O que­­ aprendemos com Policarpo Quaresma?

Por Guilherme França

Lima Barreto reimaginado com o fardão da Academia Brasileira de Letras. Projeto de Arte Urbana Negro Muro.


 
Todos têm um plano para o Brasil. Não importa se estamos no táxi, no trabalho, na missa ou no botequim, há sempre alguém falando, quiçá gritando, sobre os problemas que acometem as instituições, a política, a educação, a economia e todo o aparato de poder existente num país de dimensões continentais como o nosso.
 
Nesses discursos, não é raro perceber um tom saudosista ou, então, revolucionário por parte do interlocutor, que assolapado pela ideia que tem de seu país, provavelmente fala não apenas em seu nome, mas também daqueles que talvez não se recorde mais ou que não se sabe nada sobre a vida e história.
 
Como sempre, parece-me que além da história real dos efeitos de algumas revoluções, a literatura também já deu conta de retratar esse movimento pelo qual um entusiasta de certas ideias acaba esmigalhado por elas quando postas em prática. E por essas bandas, quem foi capaz de realizar tal descrição de forma genial foi o autor Lima Barreto (1881-1922) em sua obra Triste fim de Policarpo Quaresma, publicada em 1915.
 
Tendo em vista que a obra sempre foi objeto de estudo nas escolas e possui um lugar privilegiado nas listas de leituras cobradas para os vestibulares país afora, parto do pressuposto que a descrição pormenorizada de seu enredo é desnecessária.
 
De todo modo, a fim de recordar os traços essenciais da narrativa, tem-se que Policarpo Quaresma, protagonista, é um funcionário público, com uma personalidade reservada, profundamente patriota e apaixonado pelos livros. Aliás, em mais de uma oportunidade, essa sua “mania de leitura”, como descreve um dos personagens, é duramente criticada por vizinhos, colegas de trabalho e conhecidos.
 
Por nutrir tamanho afeto por seu país, Policarpo não se conforma com o fato de que seus compatriotas tenham abandonado completamente, de forma tão fácil, aqueles aspectos cruciais que, na sua visão, formam a própria identidade da nação que tanto respeita. Esses aspectos passam pelo idioma, pela agricultura, pela política, enfim, nada escapa aos olhos críticos de Quaresma, que desde cedo ama o “seu” Brasil:
 
“Logo aos 18 anos quis fazer-se militar; mas a junta de saúde julgou-o incapaz. Desgostou-se, sofreu, mas não maldisse a Pátria. O ministério era liberal, ele se fez conservador e continuou mais do que nunca a amar a ‘terra que o viu nascer’. Impossibilitado de evoluir-se sob os dourados do Exército, procurou a administração e dos seus ramos escolheu o militar.
 
Era onde estava bem. No meio de soldados, de canhões, de veteranos, de papelada inçada de quilos de pólvora, de nomes de fuzis e termos técnicos de artilharia, aspirava diariamente aquele hálito de guerra, de bravura, de vitória, de triunfo, que é bem o hálito da Pátria.
Durante os lazeres burocráticos, estudou, mas estudou a Pátria, nas suas riquezas naturais, na sua história, na sua geografia, na sua literatura e na sua política. Quaresma sabia as espécies de minerais, vegetais e animais que o Brasil continha; sabia o valor do ouro, dos diamantes exportados por Minas, as guerras holandesas, as batalhas do Paraguai, as nascentes e o curso de todos os rios.” (p. 211).
 
No entanto, o desenrolar da narrativa nos mostra que o amor pelo país de origem e o desejo de ver as próprias ideias criarem vida não são suficientes para enfrentar todo um arsenal de burocracias, gracejos, negociações, violência e chantagens. A completa indiferença do Estado — na pessoa de seus representantes — para com o desejo sincero e inocente de mudanças é, a meu ver, um dos pontos de destaque da obra.
 
É claro que se tratando de um livro escrito pelo genioso e sarcástico Lima Barreto, alguns exemplos da rigidez de Policarpo são exagerados e até mesmo cômicos, a exemplo da sua insistência na utilização oficial do idioma tupi-guarani no país. Porém, o que era para ser irrelevante e engraçado, acaba trazendo grandes problemas para o aspirante a reformador da pátria.
 
Sob essa ótica, o livro aborda a derrocada de Policarpo em sua missão, relatando os detalhes de sua internação, de seu exílio em uma fazenda ao lado de sua irmã, onde passa a sofrer com ameaças e chantagens do corpo político local, chegando finalmente à sua completa desilusão diante de um governo que defendeu com unhas e dentes.
 
Sendo o protagonista um ferrenho defensor e servo do Marechal, ao perceber que prisioneiros estavam sendo mortos de forma desumana pelos guardas subordinados a ele, Policarpo passa, então, a denunciar esses fatos — na sua cabeça, é inimaginável que aquela figura pela qual nutria tanto respeito e admiração seja conivente com aquele cenário de barbárie. No fim, o denunciante acaba morto nas mesmas condições que denunciara.  
 
Assim, o autor nos mostra um viés possível e interessante na interpretação de sua obra: a forma como podemos morrer pelas armas daqueles poderosos, ocupantes de cargos públicos de grande relevância, e a mando de alguém que, talvez, tenhamos defendido com toda a nossa bravura física ou intelectual. Aqui, uma vez mais, o leitor pode enxergar o paralelo entre a literatura e a realidade, em outra prova de que a primeira não pode ser lida como um objeto distante e exterior à segunda. A boa literatura deve — ou deveria — nos apresentar aqueles contornos da realidade que somos incapazes de enxergar em tantos momentos.
 
No caso de Policarpo Quaresma, já deveríamos ter aprendido com a sua lição, a qual demonstrou que o poder do Estado e de seus agentes políticos está acima de qualquer boa vontade particular para o país. E sobretudo que isso se aplica, também, para os próprios defensores deste ou aquele conglomerado político. No primeiro momento em que houver um conflito de interesses entre um grupo aparentemente “unido” em seus ideais, essa mesma união se desfaz quase que imediatamente, sem dúvida, em favor daqueles que têm o poder em suas mãos.
 
O caricato personagem criado por Lima Barreto morreu pelas armas da nação e do governo que defendia. E, afinal, isso é novo na história? O triste fim de Policarpo Quaresma é triste não pela sua morte em si, mas pela injustiça sentida por quem lê sua história. No fundo, a esperança desse homem, de enxergar o país onde nasceu e viveu por uma lente de otimismo e de beleza, é a de muitos de nós.
 
Resta almejar, porém, para que a história — e a literatura — tenham nos ensinado que, apesar de acreditarmos que nossas ideias estão corretas e que representam a melhor solução para tudo, devemos compreender que certas batalhas intelectuais se viram contra seus próprios combatentes quando as ideias tomam um corpo real e vívido.

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Triste fim de Policarpo Quaresma
Lima Barreto
Penguin-Companhia, 2011
368 p.


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Referência
BARRETO, Lima. Triste fim de Policarpo Quaresma. In Obra reunida. Rio de Janeiro: Nova fronteira, 2018 (Volume 1).
 

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