A página mais branca da literatura

Por Pablo de Santis

Ilustração: Saul Steinberg


 
Há algum tempo, ao ler um livro sobre a correção de textos no Renascimento, pensei: “Que grande responsabilidade é revisar um texto sobre a revisão: se deixar passar um erro, vale o dobro”. Não havia nenhuma errata, mas havia algo piorr: um erro de impressão. Muitas páginas em branco.
 
Aqueles de nós que visitam livrarias com uma regularidade alarmante às vezes recebem uma folha em branco: um castigo por comprar mais livros do que lemos. Às vezes a falha parece uma ilustração secreta sobre o conteúdo do livro. Descobri páginas em branco em A escritura profana, de Northrop Frye, como se a escrita fosse tão profana que tivesse sido apagada, e também em A arte da memória, de Francis Yates, como se entre tantas referências à memória, o esquecimento tivesse querido deixar sua marca. E em A promessa, romance de Friedrich Dürrenmatt, encontrei o pesadelo do leitor de policiais: o final havia desaparecido.
 
A outra página em branco involuntária é aquela que chegou até nós como símbolo de falta de inspiração e que tem um nome longo: “angústia da página em branco”. Esta é uma falsa página em branco, que deveria ser chamada de “angústia de página inteira, mas com bobagens”.
 
Além das lacunas proporcionadas pelo descuido e pela falta de inspiração dos impressores, existem páginas em branco voluntárias. Em seu poema satírico A caça ao Snark, Lewis Carroll conta sobre a busca por um animal fabuloso liderada por uma série de personagens estranhos. Como todo mundo que vê tal ser morre, não restam testemunhos sobre o Snark. Uma espécie de Moby Dick em miniatura, o poema de Carroll é um tratado sobre a ausência, e para encontrar uma tão ausente criatura nada melhor do que um mapa vazio.
 
Os versos explicam a límpida ilustração: “Ele havia comprado um grande mapa do mar,/ Que de terra não se via um traço:/ E a tripulação ficou feliz ao constatar/ Que o decifraria com desembaraço.// “O que há de mais enganador na projeção de Mercator?/ O Equador, os Trópicos, as Zonas e linhas meridionais?/ O Mensageiro indagava: e a tripulação retrucava/ “É que são símbolos meramente convencionais!”// “Outros mapas são apenas formatos, com suas ilhas e cabos!/ Mas nós temos que agradecer ao nosso bravo Capitão:/ (a tripulação dizia) por ter nos trazido [o melhor do mercado —/ Um mapa do perfeito e completo vazio, de então!”¹
 
Uma página em branco também pode ser preta. Em 1760 apareceram os dois primeiros volumes de Tristram Shandy, de Laurence Sterne, um dos romances mais estranhos da literatura. Tem todo tipo de excentricidades: capítulos curtíssimos, que quase terminam antes de começar, um capítulo em latim, uma página de papel marmorizado, rabiscos, um parágrafo feito de asteriscos e uma famosa página preta, sinal de luto pela morte de um personagem.
 
Cada vez que um escritor brincou com as convenções do romance, como Macedonio Fernández ou o brasileiro Machado de Assis, deu continuidade ao jogo inventado por Sterne. Um dos capítulos das Memórias póstumas de Brás Cubas, de Machado de Assis, intitulado “De como não fui ministro de Estado”, está completamente vazio.
 
E este é um jogo que continua a ser jogado. No seu romance House of Leaves o estadunidense Mark Z. Danielewski uniu duas sensibilidades aparentemente incongruentes: o romance de terror moderno (onde o sobrenatural irrompe num ambiente familiar) e a vanguarda. Neste caso, uma espécie de “vanguarda tipográfica”. Seu romance é um objeto de singular beleza gráfica: há palavras escritas em azul, fragmentos riscados em vermelho, além de textos escritos nas margens, imagens e todas as variantes tipográficas possíveis. É claro que também existem páginas em branco.
 
Talvez o maior conjunto de páginas vazias seja aquele que apareceu em 1985 no volume 107 da revista Zeitschrift für katholische Theologie: entre as páginas 440 e 459 há um grande espaço em branco. Esta ausência planejada de palavras tem uma explicação. Wilhelm Baum, especialista em Wittgenstein, escreveu um artigo sobre o que foi chamado de Diários secretos do filósofo vienense. Baum planejou acompanhar o artigo com um trecho dos referidos jornais. No último minuto, quando a revista estava para ser publicada, os administradores do legado de Wittgenstein cancelaram a autorização que haviam dado.
 
A direção da revista irritou-se e decidiu que as dezenove páginas em branco expressariam seu protesto contra o cancelamento da permissão. Isto é o que o próprio Baum conta em sua edição dos Diários secretos. Wittgenstein escreveu esses diários em código, alterando o lugar das cartas. E as dezenove páginas em branco homenagearam sua criptográfica mania com outra mensagem secreta.
 
As páginas iniciais em branco (ou “páginas de cortesia”) são utilizadas para que os bibliotecários colem as pautas de controle ou as etiquetas que servem na organização dos livros, para que leitores desconfiados carimbem seus ex-libris e para que os autores escrevam suas dedicatórias. Nenhum autor preencheu a página em branco como Manuel Mujica Lainez: caneta de ouro, caligrafia redonda e tinta preta. No extremo oposto estava Borges, cuja assinatura era um rabisco indecifrável.
 
Na época dos carros Duravit e das bonecas Yoli Bell, havia também um brinquedo chamado lousa mágica. Escrevia com um pincel sobre uma folha que estava dentro de uma moldura; quando a deslizava, as linhas eram apagadas. Esse brinquedo tem sua origem no século XIX, e o próprio Freud se referiu a ele em um artigo para explicar o funcionamento da memória. As memórias imediatas são apagadas, como nossas rápidas pinceladas na primeira lâmina do quadro. Mas os traços mais fortes marcam uma folha escondida, que é preta (como se lembrará quem já desmontou o tabuleiro em busca de seu segredo). A página em branco representa as lembranças do dia, que perdemos imediatamente, porque não precisamos delas; a página preta armazena experiências importantes ou traumáticas.
 
A imagem da mente humana ao nascer como uma tabula rasa, uma página a ser preenchida com experiência, foi cunhada por John Locke, embora tenha antecedentes ilustres. Gilbert K. Chesterton, por outro lado, encontrou no papel sem letras um motivo para reflexão sobre o Bem, pois suspeitava que uma página em branco não é uma página vazia: ela é habitada pela brancura.
 
Em um de seus artigos (“Um pedaço de giz”) Chesterton não apenas elogia um humilde pedaço de papel pardo, mas também o utiliza para definir a virtude. “Uma das sábias e terríveis verdades que essa arte do papel pardo revela é esta, a de que o branco é uma cor. Não é uma mera ausência de cor; é uma coisa brilhante e afirmativo, tão ardente como o vermelho, tão definido quanto o preto.” E o branco do papel torna-se uma metáfora da virtude: “A virtude não é a ausência de vícios ou a abstenção de perigos morais; a virtude é algo vívido e distinto, como a dor ou algum cheiro em particular.”²
 
Talvez não devêssemos ficar tão irritados com os impressores ou editores quando descobrimos páginas não impressas no meio de um livro. Podemos encontrar algum ensinamento nessa brancura inesperada. 


Notas da tradução:
1 O excerto utilizado é a da tradução de Bruna Beber (Galera Record, 2017).

2 O excerto utilizado aqui é da tradução de Mateus Leme (Ecclesiae, 2012).


* Este texto é a tradução livre de “La página más blanca de la literatura”, publicado aqui, em Revista Ñ.

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