Por Pedro Fernandes
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Fernando Sabino com câmera em filmagens de Um contador de histórias, documentário sobre Erico Verissimo (ao centro). À direita a companheira de Erico, Mafalda. Arquivo: O Cruzeiro. |
Depois dos primeiros reconhecimentos, a obra de
Fernando Sabino fez certo caminho natural pelo cinema; dos quase cinquenta
livros que escreveu, três ganharam as grandes telas:
O homem nu (por
duas vezes — em 1968, por Roberto Santos, e em 1997, por Hugo Carvana);
O
grande mentecapto (Oswaldo Caldeira, 1989);
Faca de dois gumes
(Murilo Salles, 1989) e
O menino no espelho (Guilherme Fiúza, 2014). Curiosamente,
aí está boa parte dos seus livros mais lembrados pelos leitores, embora, o
mérito não seja exclusivamente das adaptações, uma vez que a crítica sempre os coloca
entre o essencial da sua obra, ainda que o escritor mineiro tenha trilhado por
outras extensões da escrita literária e não apenas o romance. Também frequentou
outros territórios da criação artística, incluindo a música (baterista amador e de ocasião) e o cinema.
Uma dessas ocasiões se deu com uma
longa parceria com o cineasta David Neves com quem abriu a produtora Bem-Te-Vi
em 1972. Neves era já reconhecido como cronista do cinema novo e juntos produziram
dezoito curtas — uma história que, considerando-se as enormes dificuldades de se
fazer cinema no Brasil, bem se vê, não pode ser reduzida a um amadorismo ou a um
hobby de escritor.
Desse material, oito deles se fizeram em Hollywood e um dos documentários foi
dedicado a Alfred Hitchcock.
O material no estrangeiro não é
tão conhecido do grande público. O restante dos filmes, por sua vez, corre facilmente em espaços
variados na internet, alguns até modificados, aproveitados noutros trabalhos amadores. Não é propriamente pela circulação na
web que esse material
se salvou. A crise na indústria cinematográfica neste país está longe de ser
apenas a da produção; faltam as condições necessárias para restauro e preservação
de acervo. Nesse contexto tão adverso, Fernando Sabino teve alguma sorte. Pelo menos
os dez curtas sob tutela da Cinemateca foram digitalizados, chegaram à
televisão, ao DVD e foi daqui que, certamente saltou para arquivos online
diversos.
Os curtas documentam o dia-a-dia
de alguns dos principais nomes da geração que antecedeu a Fernando Sabino e que
se tornou parte indissociável da literatura brasileira: Erico Verissimo aparece
em
Um contador de histórias; Afonso Arinos, em
Um escritor na
vida pública; Jorge Amado, em
Na casa do Rio Vermelho,
seu reduto em Salvador com a companheira, a também escritora Zélia Gattai; Vinicius de
Moraes, em
Poesia, música e amor; Carlos Drummond de Andrade, em
O
fazendeiro do ar;
Pedro Nava, em
Tempo de Nava; João Cabral
de Melo Neto, em
O curso do poeta;
José Américo de Almeida, em
Romancista ao norte;
Manuel
Bandeira, em
O habitante de Pasárgada; e João Guimarães Rosa serve a
Veredas
de Minas.
Esse rico trabalho parece seguir o
legado de outro cineasta: em 1959, Joaquim Pedro de Andrade estreia na sétima
arte com dois curtas ao estilo documental sobre Gilberto Freire e Manuel
Bandeira,
O mestre de Apipucos e
O poeta do castelo,
respectivamente. Algumas das imagens do poeta pernambucano, aliás, servem para
o trabalho de Fernando Sabino e David Neves — a essa altura Manuel Bandeira e
João Guimarães Rosa já haviam morrido.
Se para o primeiro caso, o
registro cinematográfico existiu — vemos Bandeira comprar leite e preparar um
café da manhã, atender ao telefone, vestir-se, sair à rua, comprar o jornal,
encontrar um amigo — e também o registro sonoro, no caso do autor de
Grande
sertão: veredas as circunstâncias foram menos favoráveis; sem imagem e áudios,
os cineastas recorrem à alternativa do intermediário: sabedores do convívio de
Rosa com os vaqueiros mineiros que serviram de molde para personagens como Manuelzão, ele próprio com Zito formam as vozes que norteiam o fio narrativo com
trechos de outros filmes inspirados no escritor e alguns registros
fotográficos.
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Carlos Drummond de Andrade entre pilotis do prédio onde trabalhou como funcionário público fotografado por Fernando Sabino durante as filmagens de O fazendeiro do ar. |
É verdade que a linguagem adotada
pelos cineastas, embora recorram ao trivial, guia-se pelo aspecto
grandiloquente com o qual uma parte respeitada da crítica ainda buscava tratar
em seu tempo os nomes da arte. A novidade, se não é linguística, aparece na maneira de construção do documentário, porque reparamos que não são filmes de aspecto testemunhal, uma vez os registros não seguirem
o recurso do depoimento. Vemos um Verissimo imitar um samurai no rito de
haraquiri, fazer mágicas para os netos, caminhar pelas ruas de Porto Alegre,
reencontrar sua cidade natal, um Drummond brincando de esconde-esconde, ouvimos
um Jorge Amado piadista, um Vinicius declamativo…
Embora não sejam das lentes
de Sabino e Neves, jamais esquecemos, num dos frames com Manuel Bandeira em que
o poeta de Pasárgada simula a tosse de tísico, encenando-se. Ou, para citar um exemplo das filmagens dos dois: a pose de abertura de Jorge Amado pendurado num telefonema em orelhão; e o riso espontâneo do sisudo Drummond? Quer dizer, outra qualidade é como os cineastas conseguem deslocar os escritores da circunspecção, fazendo-se, em alguns casos personagens de si ante a câmera.
Também é o que fica nos
filmes é o produto de um olhar deveras sensível, como se buscasse o não tocado pela
imagem, aquela dimensão mais autêntica entre os dois limites da vida desses
criadores, sempre com um pé no mundo material e a cabeça no mundo das suas
criações.
Pouco antes da produtora, quando
flertava com o universo do cinema, é possível encontrar Fernando Sabino interessado
no projeto que tocou adiante com David Neves: em 2005 se descobriu os originais
em super-8 feitos para o que seria um filme sobre o cronista Rubem Braga, registrados
como O dia de Braga e realizados em 1971.
E, por falar nesse material disperso com o autor de A
borboleta amarela, recordando-se que foi ele quem apresentou Fernando
Sabino a Clarice Lispector, em 1946, cogitamos pensar na ausência da amiga entre
os nomes documentados. Os dois se corresponderam até 1969 — seguindo o que está
registrado em Cartas perto do coração, livro que reúne essa troca de
convívios — e o assunto do projeto com David Neves talvez nem existisse, portanto,
nada é dito disso. Mas, é provável que em algum momento tenha existido alguma
conversa, quem sabe?
No universo do cinema, Fernando
Sabino fez outras incursões: escreveu roteiros, incluindo o da primeira
adaptação de O homem nu; e fez participação como ator no filme Garota
de Ipanema (Leon Hirzsman, 1967). Mas, a contribuição deixada para a
posteridade com esses encontros marcados está no limite de seu valor com a incursão pela sétima arte: seus documentários
registram e guardam parte essencial da nossa mentalidade e servem, agora, não apenas
como recurso de acesso a outro tempo mas de legado para as gerações presentes e
vindouras.
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