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O misantropo, de Molière. Ilustração: Dubout |
No consagrado romance
Moby Dick,
de Herman Melville, o leitor se depara com a afirmação de que
todo homem
grande só chega a sê-lo por meio de certeza morbidez. Por sua vez, Alceste,
o ingênuo protagonista da peça
O Misantropo (1666), de Molière,
irritava-se já àquela época com os melindres necessários para que um sujeito
pudesse transitar entre os diversos grupos sociais.
Embora alguns comentadores da obra
prefiram exaltar o comportamento mais ou menos imaturo ou intransigente de
Alceste diante de uma sociedade que não compreende e que não segue os padrões
morais que carrega em si, prefiro ser um daqueles que dá certo crédito às
análises e críticas sociais formuladas pelo indignado e intransigente
personagem.
Alceste é repreendido em vários
momentos, por diferentes personagens, em virtude de sua personalidade
inflexível diante das manobras e falsidades às quais as pessoas se sujeitam
para fazer parte de um grupo, seja ele profissional, de amizade, enfim.
Dessa forma, ainda que o texto
tenha sido originalmente publicado no século XVII, assim como em tantos outros,
encaixa-se perfeitamente no contexto da vida contemporânea, em que a ascensão
das redes sociais causou incontáveis mudanças não apenas na interação entre as
pessoas, mas nas suas próprias personalidades.
Na contemporaneidade que tem como
alicerce o ambiente virtual, o mundo fala, opina, critica, discorda, muito
mais. Levanta bandeiras que não conhece há mais de uma semana. Muitos se portam
como um medalhão machadiano. Seja em Guy Debord, Bauman, Byung-Chul Han, Umberto
Eco ou vários outros autores, as críticas fundamentadas às militâncias pedantes
são fartas na bibliografia.
Mas para além dessa onda crescente
de discursos improvisados ou em decorrência dela, as relações interpessoais também
ganharam outro contorno: é preciso agir de forma hipócrita ou excessivamente
polida (comumente chamada de politicamente correta) para cair nas graças — ou
apenas não ser excluído ou barrado — de grupos dominantes da
intelligentsia.
Olhando para a obra de Molière,
percebe-se que essa necessidade de rebaixar a própria honra e adequar as
próprias virtudes às exigências dos círculos exteriores não é uma criação do
mundo contemporâneo — embora certamente tenha sido elevada a patamares
insuportáveis com a chegada dele.
Num dos diálogos, quando o
personagem Philinte afirma que é um dever responder às amabilidades e trocar
civilidade por civilidade, de forma superficial e interesseira, assim responde
Alceste:
Eu não posso admitir conduta tão
leniente,
Que a moda de hoje em dia obriga a
toda a gente;
E a nada odeio tanto quanto às
contorções,
Dos que nos vêm saudar quase em
convulsões,
Produtores afáveis de futilidades
Que, pressurosos, jorram mil
frivolidades,
E se batem na busca do elogio vão,
Tratando de igual modo o honesto e
o bobalhão
[...]
A nossa preferência sempre escolhe
a alguém:
Quem gosta de todos não gosta de
ninguém. (p. 16)
A resposta, assim como outras ao
longo da obra, pode parecer rude, mas também, se lida com outros olhos, pode
transmitir aquilo que muitos de personalidade mais unificada e íntegra pensam
diante de certas convenções sociais, sobretudo nos ambientes em que um
tratamento afável e risonho esconde uma mancha na alma do interlocutor, que
joga sua honra — ou os resquícios dela — para de baixo do tapete visando subir
os degraus da escalada social.
Deve ser observado, porém, que
existe grande diferença entre a
problematização moral das atitudes
humanas e o
moralismo descabido e impensado. No primeiro caso,
analisamos as atitudes de terceiros com a mesma régua utilizada para julgar —
antes de tudo — as nossas próprias atitudes. E somente depois ou durante esse
complexo e longo processo de adequação moral das condutas pessoais é que o
sujeito provavelmente enxergue o problema que existe na sugestão de Philinte,
que nestes dias se espalham cotidianamente por todos os lados. Alceste, em sua
luta contra a banalidade das relações, prossegue:
Porém, em toda parte o palhaço é
bem-vindo,
Bem acolhido, mesmo que com todos
rindo;
Se para um posto alguém deve ser
nomeado,
Por ele o mais honesto é sempre
superado. (p. 20).
Aqui, séculos atrás, o personagem
parecia descrever o que não raro ocorre no âmbito do mundo corporativo ou de
alguns setores dos órgãos públicos na contemporaneidade, onde aquele ou aquela
que tem o poder de lidar com a carreira de outras pessoas, promovendo-as a
postos de trabalho mais elevados, utilizam-se desta faculdade para agradar aos
“palhaços” descritos por Molière, que mesmo sem qualquer mérito, ocupam lugares
iguais ou superiores àqueles que trabalham de forma ética, íntegra e dedicada
todos os dias — mas não possuem o essencial: a falsa cortesia.
Seja como for, há tempos alguém já
disse que arte imita a vida, ou que a vida imita a arte. Molière, com sua
inegável capacidade artística, mesmo com uma distância temporal bastante
considerável de nossos tempos, consegue nos dizer muito mais sobre nossas
relações, nossas vaidades e nossos pecados do que podemos imaginar. Afinal, os
artistas são geniais ou nós, humanos, não fomos capazes de evoluir moralmente
com o passar do tempo? Há quem diga, ao contrário, que a própria moral pode ser
relativizada. Assim pensava Raskolnikov antes de adoecer. Enfim... Resta-nos confiar
e esperar que os bons artistas do presente retratem a face humana e sua
essência, para nos descobrirmos, nos identificarmos ou nos acusarmos no futuro.
Molière. O misantropo. Tradução
Barbara Heliodora. 1 ed. Rio de Janeiro: Zahar, 2014.
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