Julio Cortázar, Carlos Fuentes, García Márquez e Vargas Llosa: o big bang do Boom

Por Pablo de Santis





Como toda palavra nascida no ruidoso país das onomatopeias, o termo boom prefere conotar em vez de denotar. Sob o disfarce de um balão de desenho animado, sugere um sucesso inesperado, uma descoberta, um fenômeno espontâneo. O Boom da literatura latino-americana teve todas essas características de surpresa e assombro. Mas também teve uma dose de cálculo e conspiração, como se pode verificar pela correspondência recolhida em As cartas do Boom dos seus quatro autores centrais: Julio Cortázar, Carlos Fuentes, Mario Vargas Llosa e Gabriel García Márquez.¹ O chileno José Donoso e o cubano Guillermo Cabrera Infante, outros dois autores muito próximos ao Boom, não aparecem como autores do livro, mas os seus nomes são frequentemente citados nas cartas dos seus colegas ou nas notas de rodapé.
 
Encontradas e organizadas por quatro editores meticulosos e cuidadosos, essas cartas se parecem menos com qualquer outro volume de correspondência do que com uma biografia coral. Com caligrafia alheia — ou datilografia — os compiladores elaboraram uma biografia do Boom, que completaram com notas muito justas e nada invasivas, além de reunirem um prólogo, entrevistas e artigos no final do volume.
 
Curiosamente, o grande interesse das cartas reside no fato de a amizade desses autores ser superficial e, portanto, os textos nunca atingirem o nível de compreensão que costumam ter as conversas entre amigos de longa data. Só entendemos as cartas de quem não se entende totalmente.
 
A pedra angular do Boom é a revolução cubana, que despertou o interesse europeu pela América Latina. As ilusões políticas misturaram-se com um desejo de exotismo do qual ainda restam algumas ruínas espalhadas e cartazes de Che. Mas se deixarmos de lado a oportunidade histórica, tão bem aproveitada, devemos notar que foi Carlos Fuentes quem forjou esta espécie de clube dos quatro.
 
Embora fossem de gerações diferentes (Cortázar era o mais velho, Vargas Llosa o mais novo) todos estavam unidos pela simpatia para com a revolução socialista, a rebelião contra o criollismo como modelo obrigatório para a literatura do continente, a vontade de renovar o romance e o fato de que todos alcançaram seu esplendor como escritores quase ao mesmo tempo. Em poucos anos foram abençoados com prêmios e uma multidão de leitores, tanto na Europa como na América Latina. “Para mim, o famoso Boom não é tanto um boom de escritores, mas um boom de leitores”, escreve García Márquez no final de 1967.
 
Telas, política e cortinas de fumaça
 
Na primeira parte das cartas notamos a importância que o cinema teve para os quatro, aspecto que depois foi esquecido, pois os filmes em que estiveram envolvidos como roteiristas, ou que se inspiraram em suas obras, deixaram um leve rastro. Com o passar dos dias e das cartas, a política ganha importância e serve para unir o grupo. A história organiza a agenda das conversas, especialmente os acontecimentos do ano 68: o entusiasmo pelo Maio francês; a invasão soviética de Praga e o massacre de Tlatelolco, na Cidade do México, que deixou mais de 300 mortos.
 
Foi então que Elena Garro, ex-mulher de Octavio Paz, iniciou uma delirante campanha de denúncias, na qual apontou Paz e Carlos Fuentes como instigadores dos movimentos estudantis no México (Borges e Bioy Casares, a pedido de Garro, que era amante de Bioy, assinaram uma carta em favor do presidente mexicano Díaz Ordaz, como lembram os editores).
 
Mas a Yoko Ono do Boom não foi nenhum desses episódios em que todos se encontravam do mesmo lado, mas sim o caso Padilla. Heberto Padilla, poeta cubano, elogiou um romance de Guillermo Cabrera Infante, Três tristes tigres, em detrimento de um de Lisandro Otero. Cabrera Infante era, naquela época, um exilado, enquanto Otero era um funcionário da cultura. O orgulho ferido de Otero levou a um assédio contínuo por parte das autoridades culturais cubanas contra Padilla, e o poeta acabou na prisão, acusado de atividades contrarrevolucionárias.
 
Diante dos traços totalitários do governo cubano, García Márquez e Cortázar continuaram com seu apoio crítico, Carlos Fuentes recuou um pouco e Mario Vargas Llosa despediu-se completamente. Mais ainda do que a prisão dos escritores, indignava-os as “autocríticas” que os acusados ​​(Padilla não era o único) eram obrigados a fazer, como se algumas noites nas masmorras da Segurança do Estado lhes limpassem a consciência.
 
Julio Cortázar aparece nessas cartas tão perspicaz e luminoso ao falar de literatura ou da vida (há uma descrição maravilhosa de um tigre que ele viu na Índia) quanto ingênuo e opaco ao dar sua opinião sobre política. Ele postula, por exemplo, que seria inconveniente para um hipotético “pobre médico boliviano” especializar-se em Detroit, porque isso o distanciaria de sua cidade; reflexão curiosa para alguém que viveu em França quase toda a sua vida adulta, e nunca considerou que isso o separasse do seu “povo”.
 
Há uma série de elementos que colaboraram com o Boom: a contundência de suas obras fundamentais (O jogo da amarelinha, Cem anos de solidão, A morte de Artemio Cruz, Conversa no Catedral); o surgimento da agência de Carmen Balcells, que alterou as regras dos contratos editoriais; o ar romântico que a política tinha antes dos slogans serem manchados de sangue nos anos 70. Mas também há muito de estratégia de grupo.
 
O crítico e narrador argentino Héctor Murena, por exemplo, vira vilão do filme por ter ousado escrever uma crítica negativa sobre O jogo da amarelinha. Carta após carta revela uma estratégia nunca formulada que orienta a passagem dos amigos pelas mesas do júri e pelos pódios dos prêmios literários. Não foi em vão que Gabriel García Márquez chamou o grupo de “a máfia”.
 
À medida que o sucesso destes autores crescia, as críticas da esquerda multiplicavam-se. Marta Traba, ensaísta e professora argentina citada nas cartas com pouca simpatia, sustentava: “Minha impressão é que, ao lançá-los em promoções semelhantes às de qualquer produto da sociedade de consumo, dando-lhes estrelato, prêmios, convites para Universidades norte-americanas, revistas financiadas pela CIA etc., está sendo operado um processo muito claro para neutralizar a agressividade, o inconformismo, a grande rejeição que deve ser mantida sem atenuação no escritor ou no artista.”
 
Resfriamento global

A partir da década de 1970, quando o delírio de guerrilha se espalhou por todo o lado, os escritores já não eram recebidos como heróis nas universidades: era exigido que eles pegassem em armas, o que, claro, não tinham intenção de fazer. Como escreveu Carlos Fuentes a García Márquez em 1969, ao comentar um encontro de escritores no Chile: “Os estudantes obrigaram os escritores a entoar horríveis mea culpa públicos por não se dedicarem à guerrilha (…) Uma vez que todos admitiram a sua culpa de serem contra a revolução, foram convidados a visitar os trabalhadores de Lota. Sanctus, sanctus, sanctus.”
 
Cada escritor tem sua própria maneira de escrever cartas. Cortázar deixa-se tentar pelo jogo da justaposição, que preenche a mesma frase com diversas ações ou objetos, como faz na sua literatura. Há algo de camaleônico em Fuentes, que quando fala com Cortázar escreve no estilo mais livre do argentino, e quando se dirige a Vargas Llosa parece antecipar sua crítica ao socialismo.
 
O peruano odeia escrever cartas, mas com o passar dos anos elas se tornam mais documentadas e rigorosas, como a que escreveu em 30 de maio de 1971 a Carlos Fuentes, onde analisa as milagrosas mudanças espirituais que ocorrem nas prisões cubanas.
 
Gabriel García Márquez chama seus correspondentes por apelidos: o peruano é o Grande Chefe Inca e o mexicano é a Águia Asteca. Ele é o mais preocupado com questões contratuais e percentuais de vendas. Quem procurar nestas páginas uma explicação sobre a embate entre Vargas Llosa e García Márquez ficará desapontado. O famoso soco que o peruano deu ao colombiano num cinema no México em 1976 não deixou vestígios postais.
 
Ninguém pretende que numa correspondência entre escritores a virtude dominante seja a sinceridade. Quando apareceu Zona sagrada, romance no qual Carlos Fuentes trabalhou durante vários anos, García Márquez viu-se na difícil tarefa de expressar a sua opinião para o seu autor. Ele então executou um labirinto textual que poderia ser resumido assim: ninguém no mundo gostou do seu romance, e eu, por sua vez... tampouco me agradou.
 
Numa nota de rodapé, os editores recordam que Vargas Llosa e García Márquez voaram uma vez de Mérida a Caracas, num voo cheio de turbulência; experiência especialmente infeliz para os dois escritores, que detestavam voar. Com o passar dos dias, o pequeno incidente tornou-se um mito: o avião já não só sofria solavancos, mas também despencara vertiginosamente. Então Vargas Llosa agarrou García Márquez pelas lapelas e perguntou-lhe: “Agora que vamos morrer, diga-me a verdade, o que você acha de Zona sagrada?”
 

Notas da tradução
1 Tradução livre de Las cartas del Boom (Alfaguara Espanha, 2023).
 

* Este texto é a tradução livre para “Cortázar, Fuentes, García Márquez e Vargas Llosa: el Big Bang del Boom”, publicado aqui, na Revista Ñ.

Comentários

AS MAIS LIDAS DA SEMANA

A poesia de Antonio Cicero

Boletim Letras 360º #610

Boletim Letras 360º #601

Seis poemas de Rabindranath Tagore

Mortes de intelectual

16 + 2 romances de formação que devemos ler