Por Pedro Fernandes
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Clarice Lispector em foto da formatura, dezembro de 1943. |
Perto do coração selvagem
saiu num ano de grande evidência na vida de Clarice Lispector. Depois de
iniciar as atividades como repórter de
A noite,
em 1943 casa-se
com Maury Gurgel Valente, forma-se em Direito pela antiga Universidade do
Brasil e se torna legalmente brasileira depois de o governo de Getúlio Vargas
despachar a requerida cidadania pela escritora. Foi o primeiro livro de Clarice
e logo associado, devido ao estilo introspectivo, aos romances de Virginia
Woolf e de James Joyce. Deste último, sim, admitiria mais tarde, mas não pela
sua mão e nem influência.
1 Lúcio Cardoso, amigo, principal
incentivador e primeiro leitor do romance, sugeriu o uso da epígrafe retirada
de
Retrato do artista quando jovem e da qual derivou o título deste
então reconhecido como um marco inaugural de outra dimensão da literatura
brasileira.
A concepção e realização do livro
possui uma trajetória errática. O envolvimento de Clarice Lispector com o trabalho
de fabulação é tratado por ela como coisa que a acompanhava desde menina quando
inventava para si e o círculo familiar uma complexa e interminável história
2;
na escrita, junta várias anotações em papéis soltos cuja tessitura, igualmente
motivada pelo autor de
Crônica da casa assassinada, resulta no primeiro romance.
O que findaria como o método Clarice de criar é um dos motivos para as
múltiplas versões contadas por ela sobre a feitura do livro: que as folhas
soltas datam de março a novembro 1942; que levou muito tempo para escrever,
porque tudo começara ainda entre os treze para os dezoito anos; que gastou dez
meses, quando era aluna no curso de Direito; que, não, foi nove meses de
intenso trabalho.
Fruto da anotação imediata,
resulta impreciso determinar o ponto de origem da obra, o que se confunde ainda
com o trabalho seguinte, de compilação e organização dos papéis soltos. Ou
seja, ora Clarice busca precisar o ponto inicial da escrita pelas notas
dispersas ora considera a sua organização durante a preparação do romance. Segundo
observa Nádia Battella Gotlib, no indispensável
Clarice: uma vida que se
conta, Tania Kaufmann, a irmã, recordou que esse trabalho de preparação para
Perto do coração selvagem se fez durante um mês quando a escritora se
mudou temporariamente para uma pensão e aí permaneceu isolada de todos e tudo,
dedicada intensa e exclusivamente à escrita.
Além de Lúcio Cardoso, outro
amigo, Francisco de Assis Barbosa testemunhou de alguma maneira a feitura ou o
nascimento do romance. Isso a partir de abril de 1943 quando, em carta, Clarice
Lispector pede-lhe opinião acerca do livro; leu os originais e “à proporção que
ia devorando os capítulos que estavam sendo datilografados pela autora fui me
compenetrando que estava diante de uma extraordinária revelação literária”.
É Barbosa quem repara nos estreitamentos e
distanciamentos entre o nascente estilo clariciano e a literatura de James Joyce:
“Eu, de início observei-lhe que o título lembrava James Joyce”, mas no material
lido “havia muito de Clarice” e “a influência de Joyce era irrelevante, se é
que efetivamente houvesse influência do grande escritor. O que havia, de fato,
era o ímpeto Clarice, o furacão Clarice.”
3
Com o datiloscrito concluído,
Clarice Lispector inicia um périplo pelos editores. Álvaro Lins é o primeiro a
rejeitar o livro e se convencerá do erro quando entra em contato com a crítica
— uma das primeiras de reconhecimento do romance — de Sérgio Milliet. Na longa
entrevista concedida para o Museu da Imagem e do Som do Rio de Janeiro, ela
conta da recusa de Lins e aponta ainda para outra rejeição, a da José Olympio,
então a principal casa editorial da literatura publicada no Brasil. Nesse
segundo caso, é possível entender alguma razão para tanto se observamos qual
tipo de fi
cção constituía relevância: estávamos
em meio ao boom do romance de 1930, de matriz realista e social, e o
romance da estreante escritora se encontrava na direção oposta desse modelo, abrindo
entre nós a linhagem de uma ficção de matriz interior.
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A primeira edição de Perto do coração selvagem, publicada em dezembro de 1943. |
Perto do coração selvagem tem como narrativa em dois planos —
entre um fragmentado passado e um presente repleto de interesse pelo trivial —
a história da protagonista Joana; sob uma perspectiva da interioridade e do
olhar excepcional, entramos em contato com uma travessia entre as fronteiras do
eu e sua relação enquanto consciência de si e do mundo. Estruturalmente, a
narração se constitui por uma poética do fragmento, deriva, claro está, das fatias
de experiência de uma voz narrativa multíplice, direcionando diferentes experiências
e modos de ser (conforme observa Gotlib) do sujeito: o mundo interior se revela
para a protagonista e, por sua vez, na narrativa, como desmesurado e excessivo,
segundo Benedito Nunes em O drama da linguagem.
A saída encontrada por Clarice Lispector
para que seu primeiro livro fosse publicado foi renunciar aos valores aos quais
tinha direito pelas vendas. A noite imprimiu mil exemplares que chegaram
às livrarias em dezembro, ocasião quando a escritora está de partida para Belém
na companhia do marido. A escritora só começa a entrar em contato com as
críticas ao seu livro através da correspondência que mantém com os amigos ou pelos
amigos de Maury Gurgel depois de instalada na cidade que a manterá por seis
meses distante do Rio de Janeiro: Sérgio Milliet publica seu texto em O
Estado de S. Paulo a 15 janeiro de 1944 — é o célebre artigo referido pela escritora
na entrevista a Júlio Lerner da TV Cultura, no qual o crítico escreve o sobrenome
de Clarice como Linspector e o designa como um possível pseudônimo; Álvaro
Lins escreve para o Correio da manhã a 11 de fevereiro de 1944; Lúcio
Cardoso, em março, fala sobre o livro para o Diário carioca; em julho do
mesmo ano, Antonio Candido, então autor de rodapés no jornal Folha da manhã,
também escreve sobre o livro.4
Todos os textos acodem alguma
ressalva e ainda que a crítica de Álvaro Lins teça considerações negativas, a recepção
de Perto do coração selvagem é de um todo positiva. Antonio Candido, por
exemplo, escreve que “se deixarmos de lado as possíveis fontes estrangeiras de
inspiração, permanece o fato de que, dentro de nossa literatura, é uma
performance da melhor qualidade”; que a escritora “soube criar o estilo conveniente
para o que tinha a dizer”; e que este era “um romance que faltava” à nossa
literatura. De fato, é um desses livros divisores e incontornáveis com são Memórias
póstumas de Brás Cubas, de Machado de Assis, ou Grande sertão: veredas,
de João Guimarães Rosa, para citar outros dois exemplos.
Em outubro de 1944, Clarice ganha o
prêmio de Melhor Livro de Estreia pela Fundação Graça Aranha; também a Folha
carioca elege seu livro como o Melhor Romance de 1943. Nessas ocasiões, ela
já se encontra fora do Brasil. O regresso de Belém para o Rio de Janeiro em
meados de julho é apenas porto de passagem para o longo périplo que iniciará pela
Europa ao lado da vida de diplomata de Maury Gurgel. O próximo romance, O
lustre sairá dois anos mais tarde.
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Perto do coração selvagem (edição comum)
Rocco, 2019, 208p.
Perto do coração selvagem (edição com manuscritos)
Rocco, 2022, 304p.
Perto do coração selvagem (edição em capa dura, acabamento de luxo)
Rocco, 2021, 208p.
Notas
1 Atenta à recepção de sua obra, escreve
em carta à irmã Tania Kaufmann que as influências levantadas pela crítica não
procediam: “Escrevi para ele [Álvaro Lins] dizendo que não conhecia Joyce nem
Virginia Woolf nem Proust quando fiz o livro, porque o diabo do homem só faltou
me chamar ‘representante comercial’ deles.” (Todas as cartas. Rio de
Janeiro: Rocco, 2020).
2 Diz isso na entrevista para o
Museu da Imagem e do Som do Rio de Janeiro, em outubro de 1976. É possível
escutar a entrevista aqui.
3 Depoimento referido por Nádia
Battella Gotlib na já citada biografia de Clarice Lispector (São Paulo: Edusp, 2013,
7 ed.).
4 O ano de 1944 foi pródigo para
com Perto do coração selvagem: escreveram sobre, entre outros, Jorge de
Lima, Lauro Escorel, Adonias Filho, Edgar Proença, Eliezer Burla, Dinah
Silveira de Queiroz, Breno Accioly, Guilherme Figueiredo, Roberto Lira e
Valdemar Cavalcanti.
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