Por José Homero
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Willa Cather. Foto: National Willa Cather Center |
Entre a variedade de clássicos da modernidade literária que nesta década
celebraram e celebrarão um século desde a sua primeira publicação, poucos
leitores, fora os conhecedores da literatura produzida nos Estados Unidos, se
lembrariam de listar A Lost Lady (Uma mulher perdida). A efeméride do
centenário da sua aparição na Alfred A. Knopf, em setembro de 1923, é um bom
pretexto para incitar o leitor a descobrir esta obra-prima, uma das poucas
escritas por mulheres incluídas na lista dos 100 grandes livros do mundo
ocidental preparada pela Enciclopédia Britânica.
Devota de William Shakespeare, Cather sabia perfeitamente o que existe
em um nome. Por esta razão, a melhor tradução do título A Lost Lady é Uma
mulher perdida. Apesar de suas repercussões moralistas, o adjetivo “perdida”
compreende um feixe de reverberações semânticas. Entre os vários méritos desta
ourives da linguagem estão a configuração simbólica, as ressonâncias
intertextuais de seus nomes e a promoção de significados através da aplicação
hábil e precisa de seus símiles, de modo que os elementos da trama respondem
mais à conotação do que a um prurido realista. Tal cuidado e sagacidade
conferem às suas narrativas uma transcendência que se revela à medida que se
estuda seu simbolismo e a gradação de suas ações.
O sexto de seus romances não foi exceção. Sua protagonista é Marian
Forrester, que se estabeleceu, após seu casamento com o capitão Forrester,
construtor de ferrovias, na região das grandes pradarias — cenário predominante
nas histórias de Cather, originária da Virginia, mas que vive desde criança em
Nebraska. Na perspectiva do narrador, trata-se efetivamente do relato de uma perdição,
a da protagonista, que deixa de ser uma grande dama para se tornar o assunto do
povoado pelo seu amor à bebida e pelos seus casos amorosos. Justifica-se,
portanto, a inclusão da obra no subgênero do romance de adultério, cujos ápices
são Madame Bovary, de Gustave Flaubert, outro mestre indubitável de
nossa autora, e O despertar, de Kate Chopin, que ela não apreciava. No
entanto, desde o seu estrondoso aparecimento — tornou-se um dos livros mais
vendidos do ano e trouxe à escritora o reconhecimento popular de que não gozava
— os críticos alertaram que para além da sua história melodramática — a
história de uma queda ou de um triângulo amoroso — o romance envolvia um complexo
simbolismo.
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Primeira edição de Uma mulher perdida. |
Assim que as escavações textuais começaram, foram encontrados em seu
substrato sedimentos de Paraíso Perdido — embora não seja citado entre
as leituras de Niel Herbert, a voz e o ponto de vista da narrativa —, o poema
canônico de John Milton com o qual Cather já havia dialogado em One of Ours,
seu romance do ano anterior que lhe rendeu o Prêmio Pulitzer em 1923. Sob essa
abordagem, essa casa na pradaria é uma espécie de Éden subvertido, não por
estilhaços, mas pela nova geração movida pelo dinheiro. Peters, o advogado
inescrupuloso que acabará se apoderando da terra e da mulher, faria o papel de
Satanás tentando Eva — não é por acaso que seu apodo é Poison Yvy, a hera
venenosa que destrói todos os jardins.
A interpretação dominante, porém, foi a proposta por John Herman
Randall, para quem é uma alegoria social da história do Oeste. Certamente há
muitos detalhes para apoiar esta análise. O jovem Herbert não hesita em
contrastar os atributos heroicos que atribui aos pioneiros, cujo campeão seria
o capitão Forrester, configurado como uma espécie de senhor feudal, um
verdadeiro cavaleiro arturiano — não em vão sua senhora se chama Marian —, à
vista da falta de escrúpulos e moral da segunda geração. Atuará em dois
episódios significativos, quando o capitão, perante a falência do banco ao qual
estava associado, assume a responsabilidade pelos prejuízos que o restante dos
dirigentes, jovens empresários, se recusaram a reconhecer, escondendo-se atrás
da lei do capitalismo; e ratificará essa convicção quando perceber que o
repulsivo Peters começou a tirar vantagem da propriedade dos Forrester. Aos
olhos do idílico narrador, que gosta dos escarcéus eróticos nos clássicos, mas
os censura na vida real, a geração dos fundadores foi heroica e baseou suas
conquistas em sonhos e valores,
enquanto os herdeiros, dos quais Yvy é o exemplo perfeito, carecem de ideais e
justamente por isso, cujo eixo vital é o dinheiro, se tornarão donos e
beneficiários do esforço dos mais velhos. Uma visão já expressa pela autora nos
seus ensaios, insatisfeita como estava com o rumo que a civilização ocidental
tomou após a Grande Guerra.
Embora estas formas de leitura bastassem para garantir a este romance um
lugar permanente na literatura, a verdade é que o seu mérito não reside no seu
enredo ou nos seus veios alegóricos, mas na sua configuração. Muitas vezes,
perdidos nos caminhos da hermenêutica ou ofuscados pelo brilho da teia de
aranha da trama, esquecemos que os valores de uma obra literária estão
enraizados na sua linguagem e na sua composição. A aparente superficialidade e
o tom menor deste pequeno romance ou “novela” — como a escritora chegou a
considerar — escondem a elaborada complexidade da composição. Empar Barranco
Ureña no estudo Willa Cather: el reverso de la alfombra (2008) afirma que
é “um verdadeiro exemplo de como dá coesão a uma narrativa baseada na simetria,
na economia e na duplicação” (2008, p. 132).
Dividida em duas partes, cada uma possui igual número de capítulos que
dialogam entre si. Através de um verdadeiro jogo de espelhos, desenha-se uma
oposição semântica: na primeira parte, a casa dos Forrester e os seus
habitantes se configuram como idílicos, num registo que sugere o de uma balada
que invoca tempos lendários; na segunda, a poesia dá lugar à prosa para
referir-se ao declínio da casa e à perdição implícita da senhora.
Contudo, ainda não será a urdidura ou o domínio técnico que conferem a este
romance as suas qualidades superlativas, mas sim a forma de observar os acontecimentos.
Embora estivesse alheia aos esforços inovadores de seus contemporâneos — uma
circunstância lógica, visto que ela era mais velha que os mais corajosos
arautos da novidade — Cather soube assimilar as estratégias narrativas
desenvolvidas pelos titãs menos notórios do romance moderno, Joseph Conrad e
Henry James. Assim, entendeu que o mérito de uma narrativa vai além do enredo e
da composição e se situa no nível da representação. Em busca da objetividade,
buscou registrar as ações com o mínimo de mediação possível, e por isso
descartou o olhar onisciente, presente, porém, nesse enxame narrativo pontuado
por diversas focalizações e vozes.
Pela maneira como descreveu sua técnica para Latrobe Carroll (Bookman, 3
de maio de 1921)1, parece que quis aplicar à narrativa as fórmulas
dos impressionistas e dos pontilhistas pictóricos: a percepção de um objeto,
das suas formas, das suas cores, depende da contiguidade dos elementos com os
quais são organizados. O cerne do problema era aquele que os grandes narradores
conhecem: qual o melhor ângulo para abordar uma história, neste caso, a voz
narrativa para apresentar a protagonista “de forma mais vívida, o que, claro,
significaria, de forma mais verdadeira”, confessou a autor de My Ántonia
em outra entrevista (com Elizabeth Sergeant). Assim, embora Herbert seja a voz
principal, não é a única, pois transmite as impressões e pontos de vista dos
demais personagens. Cather criou uma criatura viva, bela mas esquiva, educada
mas frágil, e recuperou para a literatura o eco que a pessoa causara na sua
sensibilidade juvenil. Será esta abordagem que F. Scott Fitzgerald utilizará em
O grande Gatsby, uma forma de transmitir o brilho indescritível dos
acontecimentos, de registar um perfume, o timbre de uma risada, as nuances das
rosas ao amanhecer... A presença que os poetas perseguem e que poucos
romancistas notam:
“Talvez ela também não tivesse encontrado nada, mas sempre tivera o
poder de sugerir coisas muito mais agradáveis do que si própria, como o perfume
de uma única flor pode trazer toda doçura da primavera.”*
As reverberações da configuração de um personagem através de diversas
arestas, cuja soma permitiria um perfil mais complexo do que uma impressão
unívoca, não foram plenamente compreendidas no momento de sua recepção.
Portanto, presume-se que seja a história de uma perdição, como se o preconceito
moral introduzido pelo jovem Herbert transmitisse a ideologia da autora.
Décadas depois, Niel seria assumido como um “narrador pouco confiável”, e com
isso se entenderia que Marian Forrester, mais do que “uma mulher perdida”, é
uma heroína que, através de suas limitadas possibilidades — aquelas impostas
pela sociedade do seu tempo — consegue sobreviver à época em que cresceu.
Assim, o adjetivo adquire outro significado: testemunho de um mundo
desaparecido, mas também alusão às decepções do protagonista — o que o
aproximaria de Lucien de Rubempré, de Balzac. Apesar dessa melancolia
romântica, Marian permanece hoje como uma criatura viva que, ainda que sua
percepção como um objeto, como uma possessão masculina, soube como encontrar seu próprio destino. Como a
sua própria artífice, Willa Cather, cuja voz, a um século de distância, ressoa
mais atual do que em sua época.
Notas
1 A citação da entrevista é a partir da edição crítica realizada por
Susan J. Rosowski e Kari Ronning para a Universidade de Nebraska em 1997.
Notas da tradução
* O excerto é da tradução de Mauricio Tamboni (Pontoedita, 2019).
Este texto é a tradução livre de “Reivindicación de una dana centenaria”,
publicado aqui, em Letras Libres.
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