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Ilustração: Saul Steinberg |
Há algum tempo, ao ler um livro
sobre a correção de textos no Renascimento, pensei: “Que grande
responsabilidade é revisar um texto sobre a revisão: se deixar passar um erro,
vale o dobro”. Não havia nenhuma errata, mas havia algo piorr: um erro de
impressão. Muitas páginas em branco.
Aqueles de nós que visitam
livrarias com uma regularidade alarmante às vezes recebem uma folha em branco:
um castigo por comprar mais livros do que lemos. Às vezes a falha parece uma
ilustração secreta sobre o conteúdo do livro. Descobri páginas em branco em
A
escritura profana, de Northrop Frye, como se a escrita fosse tão profana
que tivesse sido apagada, e também em
A arte da memória, de Francis
Yates, como se entre tantas referências à memória, o esquecimento tivesse querido
deixar sua marca. E em
A promessa, romance de Friedrich Dürrenmatt,
encontrei o pesadelo do leitor de policiais: o final havia desaparecido.
A outra página em branco
involuntária é aquela que chegou até nós como símbolo de falta de inspiração e
que tem um nome longo: “angústia da página em branco”. Esta é uma falsa página
em branco, que deveria ser chamada de “angústia de página inteira, mas com
bobagens”.
Além das lacunas proporcionadas
pelo descuido e pela falta de inspiração dos impressores, existem páginas em
branco voluntárias. Em seu poema satírico
A caça ao Snark, Lewis Carroll
conta sobre a busca por um animal fabuloso liderada por uma série de
personagens estranhos. Como todo mundo que vê tal ser morre, não restam
testemunhos sobre o Snark. Uma espécie de Moby Dick em miniatura, o poema de
Carroll é um tratado sobre a ausência, e para encontrar uma tão ausente criatura
nada melhor do que um mapa vazio.
Os versos explicam a límpida
ilustração: “Ele havia comprado um grande mapa do mar,/ Que de terra não se via
um traço:/ E a tripulação ficou feliz ao constatar/ Que o decifraria com
desembaraço.// “O que há de mais enganador na projeção de Mercator?/ O Equador,
os Trópicos, as Zonas e linhas meridionais?/ O Mensageiro indagava: e a
tripulação retrucava/ “É que são símbolos meramente convencionais!”// “Outros
mapas são apenas formatos, com suas ilhas e cabos!/ Mas nós temos que agradecer
ao nosso bravo Capitão:/ (a tripulação dizia) por ter nos trazido [o melhor do
mercado —/ Um mapa do perfeito e completo vazio, de então!”¹
Uma página em branco também pode
ser preta. Em 1760 apareceram os dois primeiros volumes de
Tristram Shandy,
de Laurence Sterne, um dos romances mais estranhos da literatura. Tem todo tipo
de excentricidades: capítulos curtíssimos, que quase terminam antes de começar,
um capítulo em latim, uma página de papel marmorizado, rabiscos, um parágrafo
feito de asteriscos e uma famosa página preta, sinal de luto pela morte de um
personagem.
Cada vez que um escritor brincou
com as convenções do romance, como Macedonio Fernández ou o brasileiro Machado
de Assis, deu continuidade ao jogo inventado por Sterne. Um dos capítulos das
Memórias
póstumas de Brás Cubas, de Machado de Assis, intitulado “De como não fui
ministro de Estado”, está completamente vazio.
E este é um jogo que continua a
ser jogado. No seu romance
House of Leaves o estadunidense Mark Z.
Danielewski uniu duas sensibilidades aparentemente incongruentes: o romance de
terror moderno (onde o sobrenatural irrompe num ambiente familiar) e a
vanguarda. Neste caso, uma espécie de “vanguarda tipográfica”. Seu romance é um
objeto de singular beleza gráfica: há palavras escritas em azul, fragmentos
riscados em vermelho, além de textos escritos nas margens, imagens e todas as
variantes tipográficas possíveis. É claro que também existem páginas em branco.
Talvez o maior conjunto de páginas
vazias seja aquele que apareceu em 1985 no volume 107 da revista
Zeitschrift
für katholische Theologie: entre as páginas 440 e 459 há um grande espaço
em branco. Esta ausência planejada de palavras tem uma explicação. Wilhelm
Baum, especialista em Wittgenstein, escreveu um artigo sobre o que foi chamado
de
Diários secretos do filósofo vienense. Baum planejou acompanhar o
artigo com um trecho dos referidos jornais. No último minuto, quando a revista
estava para ser publicada, os administradores do legado de Wittgenstein
cancelaram a autorização que haviam dado.
A direção da revista irritou-se e
decidiu que as dezenove páginas em branco expressariam seu protesto contra o
cancelamento da permissão. Isto é o que o próprio Baum conta em sua edição dos
Diários
secretos. Wittgenstein escreveu esses diários em código, alterando o lugar
das cartas. E as dezenove páginas em branco homenagearam sua criptográfica mania
com outra mensagem secreta.
As páginas iniciais em branco (ou
“páginas de cortesia”) são utilizadas para que os bibliotecários colem as
pautas de controle ou as etiquetas que servem na organização dos livros, para
que leitores desconfiados carimbem seus ex-libris e para que os autores
escrevam suas dedicatórias. Nenhum autor preencheu a página em branco como
Manuel Mujica Lainez: caneta de ouro, caligrafia redonda e tinta preta. No
extremo oposto estava Borges, cuja assinatura era um rabisco indecifrável.
Na época dos carros Duravit e das
bonecas Yoli Bell, havia também um brinquedo chamado lousa mágica. Escrevia com
um pincel sobre uma folha que estava dentro de uma moldura; quando a deslizava,
as linhas eram apagadas. Esse brinquedo tem sua origem no século XIX, e o
próprio Freud se referiu a ele em um artigo para explicar o funcionamento da
memória. As memórias imediatas são apagadas, como nossas rápidas pinceladas na
primeira lâmina do quadro. Mas os traços mais fortes marcam uma folha
escondida, que é preta (como se lembrará quem já desmontou o tabuleiro em busca
de seu segredo). A página em branco representa as lembranças do dia, que
perdemos imediatamente, porque não precisamos delas; a página preta armazena
experiências importantes ou traumáticas.
A imagem da mente humana ao nascer
como uma tabula rasa, uma página a ser preenchida com experiência, foi cunhada
por John Locke, embora tenha antecedentes ilustres. Gilbert K. Chesterton, por
outro lado, encontrou no papel sem letras um motivo para reflexão sobre o Bem,
pois suspeitava que uma página em branco não é uma página vazia: ela é habitada
pela brancura.
Em um de seus artigos (“Um pedaço
de giz”) Chesterton não apenas elogia um humilde pedaço de papel pardo, mas
também o utiliza para definir a virtude. “Uma das sábias e terríveis verdades
que essa arte do papel pardo revela é esta, a de que o branco é uma cor. Não é
uma mera ausência de cor; é uma coisa brilhante e afirmativo, tão ardente como
o vermelho, tão definido quanto o preto.” E o branco do papel torna-se uma
metáfora da virtude: “A virtude não é a ausência de vícios ou a abstenção de
perigos morais; a virtude é algo vívido e distinto, como a dor ou algum cheiro
em particular.”²
Talvez não devêssemos ficar tão
irritados com os impressores ou editores quando descobrimos páginas não
impressas no meio de um livro. Podemos encontrar algum ensinamento nessa
brancura inesperada.
1 O excerto utilizado é a da tradução de Bruna Beber (Galera Record, 2017).
2 O excerto utilizado aqui é da tradução de Mateus Leme (Ecclesiae, 2012).
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