa de seus representantes — para com o desejo sincero e inocente de
mudanças é, a meu ver, um dos pontos de destaque da obra.
É claro que se tratando de um
livro escrito pelo genioso e sarcástico Lima Barreto, alguns exemplos da
rigidez de Policarpo são exagerados e até mesmo cômicos, a exemplo da sua
insistência na utilização oficial do idioma tupi-guarani no país. Porém, o que
era para ser irrelevante e engraçado, acaba trazendo grandes problemas para o
aspirante a reformador da pátria.
Sob essa ótica, o livro aborda a
derrocada de Policarpo em sua missão, relatando os detalhes de sua internação,
de seu exílio em uma fazenda ao lado de sua irmã, onde passa a sofrer com
ameaças e chantagens do corpo político local, chegando finalmente à sua
completa desilusão diante de um governo que defendeu com unhas e dentes.
Sendo o protagonista um ferrenho
defensor e servo do Marechal, ao perceber que prisioneiros estavam sendo mortos
de forma desumana pelos guardas subordinados a ele, Policarpo passa, então, a
denunciar esses fatos — na sua cabeça, é inimaginável que aquela figura pela
qual nutria tanto respeito e admiração seja conivente com aquele cenário de
barbárie. No fim, o denunciante acaba morto nas mesmas condições que
denunciara.
Assim, o autor nos mostra um viés possível
e interessante na interpretação de sua obra: a forma como podemos morrer pelas
armas daqueles poderosos, ocupantes de cargos públicos de grande relevância, e a
mando de alguém que, talvez, tenhamos defendido com toda a nossa bravura física
ou intelectual. Aqui, uma vez mais, o leitor pode enxergar o paralelo entre a
literatura e a realidade, em outra prova de que a primeira não pode ser lida
como um objeto distante e exterior à segunda. A boa literatura deve — ou
deveria — nos apresentar aqueles contornos da realidade que somos incapazes de
enxergar em tantos momentos.
No caso de Policarpo Quaresma, já
deveríamos ter aprendido com a sua lição, a qual demonstrou que o poder do
Estado e de seus agentes políticos está acima de qualquer boa vontade
particular para o país. E sobretudo que isso se aplica, também, para os
próprios defensores deste ou aquele conglomerado político. No primeiro momento
em que houver um conflito de interesses entre um grupo aparentemente “unido” em
seus ideais, essa mesma união se desfaz quase que imediatamente, sem dúvida, em
favor daqueles que têm o poder em suas mãos.
O caricato personagem criado por
Lima Barreto morreu pelas armas da nação e do governo que defendia. E, afinal,
isso é novo na história? O
triste fim de Policarpo Quaresma é triste não
pela sua morte em si, mas pela injustiça sentida por quem lê sua história. No
fundo, a esperança desse homem, de enxergar o país onde nasceu e viveu por uma
lente de otimismo e de beleza, é a de muitos de nós.
Resta almejar, porém, para que a
história — e a literatura — tenham nos ensinado que, apesar de acreditarmos que
nossas ideias estão corretas e que representam a melhor solução para tudo, devemos
compreender que certas batalhas intelectuais se viram contra seus próprios
combatentes quando as ideias tomam um corpo real e vívido.
368 p.
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