Gabriela Mistral: a vanguarda arcaica

Por Hernán Bravo Varela


Gabriela Mistral. Arquivo Biblioteca Nacional do Chile.


Antes de dar origem à estética modernista, Rubén Darío anunciou, a partir do final do século XIX, as vanguardas poéticas que viriam na América Latina. Seguindo esta lógica, o segundo Darío — esse renovador nostálgico de tanto prever o futuro — antecipará a produção mais íntima dessas vanguardas. A distância entre Azul (1888) e Canções de vida e esperança (1905) é semelhante à que haverá, por exemplo, entre Altazor (1931), de Vicente Huidobro, e Residência na Terra (1935), de Pablo Neruda: por um lado, a pirotecnia; de outro, a sisudez.
 
Assim, e na medida em que foi precursora, a própria obra de Darío separará a vanguarda oficial daquela “outra vanguarda” que, segundo José Emilio Pacheco, se caracteriza pela sua “poesia antipoética”, “realista e não surrealista”, escrita não para “bancar o pequeno deus” de Huidobro, mas para exibir “uma fraqueza e uma vergonha que, no entanto, pode ser expiada descrevendo o que acontece…”. Como referências, Pacheco propõe a crônica em versos de O soldado desconhecido (1922), de Salomón de la Selva, ou a ironia autobiográfica de Espelho (1933), de Salvador Novo — embora também pudesse ser incluída, como precedente desta vanguarda alternativa as próprias Canções de vida e esperança, onde o declínio vital de Darío é anunciado com maturidade estética.
 
Buscas contrapostas
 
Em ambas as tipologias podemos encontrar duas buscas: a da voz, que torna pública a expressão individual, e a do discurso, que torna singular a expressão coletiva. A voz do jovem Darío, como a de Huidobro em Altazor, define-se pelo seu tom extático ou febril, altissonante, com que nomeia um mundo que é iminente ou permanece invisível:
 
Porque chega o tempo em que novos hinos serão cantados em línguas de glória. Um vasto rumor preenche os andamentos […]
 
Unam-se, brilhem, apoiem-se tantos vigores disperso;
formem um único feixe de energia ecumênica.
(Rubén Darío, “Saudação ao otimista”)*
 
Levanta-te e anda
Vive vive como uma bola de futebol
Explode na boca de diamante motocicleta
Na embriaguez de seus vaga-lumes
Vertigem sim de sua libertação
Uma linda loucura na vida da palavra
Uma linda loucura na zona da linguagem
(Vicente Huidobro, “Canção III”, Altazor)*
 
Em contrapartida, o discurso do segundo Dario, como o da Residência na terra, de Neruda, é definido pelas suas nuances telúricas e por um mundo terreno e introspectivo:
 
[…] a espantosa consciência de nosso lodo humano
e o horror de se sentir temporário, o horror
de tatear, em intermitentes terrores,
rumo ao inevitável, desconhecido...
(Rubén Darío, “Noturno”)*
 
[…] me pedem o profético que há em mim, com melancolia,
e uma pancada de objetos que chamam sem ser respondidos
existe, e um movimento sem trégua, e um nome confuso.
(Pablo Neruda, “Arte Poética”)*
 
Legado de símbolos
 
Não surpreende que a chilena Gabriela Mistral (1889-1957) tenha chamado o nicaraguense de “ídolo da minha geração, o primeiro poeta de fala espanhola” — os grifos são meus — nem que os textos dela tenham sido publicados em Elegancias (1911-1914), revista dirigida por Rúben Darío. Entre os dois poetas existe admiração mas, sobretudo, continuidade: tarefa que vai da conquista da voz à independência do discurso. Definir qualquer continuidade à poeta de Darío como pós-modernista é uma falsa obviedade: ele e Mistral resultariam, se assim fosse, tão pós-modernistas quanto Alfonsina Storni (1892-1938), Juana de Ibarbourou (1892-1979) ou os vanguardistas possíveis de destacar na tradição poética hispano-americana. Basta ler as estreias de Huidobro (Ecos da alma, 1911), Neruda (Crepusculário, 1923) e da própria Mistral (Desolação, 1922), para perceber que o modernismo já era um modelo retórico ou ponto zero. Contudo, só a partir dessa plataforma é que Huidobro e Neruda é que saltariam para as suas próprias vanguardas.
 
Depois da morte do nicaraguense, começaram a circular dois tipos de detratores: por um lado, havia aqueles que, como Enrique González Martínez (1871-1952), apelavam a torcer “o pescoço do cisne com plumagem enganosa” e, por outro, outros, aqueles que, como José Coronel Urtecho (1906-1994), se vangloriam de serem “desrespeitosos com os cisnes” de Darío, após assassinarem seus retratos. Todos querem matar o pai ou, pelo menos, apagar a sua imagem, livrar-se de uma herança de símbolos e muletas. A maioria faz isso entre ironias, trapaças e zombarias, como Urtecho; os demais, entre eles González Martínez, realizam uma operação curiosa: veneram o último Darío, ao mesmo tempo que sacrificam o primeiro.
 
Continuar o legado
 
Apesar do exposto, é um fato que também existiu uma terceira via: a de Mistral, mais ecumênica que a de Urtecho e menos contraditória que a de González Martínez. A poeta chilena nunca teve o propósito de negar Darío; pelo contrário, como disse, se propôs dar continuidade a um legado feito de interrogações. E ela, como a autora inquieta e incômoda que era, indagou incansavelmente. Não buscou o marco que inventa, mas o mito que cria; não quis a invenção de uma voz, mas a criação de um discurso (ou seja, um uso muito particular da língua, algo que nos textos em prosa de Mistral se apresenta frequentemente como um poético “retorno à semente”.
 
Não só na escrita, mas também no meu discurso, deixo por complacência muitas expressões arcaicas, sem impor qualquer condição ao arcaísmo, a não ser que seja vivo e claro. […] O campo americano — e eu me criei no campo — continua a falar sua nova língua repleta deles [os arcaísmos]. A cidade, leitora de livros eruditos, acredita que tal repertório começa em mim a partir dos clássicos antigos, e o próprio urbano está equivocado. (“Noturno da derrota”, grifo meu)
 
Mais do que um traço conservador, essa “expressão muito arcaica” une Mistral a dois outros autores díspares: Michel de Montaigne e Juan Rulfo. Como aponta Juan José Arreola sobre o ensaísta francês — aplicável tanto ao narrador mexicano quanto à poeta chilena — sua escrita “nos faz chegar às fontes vivas da língua, onde o gênio popular esculpe expressões à sua imagem e semelhança”. O objetivo é um discurso cujas impurezas dão fluidez à língua falada, um continuum onde se misturam o passado, o presente e o futuro.
 
Essa língua pode muito bem ser o espanhol, mas “muito do que é espanhol”, como afirma Mistral no seu “Colofão…” para Ternura (1945), “já não serve o propósito neste mundo de pessoas, hábitos, pássaros e plantas contrastados com o peninsular. Ainda somos sua clientela na língua, mas muitos já querem tomar posse da extensão da Nova Terra. A empreitada de inventar será grotesca…” Se assim foi, talvez tenha sido pelo fato de certos grupos de vanguarda quererem inventar uma língua já inventada, imposta colonialmente. Ao contrário da língua, o discurso não é unânime: deve ser sempre descoberto de forma parcial. E descobrir o discurso é expô-lo — e não impô-lo.
 
Paisagem feminizada
 
Quem fala nos poemas de Mistral? Não se trata exclusivamente de uma, mas de muitas, tantas quantas as suas obsessões lhes pedem: a grande matéria natural e os pequenos materiais humanos, a paisagem bárbara e inconcebível como o suicídio, a ode à infância e a elegia a uma maternidade truncada, as personagens femininas que compõem uma pátria. Mas esta última talvez represente a obsessão mais ressonante de todas. A este respeito, Lila Meruane afirma que “a pátria de Mistral [...] é uma paisagem feminizada”, que muda menos na geografia do que na anatomia. Cada mulher oferece uma amostra celular ou fechada do Chile: a cordilheira, a selva e as ilhas austrais...
 
Cordilheira dos Andes,
Mãe jacente e Mãe que anda,
isso nos enlouquece quando crianças
e faz morrer quando nos falta;
que nos metais e no amianto
carregou nossas entranhas;
(“Dois hinos” — “Cordilheira”)**
 
Ela [a selva], com gestos que voam,
cresce sozinha;
sobe, golpeia, cai,
fundindo, oblíquo, o olhar;
abre átrios apertados
e outros roubam, com suspeita,
e assim vai, a Marrullera,
levando magia para dentro de nós.
(“Selva do Sul”)*
 
Todas elas [as ilhas] são irmãs,
mas através da neblina ele vagueia
alguns parecem figuras;
eles são todos batizados
e como o agradecimento, tudo
Eles são generosos e loucos.
(“Ilhas Austrais”)*
 
Tempo psicótico
 
Não contente em desenhar um atlas feminino da pátria, Mistral desenhou um aparte de “Loucas Mulheres” (como consta no título de uma secção de Lagar) em cada um dos seus livros. Imagens de mulheres antigas e infantis, solares e sonâmbulas, ferozes e vulneráveis ​​que cantam um único e monumental Poema do Chile: um hino em código, disperso, vertiginoso.
 
Longe da confissão — que na poesia exala um cheiro de chantagem emocional — Mistral cede a palavra, segundo Meruane, às sonhadoras, às estéreis, às que são imprudentes, errantes e intrépidas, às fervorosas, às queixosas, às incapazes de esquecer a mãe e as mestras mortas, às ciumentas e às que abandonam, às insones e às desolados, às nostálgicas. Um refrão na loucura do íntimo.
 
Desse coro, Mistral inaugurou um registro excêntrico, fora de si, que a poesia chilena adotou durante a ditadura militar, e cujas palavras “perigosas e malucas” conseguiram exibir um tempo infeliz e psicótico. (Aí estão, entre outros, Luis XIV (1982), de Paulo de Jolly (1952-2020); A tirana (1983), de Diego Maquieira (1951); Canto seu amor desaparecido (1985) e A vida nova (1993), de Raúl Zurita (1950); A bandeira do Chile (1991), de Elvira Hernández (1951); Traços do século (1986), de Carmen Berenguer (1946), Lumpérica (1983), primeiro romance de Diamela Eltit (1949) e A esquina é meu coração (1995), primeiro livro de crônicas de Pedro Lemebel (1952-2015). São discursos delirantes, voláteis, cheios de dor e desejo, que repetem a palavra “Chile” até perder o sentido).
 
Uma pátria verbal
 
“Dê-me agora as palavras / que a enfermeira não me deu”, pede Gabriela Mistral em “A abandonada”; o leitor nunca sabe ao certo a quem dirige seu discurso, mas suspeita que seja esse grupo de personagens fora da lei e do discurso. São familiares, amigos, amantes a quem Mistral dá a palavra e os deixa ouvir; professores, alunos e colegas a quem herda uma pátria verbal. E então ele continua seu apelo:
 
Balbuciarei demente
de sílaba em sílaba:
palavra “espoliação”, palavra “nada”
e a palavra “consequência”,
mesmo que se torçam na minha boca
como víboras adormecidas!*
 
Ao exaltar a insensatez e a fragilidade (os balbucios “dementes”, as palavras distorcidas na boca), a vencedora do Nobel de 1945 opôs-se ao canto “pela razão ou pela força”, de acordo com o lema do seu brasão nacional. Essa lição de revolta teve algo melhor do que bons alunos: teve seguidores rebeldes, agitadores sem bandeira. Quem, senão, tomaria as rédeas da poesia no Chile, da sua escola pública e do seu sanatório clandestino?
 
 
Notas da tradução
* As traduções dos poemas e/ ou excertos assim identificados ao longo do texto são nossas.
 
** Tradução de Davis Diniz em A mulher forte e outros poemas (Pinard, 2021)
 
 
Texto lido em 12 de setembro de 2023, no ciclo “Ni pena ni miedo. Presencia de la literatura chilena”, coordenado por Juan Villoro para a Casa Estudio Cien Años de Soledad (Fundación para las Letras Mexicanas), em parceria com El Colegio Nacional e a Universidad Veracruzana. O evento ocorreu no marco do 50º aniversário do golpe de Estado no Chile e do 50º aniversário da morte de Pablo Neruda. Publicado inicialmente em La Razón.
 

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