Depois de ler
Temporada
de furacões, de Fernanda Melchor, fiquei com uma preocupação mais ou menos
resolvida no encontro com outras obras da escritora: seria aquele romance tão
violento e célebre uma expressão de pornomiséria?
1 Tal como no caso
da propaganda, acredito que a exploração baseada na pobreza, na miséria e no
abuso é definida formal e politicamente. Importa quem olha e como descreve as
coisas para descobrir suas intenções. Melchor não é uma autora burguesa que
olha com medo para seus personagens, embora haja provocação e moralização em
seu estilo ao descrever um povoado marcado repletamente de sadismo cotidiano. Há
também algo místico que a aproxima de Juan Rulfo — até mesmo com Cormac
McCarthy — na construção de um inferno nacional. É este elemento, juntamente
com a poesia profana da voz narradora, o que distingue
Temporada dos furacões
de
Páradais, o romance seguinte e meramente grotesco de Fernanda
Melchor, ou a série melodramática coescrita por ela,
Somos (2021). Estes
últimos projetos — principalmente a série — são exercícios que repugnam a
partir de um imaginário espetacular que encontra no horror do México
contemporâneo um acessório, um produto.
Os colombianos Carlos
Mayolo e Luis Ospina nos alertaram sobre essas ficções em seu clássico
curta-metragem
Agarrando pueblo (1978), em que alguns jornalistas
interpretados pelos próprios diretores criam imagens deploráveis com os
pobres de Bogotá e Cali para vendê-las à televisão alemã. Mistura performática
de documentário e ficção, o filme traz imagens de duas câmeras: uma que mostra
Mayolo e Ospina dirigindo as cenas ultrajantes e outra que nos mostra as
imagens que eles capturam. Os diretores questionam assim a ilusão de que o aparato
televisivo nos mostra como realidade, e também o cinema, que é igualmente
perigoso quando assim se propõe.
Agarrando bueblo é um exemplo de arte
que confronta as representações típicas porque se entende como uma imagem-arma
capaz de combater os planos produzidos pela indústria e pelo imaginário
burguês. Funciona em contraste com os cineastas que ficam imediatamente
horrorizados com as deficiências dos outros e que, na sua tentativa de
denunciar as suas condições, acabam desumanizando-os; acabam, de fato,
integrando-os à sujeira das paredes velhas e aos lixões a céu aberto.
Temporada de furacões, a adaptação cinematográfica do livro de
Fernanda Melchor, dirigida por Elisa Miller e escrita por ela mesma junto com a
romancista e roteirista Daniela Gómez, cai no melodrama gentrificado por não
ter como amparo o que o estilo deu ao romance. Incapaz de transferir a prosa
literária para a cinematográfica, Miller tira a profundidade do livro e nos
deixa apenas com anedotas de homicídio, gravidez na adolescência, aborto
clandestino, estupro, sangue e quase merda, quando um personagem, sem outra
necessidade a não ser acrescentar ao tom do filme, tenta esvaziar os intestinos
fora da casa onde está hospedado. Uma imagem sugere que até a diferença sexual
faz parte deste escândalo: dois homens acordam juntos, com as calças e a cueca
arriadas; o enquadramento mostra suas pernas entrelaçadas e nos permite ver
claramente as solas sujas de seus pés, como se quisessem nos contar algo sobre
o ato em si. Seria um exagero dizer que Miller pretende imagens homofóbicas,
mas sua obsessão em demonstrar a feiura popular marca tudo até criar signos
confusos.
Quanto à sua narrativa
específica, o filme, como um clássico dos anos noventa-dois mil, acompanha
vários personagens de um povoado simples de Veracruz, cujas histórias às vezes se
cruzam e culminam na morte de uma mulher transexual apelidada de A Bruxa (Edgar
Treviño) por seu talento em misturar poções. Os cinco capítulos baseiam-se
apenas na exibição de ações, mas não com uma intenção realista que busque
contemplar os personagens sem se aprofundar em sua psique, como se estivéssemos
assistindo a um acontecimento real. Em vez disso, Elisa Miller pretende fazer
um filme narrativo convencional, mas ao se ater aos acontecimentos do romance
ela não constrói outro significado além do terror. Seu estilo visual e sonoro
faz o mesmo com a música que parece imitar o som de uma porta enferrujada se
abrindo e com imagens que tendem a breves sequências sem outro propósito a não
ser parecer bem. A obsessão pelo horror é tanta que a comprimida relação nos
impede de ver um único centímetro do povoado que não seja decadente.
Que diferença há entre
um Tsai Ming-liang ou um Pedro Costa, que na pobreza encontram a ternura, um,
ou a dignidade, o outro. Em
Days (2020), o encontro de um homem com um
jovem profissional do sexo termina em imagens sensoriais de uma massagem
curativa e no presente de uma caixa de música que toca o tema
Limelight.(1952),
de Charles Chaplin. Em
Vitalina Varela (2019) Costa fica tão comovido
com as tristezas e a força de sua protagonista que fecha o filme com uma imagem
dela construindo a casa dos seus sonhos sob o sol, diante das montanhas de sua
terra natal. Elisa Miller, por outro lado, não cede na sua redução dos pobres a
vítimas e das suas vidas a uma tortura desenfreada. É claro que o pessimismo é
mais do que válido e, num país como o México, inevitável;
Temporada de
furacões não precisa ser esperançoso, mas a asfixia de seus personagens
expressa, no mínimo, uma negligência criativa: Macbeth denunciou Deus por tanta
fúria insgnificante, e assim os personagens do filme poderiam odiar sua
criadora por aparecerem reduzidos a estereótipos da necessidade; selvagens famintos
de tudo e agarrados a um só possibilidade de obter o que precisam mediante a
força.
Uma cena de estupro
insiste na brutalidade como único meio de satisfazer os desejos: Luismi (Andrés
Cordaz), um garoto desempregado e sem instrução, acolhe Norma (Kat Rigoni), uma
adolescente grávida que fugiu de casa, e cobra o favor de usá-la. Miller
mostra-nos o rosto de Norma em grande plano: ele olha para ela e olha para ela,
não corta embora o sofrimento, a doença, já esteja claro. Se o objetivo do
cinema é produzir uma ilusão de realidade, o que Miller faz à medida que este
plano se estende é abrir os olhos com uma pinça e forçar-nos a olhar para um
crime, um trauma. Mais uma vez, fica claro que Elisa Miller parte da
comiseração e da vontade de enfrentar esses acontecimentos mas, voltando a Tsai
e Costa, não dá volume aos personagens além do que sofrem. Fernanda Melchor
buscava exatamente o contrário ao dar expressão ao pensamento de cada
protagonista através de uma voz narrativa sofisticada, mas no filme resta
apenas o sofrimento visto de fora por uma câmera para nos dizer um lugar-comum:
a pobreza é cruel.
Adaptar ao cinema um
equilíbrio tão peculiar quanto o do
Temporada de furacões requereria algo
mais do que transferir seus acontecimentos para um roteiro e daí para as
imagens; nesse sentido, mais do que uma adaptação, o filme é um resumo, mas não
apenas da trama original, mas das tendências do cinema industrial. Certamente
os produtores têm pensado que o público quer ver apenas histórias, e por isso
se inspira em romances e contos, mas embora os espectadores não saibam disso, o
que atua sobre eles, o que os afeta ou produz indiferença são as imagens, as
sensações. É aí que reside o sucesso de uma Claire Denis, que não nos narra
encontros sexuais: ela nos envolve neles através do voyeurismo e do tato suposto
pelo cinema. Elisa Miller inevitavelmente mostra mais do que descreve, mas ao
fazê-lo a partir do puro pragmatismo de apresentar os acontecimentos do livro
para impedir que o espectador os leia, violenta todos — os personagens, o
público, a obra original — sem produzir muito mais do que o nojo de um cadáver
com cobras saindo de sua boca.
Comentários