O Misantropo, de Molière: entre honra e dissimulação

Por Guilherme França

O misantropo, de Molière. Ilustração: Dubout 

 
No consagrado romance Moby Dick, de Herman Melville, o leitor se depara com a afirmação de que todo homem grande só chega a sê-lo por meio de certeza morbidez. Por sua vez, Alceste, o ingênuo protagonista da peça O Misantropo (1666), de Molière, irritava-se já àquela época com os melindres necessários para que um sujeito pudesse transitar entre os diversos grupos sociais.
 
Embora alguns comentadores da obra prefiram exaltar o comportamento mais ou menos imaturo ou intransigente de Alceste diante de uma sociedade que não compreende e que não segue os padrões morais que carrega em si, prefiro ser um daqueles que dá certo crédito às análises e críticas sociais formuladas pelo indignado e intransigente personagem.
 
Alceste é repreendido em vários momentos, por diferentes personagens, em virtude de sua personalidade inflexível diante das manobras e falsidades às quais as pessoas se sujeitam para fazer parte de um grupo, seja ele profissional, de amizade, enfim.
 
Dessa forma, ainda que o texto tenha sido originalmente publicado no século XVII, assim como em tantos outros, encaixa-se perfeitamente no contexto da vida contemporânea, em que a ascensão das redes sociais causou incontáveis mudanças não apenas na interação entre as pessoas, mas nas suas próprias personalidades.
 
Na contemporaneidade que tem como alicerce o ambiente virtual, o mundo fala, opina, critica, discorda, muito mais. Levanta bandeiras que não conhece há mais de uma semana. Muitos se portam como um medalhão machadiano. Seja em Guy Debord, Bauman, Byung-Chul Han, Umberto Eco ou vários outros autores, as críticas fundamentadas às militâncias pedantes são fartas na bibliografia.
 
Mas para além dessa onda crescente de discursos improvisados ou em decorrência dela, as relações interpessoais também ganharam outro contorno: é preciso agir de forma hipócrita ou excessivamente polida (comumente chamada de politicamente correta) para cair nas graças — ou apenas não ser excluído ou barrado — de grupos dominantes da intelligentsia.
 
Olhando para a obra de Molière, percebe-se que essa necessidade de rebaixar a própria honra e adequar as próprias virtudes às exigências dos círculos exteriores não é uma criação do mundo contemporâneo — embora certamente tenha sido elevada a patamares insuportáveis com a chegada dele.
 
Num dos diálogos, quando o personagem Philinte afirma que é um dever responder às amabilidades e trocar civilidade por civilidade, de forma superficial e interesseira, assim responde Alceste:
 
Eu não posso admitir conduta tão leniente,
Que a moda de hoje em dia obriga a toda a gente;
E a nada odeio tanto quanto às contorções,
Dos que nos vêm saudar quase em convulsões,
Produtores afáveis de futilidades
Que, pressurosos, jorram mil frivolidades,
E se batem na busca do elogio vão,
Tratando de igual modo o honesto e o bobalhão
[...]
A nossa preferência sempre escolhe a alguém:
Quem gosta de todos não gosta de ninguém. (p. 16)
 
A resposta, assim como outras ao longo da obra, pode parecer rude, mas também, se lida com outros olhos, pode transmitir aquilo que muitos de personalidade mais unificada e íntegra pensam diante de certas convenções sociais, sobretudo nos ambientes em que um tratamento afável e risonho esconde uma mancha na alma do interlocutor, que joga sua honra — ou os resquícios dela — para de baixo do tapete visando subir os degraus da escalada social.
 
Deve ser observado, porém, que existe grande diferença entre a problematização moral das atitudes humanas e o moralismo descabido e impensado. No primeiro caso, analisamos as atitudes de terceiros com a mesma régua utilizada para julgar — antes de tudo — as nossas próprias atitudes. E somente depois ou durante esse complexo e longo processo de adequação moral das condutas pessoais é que o sujeito provavelmente enxergue o problema que existe na sugestão de Philinte, que nestes dias se espalham cotidianamente por todos os lados. Alceste, em sua luta contra a banalidade das relações, prossegue:
 
Porém, em toda parte o palhaço é bem-vindo,
Bem acolhido, mesmo que com todos rindo;
Se para um posto alguém deve ser nomeado,
Por ele o mais honesto é sempre superado. (p. 20).
 
Aqui, séculos atrás, o personagem parecia descrever o que não raro ocorre no âmbito do mundo corporativo ou de alguns setores dos órgãos públicos na contemporaneidade, onde aquele ou aquela que tem o poder de lidar com a carreira de outras pessoas, promovendo-as a postos de trabalho mais elevados, utilizam-se desta faculdade para agradar aos “palhaços” descritos por Molière, que mesmo sem qualquer mérito, ocupam lugares iguais ou superiores àqueles que trabalham de forma ética, íntegra e dedicada todos os dias — mas não possuem o essencial: a falsa cortesia.
 
Seja como for, há tempos alguém já disse que arte imita a vida, ou que a vida imita a arte. Molière, com sua inegável capacidade artística, mesmo com uma distância temporal bastante considerável de nossos tempos, consegue nos dizer muito mais sobre nossas relações, nossas vaidades e nossos pecados do que podemos imaginar. Afinal, os artistas são geniais ou nós, humanos, não fomos capazes de evoluir moralmente com o passar do tempo? Há quem diga, ao contrário, que a própria moral pode ser relativizada. Assim pensava Raskolnikov antes de adoecer. Enfim... Resta-nos confiar e esperar que os bons artistas do presente retratem a face humana e sua essência, para nos descobrirmos, nos identificarmos ou nos acusarmos no futuro.

 
Referência bibliográfica:
Molière. O misantropo. Tradução Barbara Heliodora. 1 ed. Rio de Janeiro: Zahar, 2014.

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