Por Alonso Díaz de la Vega
Durante grande parte das filmagens de O
assassino (2023), David Fincher se dedica à tarefa mais essencial do
cineasta: mostrar personagens. espaços, ações, objetos. A sua observação é por
vezes demasiado rápida e até mecânica para pensarmos que estamos vendo um filme
de processos, ou seja, que contempla, passo a passo, e por sugestão do título,
como matar.
Onde os fracos não tem vez (2007), dos irmãos
Coen, seria um bom exemplo recente, graças ao rigor com que descreve como Anton
Chieurh (Javier Bardem), o homem-peste, faz uma arma com tanque de gasolina, ou
como seu rival. Llewelvin Moss (Josh Brolin), prepara armadilhas para ele em um
quarto de hotel. A narrativa congela ao observar, quase com fetichismo, os
fascinantes mecanismos do homicídio, que mesmo imorais ainda não deixam de surpreender.
O cinema é, afinal, uma oportunidade de ver o que a vida cotidiana nos esconde.
O assassino, por outro lado, não vai tão longe, mas
porque não se propõe a tanto: o seu objetivo principal é o significado, a
utilização destas imagens intermédias de perseguição, luta, tiroteio, para nos
dizer algo sobre a modernidade, especificamente sobre a exploração.
Fincher nunca foi caracterizado como um
intelectual e, devido a isso, quando o filme passa de um primeiro terço cheio
de explicações para o segundo, dominado pelas ações do protagonista e quase
livre de sua voz em off, aterra uma decepção. Aparentemente a alegoria
apresentada no início esmaece entre acontecimentos que poderíamos ver noutros
filmes de ação; no entanto, o desfecho explica os atos anteriores como uma
forma engenhosa de enunciar uma mensagem. O que Fincher diz não é suficiente
para substituir Mark Fisher, mas o seu papel como comentarista cultural não
importa: como cineasta, seu propósito não é necessariamente criar significados
complexos, mas uma imagem peculiar pela qual possa transmitir tudo o que tenha
em sua mente.
Uma vez avançado o diagnóstico, é hora de ver
o corpo. O assassino é sobre um assassino anônimo e solitário (Michael
Fassbender) que segue um padrão familiar: o protagonista falha em uma missão e
seus empregadores tentam matá-lo, mas ao falhar, eles acabam sendo o alvo. Já
vimos variações dessa história em não sei quantos filmes de Jason Bourne. um ou
outro de James Bond, um essencial de John Woo (O assassino, mas de 1989),
e também a contaram em versões existenciais Jim Jarmusch (Os Limites de
controle, 2009) e Allen Baron (Explosão do Silêncio, 1961), sem
esquecer O samurai (1967), de Jean-Pierre Melville. Fincher é mais
parecido com os filmes de Jarmusch em diante e, deles. parece adquirir a
narração em off que investiga as ideias do assassino, pouco mais
comunicativo que uma estátua. Enquanto isso, Michael Fassbender, caracterizado
por uma beleza melancólica, evoca Alain Delon de Melville, e Tilda Swinton traz
consigo as longas e extravagantes conversas do cinema de Jarmusch.
Apesar de seus vínculos com a tradição e de
uma sequência de créditos que sugere outro filme através de imagens sobre
diferentes formas de matar, Fincher não adere às convenções de criar um típico tratado
sobre a alienação de seu protagonista — embora o inclua —, mas sim imagens que
descrevem o tédio e a rotina, símbolos da exploração no nosso mundo
capitalista.
Quando o filme começa, o assassino está à
espera. Se uma pessoa não suporta o tédio, nos diz, este trabalho não é para
ela. Ao contrário do que prometem os créditos e a publicidade de O assassino,
todo este primeiro capítulo, situado em Paris, trata-se de uma perseguição
morna. Assassinar é o testemunho diário de uma ausência, do alvo, desejando que
finalmente apareça para se recolher e ir para casa, como qualquer empregado.
“Não sou excepcional”, diz o assassino. Nestes momentos de narração abundante,
o protagonista se descreve como uma pequena engrenagem num sistema que não é
perturbado pelo seu funcionamento: sim, ele está, mas sua presença é mínima,
quase imperceptível: se não estiver, é substituível. Fincher não parece
descrever, dessa forma, um emprego fora do comum, mas todos os empregos do
mundo na máquina capitalista. Seu assassino é uma representação excêntrica,
embora mais divertida, dos outros trabalhadores.
Por isso, Fincher preenche a tela com
iconografias alusivas aos temas: o primeiro capítulo se passa em um escritório
abandonado da WeWork e o assassino almoça no McDonald’s. Enquanto espera o alvo
aparecer na mira do seu rifle, ele coloca fones de ouvido para ouvir os Smiths,
como qualquer godín que se identifica com o jovem Morrissey quando se arrepende
de não ter emprego e depois de ter encontrado um. No meio da espera, o
assassino se esforça para manter o corpo e a cabeça, e mais tarde o vemos
passar frequentemente por procedimentos aeroportuários. Quando James Bond viaja,
a montagem faz com que apareça em um ou outro destino turístico sem burocracia pelo
meio, mas o protagonista de O
Assassino espera nas filas e viaja na classe econômica porque Fincher quer
fazê-lo parecer mais um caixeiro-viajante ou um palestrante convidado para
alguma convenção de aspiradores de pó. do que como um ceifador glamoroso.
A gota d’água é que a cena mais emocionante da primeira missão é
construída a partir de uma série de mantras quando o assassino está prestes a
puxar o gatilho. Em cada plano vemos suas ações, preparando-se para atirar, contrastando
com outro em que vemos através de sua mira e o ouvimos recitar uma breve
oração: “Siga o plano. Antecipe, não improvise. Não confie em ninguém. Nunca
desista da vantagem [...] A empatia é fraqueza [...] Você deve se comprometer
com isso se quiser ter sucesso.” Em termos cinematográficos, é uma forma
original de criar tensão; tematicamente, Fincher liga seu personagem a
funcionários de certas empresas, obrigados a memorizar frases inspiradoras que
cantam em grupo todas as manhãs, também ansiando pelo sucesso.
Ao iniciar a vingança do assassino, o ritmo de O assassino
muda drasticamente, como adiantei no início: sua voz quase desaparece e a
atuação de Fassbender redobra seu caráter maquinal. Os movimentos são precisos,
não como bailarino, mas como androide, o que se refere mais à sua condição de
assalariado oprimido do que ao aperfeiçoamento de sua técnica. Fassbender até
gesticula pouco ou nada, e durante cenas de tortura, luta, persegue, descreve
um sujeito fazendo a rotina, só que desta vez a violência é dirigida a seus patrões.
Embora esta parte central do filme não pareça sustentar a alegoria de Fincher,
no final reaparecem sinais da exploração capitalista — o assassino faz compras
na Amazon e aparece um CEO de uma empresa multinacional — para sugerir que tudo
o que foi visto não foi uma mera vingança, mas uma guerra de libertação: de
alguma forma, uma greve. Tudo fica claro quando o protagonista volta a falar
com o público e lhe sugere que são iguais: ele, como nós, é apenas “um entre
muitos”.
A contradição de Fincher está em contemplar ações que descrevem
trabalhos pelo menos pouco frequentes, mas sua forma fria, rígida, de filmá-las
— uma imitação da performance de Fassbender e, claro, uma expressão do seu
estilo já conhecido —, seca as imagens e sustenta a alegoria indisciplinada:
transforma-a numa imagem excepcional do trabalho que certamente não mudará
qualquer coisa na realidade, mas que procura dar aos seus espectadores algo
mais do que uma ilusão: uma fantasia de insurgência dos trabalhadores.
* Este
texto é a tradução de “The Killer, la inusual fantasía obrera de David
Fincher, publicado aqui, em Gatopardo.
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